As últimas semanas vêm sendo marcadas pelo crescendo da confrontação entre a distribuição (ou pelo menos um sector da distribuição) e a fileira do leite…
Este é um tema polémico, mas a sua relevância é tal que, mesmo tentando evitar deitar mais achas para a fogueira, é de todo em todo impossível passar ao lado de um conjunto de factos que, a não serem rapidamente corrigidos, poderão ferir de morte um sector que foi sendo construído ano após ano, pedra sobre pedra.
A acusação, recorrente, refere-se à preponderância da Lactogal no seio da fileira do leite nacional, acusando-a dos mais diversos ‘pecados’, acusações, contudo, que parecem ser mais o resultado da dificuldade de conviver com uma realidade empresarial capaz de impor uma pressão a que, de todo, não estão habituados e com a qual definitivamente não sabem lidar.
A fileira do leite é, pela natureza da matéria-prima que trabalha, pela importância na alimentação das populações e pela necessidade de possuir uma muita elevada qualidade, mas, em simultâneo, um baixo preço, um sector razoavelmente concentrado.
O mercado lácteo nacional é, à escala europeia, bastante reduzido – o nosso consumo per capita, em equivalente-leite, é cerca de metade do francês ou do italiano e não ultrapassa os dois terços do de alemães ou escandinavos – tal como a essa mesma escala é escassa a nossa produção.
O maior peso do leite líquido e do iogurte (e outros leites fermentados) na nossa alimentação, em detrimento, por exemplo, do queijo, mais contribui para a necessidade de concentração da transformação industrial.
O peso relativo de uma Lactogal repete-se em mercados como o holandês, dinamarquês, sueco, suíço, belga, finlandês ou irlandês. Noutros – casos da França, da Alemanha ou do Reino Unido – onde não existe a preponderância de uma empresa, os dedos das duas mãos não chegam para contar o número das de dimensão idêntica ou superior ao da portuguesa Lactogal.
À contestação relativa ao aumento massivo das importações de leite e derivados para comercialização sob a forma de marcas brancas, responderam com novas acusações, mas o mesmo destinatário: que a descida dos preços ao produtor não estaria a ser repercutida junto do consumidor e que a qualidade de serviço (no período de escassez) tinha deixado muito a desejar.
Se em relação a este último aspecto, faz sentido perguntar quais foram as empresas fornecedoras que nesse período mais crítico não tiveram dificuldade em satisfazer todos os seus compromissos, já em relação à repercussão, não é necessário ser um qualquer Sherlock Holmes para descobrir que as principais marcas de leite nacionais apresentam descidas de preços no último ano na ordem dos 15 a 20 por cento.
Actualmente, o preço do leite das principais marcas comerciais nacionais é dos mais baixos senão o mais baixo da Europa, com valores entre os 0,55 e os 0,60 euros.
Em Espanha, as marcas mais relevantes ultrapassam os 90 cêntimos e estão acima de um euro em França e na Alemanha. No país vizinho, os leites mais baratos custavam por estes dias 52-53 cêntimos, valor equivalente aos praticados nas mais importantes cadeias de supermercados alemãs e francesas, sendo que em qualquer um destes três países estão a ocorrer fortes manifestações de produtores que colocam a grande distribuição no centro de todas as críticas.
Quando escrevo estas linhas, a Sonae estava a comercializar leite UHT meio-gordo da sua marca “É” (de origem alemã) a 39 cêntimos, sendo que a Jerónimo Martins e a Lidl se preparavam para acompanhar, com as suas primeiras marcas, esse preço. Uma vez mais, não é necessária a colaboração do Dr. Watson para perceber que estes são preços ‘impossíveis’ e, mesmo que justificados pela necessidade de escoamento de excedentes nos respectivos países de origem, o respectivo PVP cava fundo a prática de ‘dumping’, para além de levantar óbvias suspeições quanto à respectiva qualidade e respeito pelas regras de produção prevalecentes na União Europeia (onde, por exemplo, é totalmente proibida a recombinação de leite ou a adição de lactosoro).
O consumo de leite líquido, bem como da grande maioria dos produtos lácteos, apresenta baixa elasticidade às reduções de preços, pelo que o efeito prático da introdução destes produtos no nosso mercado é, não o aumento do respectivo consumo, mas apenas e só a substituição do consumo de produto nacional por produtos importados. E isto é verdade para o leite, como o é para o iogurte ou para o queijo, onde, que se saiba, a posição da Lactogal é muito mais reduzida e tal não tem impedido que o mesmo tipo de actuação esteja a ser sistematicamente colocado em prática, exactamente pelas mesmas cadeias de distribuição. Ao contrário do que se passa em relação ao leite líquido, alguém ouviu algum responsável da Sonae ou JM falar das margens que aplicam aos queijos ou aos iogurtes?
O resultado deste estado de coisas é fácil de prever: os excedentes da produção nacional continuarão a crescer e as empresas que mantêm a recolha de leite junto dos produtores (em especial, obviamente, a própria Lactogal), terão que encontrar formas de escoar essa matéria-prima. O dilema será não o de saber quanto vão ‘ganhar’ com a respectiva venda, mas sim saber quanto não vão perder se evitarem transformar esse mesmo leite em leite em pó.
No limite, todos os países possuirão fortes excedentes e todos serão obrigados a escoar as suas produções em perda, para gáudio sempre dos mesmos.
Esta é, pois, uma factura demasiado pesada que toda a fileira (e não apenas a Lactogal) irá pagar… e seguramente por um largo período.
Ao mesmo tempo, os nossos responsáveis políticos assobiam para o ar, fingem não ver e esperam que o mau tempo passe.
No entanto, era bom que recordassem que quando não houver agricultura e agro-indústria, não haverá Ministério da Agricultura…. nem Ministro da Agricultura….
Porto, 21 de Maio de 2009
Pedro Pimentel
Secretário Geral
ANIL – Associação Nacional dos Industriais de Lacticínios