Preços justos no seio da fileira do leite – Pedro Pimentel

Portugal tem um relativamente escasso peso no sector lácteo europeu, mas possui – apesar disso – uma fileira bastante bem organizada, que tem dado, em especial nas duas últimas décadas, sinais muito claros de modernização e de adaptação aos mercados e às exigências dos consumidores.

O mercado do leite em Portugal tem características que o aproximam dos países do Sul da Europa – forte peso do leite líquido, significativo crescimento do consumo dos iogurtes e leites fermentados, preferência por uma ampla gama de queijos tradicionais (com incorporação importante de leites de pequenos ruminantes), baixo consumo de manteiga…

No entanto, ao nível da organização da fileira, Portugal aproxima-se mais dos países do Centro e Norte da Europa, com uma clara preponderância do sector cooperativo, com uma estrutura de recolha e transformação sólida e bastante concentrada, com uma estável relação entre produtores e transformadores, com a inexistência de qualquer tradição de abandono de leite no campo, com uma escassa presença dos chamados ‘primeiros compradores’,…

Não devemos esquecer, contudo, que essa organização partiu de um eixo estruturante: o regime de quotas leiteiras. Esse regime, ao definir direitos de produção individuais e, complementarmente, as penalizações derivadas do mecanismo de imposição suplementar, criava condições para uma razoável estabilidade no relacionamento entre produtores e compradores.

Os produtores sabiam qual o seu limite de produção, os compradores podiam estabelecer antecipadamente e com bastante segurança a sua logística de recolha e a sua planificação de industrialização. Definiam também, em muitos casos, esquemas de incentivo que pretendiam adaptar, na medida do possível, a curva de produção à curva do consumo.

As próprias condições de mercado, no caso português, nunca motivaram o estabelecimento de um mercado spot para a colocação dos excedentes de leite, pois esses excedentes, quando existem são, geridos pelos próprios compradores, que por seu lado, sempre se comprometeram a recolher – ao longo de toda a campanha – a totalidade do leite produzido nas explorações dos produtores seus fornecedores e a pagá-lo de forma pontual e homogénea.

Esta situação era especialmente adequada aos mercados, como o português, em que uma parte muito substancial do leite produzido é canalizada para a laboração de produtos para o consumidor final em mercados de proximidade. E era especialmente adequada a um país que sempre priorizou o abastecimento do seu mercado doméstico, um mercado relativamente ao qual a produção portuguesa apresenta um grau de autosuficiência apenas ligeiramente superior a cem por cento, o que – uma vez mais – o distingue dos países fortemente deficitários, como é o caso da nossa vizinha Espanha, ou de outros países da Europa do Sul como a Itália ou a Grécia, mas também nos coloca distantes dos Estados-membro largamente superavitários como a Dinamarca, a Holanda ou a Irlanda.

No caso português e sem querer particularizar excessivamente, há dois factos mais a adicionar, a nossa localização excêntrica na geografia europeia e o facto de uma parte muito substancial, quase um terço da nossa produção, estar concentrada num arquipélago no Atlântico, os Açores, sendo que, apesar disso, a sua produção é, em muito larga medida, canalizada para o mercado português, onde ajuda a suprir a parcela do mercado que a produção do Portugal Continental não cobre, contribuindo para o grau de autosuficiência que referi atrás.

Recordo ainda que, apesar da harmonização promovida pela União Europeia, o sector lácteo se desenvolve de diferentes formas nos vários Estados-membro, sendo que as respectivas realidades são por vezes bastante distintas.

No entanto e apesar disso tentarei agora dar resposta às duas questões que me colocaram:

Como assegurar que produtores de leite e indústrias de lacticínios podem estabelecer preços justos no seio da cadeia alimentar? e

Será ou não possível estabelecer contratos justos entre as partes?

É importante definir o que entendemos por preço ‘justo’ e lembrar que essa definição se aplica ao produtor, como se aplica a todos os outros elos da cadeia alimentar…

Mas subjacente à questão está igualmente a ideia de que se pretende um preço justo mas também estável, ou pelo menos tão estável quanto possível! Ou seja combater o que agora se convencionou designar como volatilidade excessiva dos preços.

