Incluo-me no grupo dos que pensaram (ingenuamente?) que na sequência da greve dos camionistas em Junho de 2008 e da crise alimentar que assolou a Europa, as questões da agricultura e da alimentação, os stocks estratégicos e a dependência em matérias-primas de base, iriam fazer parte da Agenda Política de Portugal e da União Europeia.
Repensar o papel da agricultura na sua função mais nobre de produção de alimentos, sem esquecer outras funcionalidades como a preservação do ambiente, da paisagem e o ordenamento do território. A alimentação na sua dupla vertente, de redução do flagelo da obesidade, de satisfação das diferentes necessidades dos consumidores e de ajuda ao combate da fome no mundo. Porque vai ser preciso duplicar a produção até 2050 para garantir a segurança alimentar da população mundial.
Reforçar o papel da agro-indústria como alavanca do sector agrícola, apostar em matérias-primas de proximidade para reduzir custos e evitar problemas ligados à segurança alimentar, na contratualização da produção e consolidação de Fileiras, com a necessária cooperação estratégica da Administração Pública.
Manter e reforçar os instrumentos de regulação do mercado previstos na PAC porque a desregulamentação cria instabilidade nos preços e no rendimento dos agricultores, abre caminho à especulação, à instabilidade nos mercados e à volatilidade das matérias-primas, condicionando os investimentos no Sector e a sua atractividade. Porque, convêm não esquecer, o Tratado de Roma continua a ser o grande pilar da União Europeia e um dos seus objectivos é assegurar a estabilidade dos preços e dos rendimentos do sector agrícola, tentando evitar precisamente o que aconteceu a partir de meados de 2007 e sobretudo em 2008, abrindo caminho para a actual crise, sem precedentes, no espaço europeu e mundial.
Passado todo este período, não existem lições a retirar para o futuro?
Poder-se-á dizer que a força da União Europeia reside na sua diversidade, na união dos povos, no multiculturalismo, na liderança do combate às alterações climáticas, bem-estar animal, desenvolvimento sustentável e segurança alimentar. Um espaço de liberdade e de afirmação da opinião pública. Mas na prática, os cidadãos afastam-se cada vez mais da Europa, nos momentos de crise não é possível assumir posições comuns, a União Europeia está a atrasar-se na inovação e no conhecimento – veja-se o caso da biotecnologia agrícola onde reina a hipocrisia, apesar de se ter exigido uma Autoridade científica, independente, para a avaliação e comunicação dos riscos. Apesar de tudo, sem conseguir impor um modelo agro-alimentar a uma economia cada vez mais global, sobretudo com a entrada em cena de países como o Brasil, China, Rússia ou a Índia.
Como é possível exigir regras restritivas em matéria de segurança alimentar, ambiente e bem-estar animal, ignorar as novas tecnologias quando somos altamente dependentes em matérias-primas, factores que geram custos para as empresas e lhes retiram competitividade nesta concorrência globalizada, em nome da protecção dos consumidores e não ser coerente ao nível das importações de países terceiros de produtos finais como a carne, o leite e os ovos?
Existirá a consciência, da parte da opinião pública, de que, por este caminho, se está a delapidar a agro-pecuária na União Europeia, a torná-la mais vulnerável, mais dependente do exterior, a potenciar a desertificação e o abandono das produções, sobretudo nos países do Sul da Europa?
Se o Tratado de Lisboa for finalmente aprovado pelos irlandeses em Outubro, o Parlamento Europeu, tal como o Conselho, terão todos os poderes de decisão sobre a PAC. Alarga-se assim à Política Agrícola o procedimento de co-decisão, com relatórios, aprovações em sede de Comissões, emendas e leitura em Plenário.
O futuro da PAC pós-2013, um dossier de importância capital para o nosso futuro, intimamente ligado ao orçamento para o período 2014/2020, passará pelos eurodeputados na próxima legislatura. Será que existe a consciência dos cidadãos para a relevância destes aspectos e dos partidos políticos para o papel da agro-pecuária e da indústria agro-alimentar no futuro de Portugal e da Europa?