Essa volatilidade resulta, dirão os mais puristas, do simples jogo das forças da oferta e da procura no mercado. Os que, como eu, consideram que os mercados alimentares devem, apesar de tudo, apresentar características distintas dos mercados financeiros ou dos mercados de outros bens transaccionáveis em grande escala, dirão que tal resulta da desregulação progressiva desse mesmo mercado e do impacto da forte acção especulativa que, em certos momentos, incide sobre o mercado.

A desregulação do mercado, de que o desmantelamento do sistema de quotas é a face mais vísivel, introduz um risco acrescido de volatilização dos preços, o que gera dificuldades para os produtores, mas gera também fortes dificuldades para a indústria. Da própria desregulação do mercado tende a surgir uma outra consequência: a volatilização das quantidades produzidas!

Esta dificuldade, que era até aqui, em larga medida resolvida pelas regras e filosofia do regime de quotas leiteiras, introduz, pelo menos no caso dos países em que parte substancial da matéria-prima é direccionada para mercados de proximidade, a grave questão de gerir volumes flutuantes de leite quando os ciclos de consumo são relativamente estáveis e regulares.

A contratualização no sector leiteiro nunca deixou de existir, mesmo na vigência do sistema de quotas. De modo formal ou implícito, a contratualização de diversos aspectos do fornecimento de leite são uma prática comum.

Nas entidades de matriz cooperativa, essa contratualização – seja ou não estabelecida de modo formal – está presente e é a base do compromisso estabelecido entre o produtor e a organização de que é co-detentor.

Onde predominam as empresas não-cooperativas, o vínculo contratual tende a conferir estabilidade no relacionamento entre produtor e comprador e a assegurar a continuidade das entregas e das condições de fornecimento.

No entanto, sob o chapéu do regime de quotas leiteiras, estes contratos tinham uma filosofia de regulação das relações entre as partes e apenas essa. Eram celebrados porque produtor e comprador, no quadro de funcionamento do mercado, entendiam dever consolidar o seu relacionamento, entendiam estabelecer direitos e obrigações num cenário de livre-iniciativa e livre-vontade, entendiam formalizar o que podia ser informal.

Esses contratos não pretendiam alcançar a regulação de mercado, ou estabelecer uma qualquer forma de condicionamento da oferta…

Quando a discussão hoje se começa a centrar na função que a contratualização pode desempenhar na organização do mercado e como instrumento de combate à volatilidade excessiva, estaremos a falar de outros contratos ou pelo menos de contratos estabelecidos com uma diferente filosofia.

Ao falar de volatilidade e de volatilidade extrema somos, até pela memória recente, imediatamente levados a pensar em espirais descendentes de preços, em quantidades maciças de produtos excedentários que o mercado – sem intervenção exterior – não consegue escoar, em preços ao produtor inferiores aos correspondentes custos de produção, em quebras de rendimento de grande significado.

Mas pode-se também descrever o percurso que seguem os cenários em que aquela volatilidade excessiva se situa na parcela superior da curva de preços, bastando para tal recordar o que se verificou em 2007…

Apesar desta sucessão de ciclos e contra-ciclos, apesar do aparente enlouquecimento do pêndulo, que nos fez passar a ter que encarar de frente com o fenómeno da volatilidade excessiva, há, ainda assim, algumas diferenças na forma como se desenvolve cada um destes ciclos.

Quando a procura suplanta a oferta, quando a indústria carece de volumes adicionais para transformar, quando os preços no campo se incrementam, a produção reage, reage mesmo de forma aparentemente mais rápida do que aquela que seria expectável num sector que se confronta com os ciclos da natureza e o ciclo de vida dos animais produtores.

Existe um grande número de explorações leiteiras, que sem praticamente alterarem a dimensão do seu efectivo, conseguem aumentar de forma razoável as suas produções. E o somatório desses inúmeros acréscimos introduz rapidamente no mercado volumes de leite adicionais que tendem a contrariar a percepção de escassez.

Porém, quando o ciclo é o inverso, quando os preços se afundam, quando as produções excedentárias se amontoam, a reacção mais lógica seria, igualmente, de forma tão rápida quanto possível, comprimir os volumes produzidos, tentar valorizar da melhor forma possível os stocks existentes e procurar encontrar, de forma célere, um novo equilíbrio entre a oferta e a procura.