A escolha vai ser entre uma PAC mais liberal, como pretendem os países do Norte, ou uma Política Agrícola mais conservadora, mantendo os instrumentos de gestão dos mercados e em que as restrições impostas à produção agrícola (o modelo europeu) e que penalizam a competitividade dos produtos europeus serão compensadas por ajudas, num Contrato entre os Agricultores e a Sociedade. E como se tratam de modelos com impactos diferentes para Portugal, é importante colocar estas questões no centro da Agenda política e sobretudo potenciá-las no quadro da presidência de Espanha da União Europeia que decorrerá no primeiro semestre de 2010.
O que temos na conjuntura actual?
O sector ligado à pecuária é o mais importante da agro-indústria nacional, designadamente as carnes, leite e alimentos compostos para animais. A alimentação animal é o principal factor de custo das produções animais o que significa que deste sector depende em grande parte a competitividade dessas produções e indirectamente, das indústrias que as utilizam como matéria-prima de base, sendo desejável um maior recurso aos produtos de origem nacional, em detrimento das importações.
Ainda recentemente foram divulgados números que apontam para uma redução dos preços das carnes e do leite nos pontos de venda (cadeias de distribuição), acentuando ainda mais as margens negativas que temos vindo a denunciar desde o ano passado e que o poder político, pelo menos no discurso, já reconheceu em Bruxelas no âmbito da produção de leite e da carne de suíno, embora tratando-se de uma conjuntura que é transversal a todos os sectores da pecuária. E a tendência actual aponta para uma redução nos preços à produção, acompanhada por uma subida dos preços das principais matérias-primas como os cereais e as oleaginosas, sobretudo a soja.
Como vai ser possível suportar esta situação, quando as unidades de alimentos compostos estão elas próprias a restringir a actividade, de forma a diminuir os riscos dos incobráveis e as linhas de crédito e outras medidas de relançamento da actividade económica não resolvem, no terreno, os problemas concretos da Fileira?
É assustador pensarmos que, se num cenário de quebra de inflação e de taxas de juro historicamente baixas, os preços dos produtos alimentares são os que mais diminuem, então como será quando se concretizar a retoma e o inevitável aumento da inflação? Só com um cenário mais positivo e de maior confiança, com medidas de apoio da União Europeia aos sectores que atravessam uma crise mais profunda e medidas urgentes para inverter o drama da disparidade entre os preços no produtor e no consumidor.
Este último ponto (o diferencial de preços) assume grande importância no curto prazo, um dossier que vai estar “em cima da mesa” na próxima legislatura, que a Polónia já introduziu no último Conselho de Ministros e que a conjuntura do mercado do leite tenderá a levar até às últimas consequências.
Entretanto, a pecuária vai definhando a pouco e pouco por esta falta de sensibilidade política para os problemas da Agricultura, do Mundo Rural e da Alimentação. Poder-se-ia argumentar que é um sector que “já não dá votos” e que os políticos estão atentos às questões que mais preocupam os cidadãos (urbanos) como a insegurança, o desemprego, a crise financeira, o ambiente e a sustentabilidade.
Nada de mais errado em termos de visão de futuro.
A agro-pecuária é essencial para que se evite o abandono, a desertificação, se produzam alimentos de acordo com as normas europeias que promovem a segurança alimentar e se assegure a preservação da paisagem e dos recursos naturais. Torna-se pois essencial recentrar o papel da agricultura e da indústria agro-alimentar e, neste contexto, consciencializar os cidadãos para a importância destas questões na Sociedade e para os riscos da liberalização da PAC.
Nesta perspectiva, valorizar e dignificar o Mundo Rural, criar condições para o regresso ao campo, deverá ser um compromisso de todos porque sem este “novo olhar” estaremos a hipotecar a Sustentabilidade que, a par da Responsabilidade Social, mais do que palavras de circunstância, serão as pedras basilares do desenvolvimento económico e social do século XXI.
Jaime Piçarra
Engenheiro Agrónomo
(Secretário-Geral da IACA)