No entanto, a produção leiteira reparte-se por muitas centenas de milhares de explorações e dessa atomização resulta a percepção de que cada produtor, individualmente, não tem capacidade para fazer oscilar de forma suficiente a oferta, para condicionar o mercado, para contribuir decisivamente para a formação do preço. E não colocando de lado a questão fundamental de saber se esse preço dado é compatível com os custos de produção, ou pelo menos com os custos marginais de produção, a um preço dado, a mais volume, a mais produção, corresponde mais rendimento.

E aí, na inexistência de instrumentos administrativos que façam condicionar a oferta, a diminuição dos volumes presentes no mercado é bastante mais lenta, com os excedentes a acumularem-se e os sinais de crise a avolumarem-se.

Todas estas constatações referem-se a factos que ocorreram no quadro de funcionamento do sistema de quotas leiteiras, ou, de outra maneira, que ocorreram apesar do sistema de quotas leiteiras. Mas é ou não possível, num cenário pós-quotas, estabelecer contratos justos entre as partes e a resposta parece evidente.

Não julgo que seja a existência ou não das quotas que adiciona ou retira ‘justiça’ ao contrato estabelecido entre produtor e comprador, sempre e quando o mesmo resulte da expressão livre da vontade das partes, sempre e quando os seus termos sejam estabelecidos no respeito da legislação em vigor, muito em especial das leis da concorrência, sempre e quando os contraentes possuam, de forma transparente, a informação necessária para estabelecer os seus termos e condições.

No entanto a perspectiva não será exactamente a mesma, se considerarmos os contratos como um instrumento de apoio à regulação do mercado, como uma ferramenta utilizada para evitar a repetição de situações que conduzam à referida volatilidade excessiva.

Jugo ser útil recordar que o actual sistema de quotas tem associado a si um capital de informação, cuja análise e avaliação nos permite um amplo conhecimento do mercado. Mas, como podemos actuar se não conhecermos o mercado?

Um dos aspectos que julgo serem mais facilmente expectáveis do desmantelamento do regime de quotas é exactamente a perda ou, pelo menos, a desarticulação desse fluxo de informação, a menor capacidade de, a cada momento, acompanhar a evolução do mercado, a perda de referenciais quando for preciso actuar ao nível do produtor, à escala das indústrias, no patamar das regiões ou nações, ou, por maioria de razão, ao nível das instâncias comunitárias…

E como tentar contornar esta previsível dificuldade? Estabelecendo a obrigação de registo desses contratos? Harmonizando o seu conteúdo, ou, pelo menos, formatando um conjunto pré-definido de cláusulas desses contratos? Conferindo-lhe uma natureza pública, que permita o livre acesso e a captação de dados de um documento que é, supostamente, a expressão específica da vontade de um dado produtor e de um dado comprador num dado momento?

Por muito que este assunto esteja já hoje a ser abordado, com diferentes formatos e em diferentes velocidades em vários Estados-membros, julgo que tendencialmente se chegará a um consenso de que um qualquer modelo de regulação, a existir, deverá ser aplicável em toda a União Europeia, deverá ser eficaz em todo o território comunitário.

Quando falamos em regulação, o espectro de actuação incidirá sempre sobre o desenho da oferta, sobre a forma como podem ser conhecidos e geridos os volumes presentes no mercado, sobre a forma como, face a uma dada conjuntura e a um cenário previsível de evolução, se conseguirá ampliar ou comprimir o fluxo de leite vertido para o mercado, quando de um lado estão milhares de empresas extremamente heterogéneas, na dimensão, no portfolio, no âmbito geográfico da sua actuação, e do outro está uma miríade de produtores, de que uma enorme parcela é de reduzida dimensão e escassa relevância quanto à definição dos contornos do mercado de aprovisionamento.

E ao perigo da volatilização excessiva dos preços haverá, com muita probabilidade, que adicionar o perigo da volatilização dos volumes produzidos. E nesse caso, estarão os compradores disponíveis para contratualizar a aquisição do volume integral produzido numa dada exploração? Num conjunto alargado de explorações? Ou preferirão contratar a compra de quantidades pré-fixadas de leite de cada uma dessas explorações? E calendarizadas anualmente, estabelecidas mensalmente ou definidas num qualquer outro período?

O produtor de leite, por seu lado, tem vários constrangimentos na sua actividade que lhe dificultam a resposta às exigências que lhe possam ser impostas ao nível dos volumes que contrata e entrega. Ele produz leite e não parafusos ou t-shirts, a sua produção está sujeita a diversos imponderáveis, sejam exógenos (de que os fenómenos de natureza climatológica são o melhor exemplo), sejam endógenos, com destaque, por exemplo, para as questões da saúde animal.

Será penalizado se não atingir o volume de entregas contratualizado? Terá capacidade para organizar a comercialização do leite que exceder as quantidades estabelecidas por contrato? E essas quantidades extra-contratuais, a existirem, distribuir-se-ão no tempo ou serão concentradas no final dos respectivos contratos de fornecimento?

E, dessa forma, poderão os referidos contratos harmonizados, de âmbito europeu, estabelecer um preço de fornecimento, estabelecer um preço de fornecimento para períodos de tempo alargados? Em suma, será possível conseguir um preço justo para o leite na origem, na relação comercial que se estabelece entre produtor e comprador?

Um preço justo, no caso do produtor, tem que cobrir todos os custos de produção, tem que remunerar o trabalho do empresário agrícola, tem que permitir o reinvestimento na exploração e deve premiar o risco de investimento. Esta definição é tão verdadeira para o produtor como para todos os outros elos da cadeia.

A questão passa por saber se o preço hoje-em-dia se forma de montante para jusante, isto é, tomando por base os custos de produção e partindo daí para o preço de prateleira, ou se, ao invés, são as forças concorrenciais no mercado que estabelecem o preço de venda do bem e toda a estrutura se deve, posteriormente, adaptar para acomodar esse valor de prateleira?

O que poderemos chamar de estrutura de preço de um produto, não pode nunca deixar de considerar o seu custo de produção, mas incorpora um sem-número de outros conceitos, de que a título de exemplo, se pode referir o ciclo de vida do próprio produto ou as forças concorrenciais num determinado mercado.

Há ainda que distinguir entre preços de venda ao público e preços de cessão dos fabricantes aos seus clientes e esta distinção, actualmente, assume cada vez maior importância. São hoje cada vez mais vulgares as situações em que a preços de cessão similares correspondem preços de prateleira fortemente diferenciados.

É hoje também usual ouvir-se que há que diminuir a intermediação comercial, que adiciona custos mas, geralmente, não adiciona qualquer valor. No entanto, com o advento das marcas de distribuidor, as cadeias de supermercados, no mesmo espaço e com o conhecimento directo de todas as informações, mesmo aquelas que não podem ser obviamente partilháveis entre competidores, acabam por assumir uma dupla função: de fabricante, para as suas marcas e de intermediário comercial, para as marcas de fabricante.

Assim, quando a discussão política se centra hoje na necessidade de estabelecer um preço justo para o leite ao produtor, o que, passe a redundância, é da mais elementar justiça e quando se coloca essa discussão exclusivamente no relacionamento entre produtores e industriais, como se de um mundo isolado e impermeável se tratasse, parece-me que estaremos a dar atenção à árvore e a esquecer a floresta.

Por muito que os políticos e as políticas pretendam, com as suas regulamentações, acções e recomendações, por si só resolver essa questão, dificilmente será possível pagar um preço justo ao produtor, se o mercado não pagar um preço justo pelo produto. E é fundamental que todos percebam que tão importante como o preço que o consumidor paga é o preço que é pago a quem fabrica esses mesmos produtos, porque tenhamos consciência, essas duas realidades são por vezes bem distintas.

Se conseguirmos resolver esta dificuldade, não tenho dúvidas, será possível pagar sempre e de forma sustentada um preço mais justo ao produtor…

Pedro Pimentel
Secretário Geral
ANIL – Associação Nacional dos Industriais de Lacticínios

( * ) Texto de apoio à intervenção proferida na Audição Pública promovida pela Comissão de Agricultura e Desenvolvimento Rural do Parlamento Europeu, subordinada ao tema “Rendimentos justos para os agricultores: um melhor funcionamento da cadeia de abastecimento alimentar na Europa” PDF

Nota do Editor : A audição pública dos peritos foi precedida da apresentação, pelo Relator José Bové, do Projecto de Relatório sobre rendimentos justos para os agricultores: melhor funcionamento da cadeia de abastecimento alimentar na Europa

Internacionalização: aproveitar a janela de oportunidade – Pedro Pimentel


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