Atraso na Lei da Água. Causas e Consequências – Ilídio Martins

É com preocupação que o sector agrícola tem acompanhado o desenvolvimento da aplicação da Lei da Água em Portugal. A recente informação de que a Comissão Europeia pretende levar Portugal a tribunal por não cumprir a legislação da União Europeia no domínio dos recursos hídricos, que exige a apresentação de PGRH – planos de gestão das regiões hidrográficas e sua implementação, veio confirmar o que há muito vimos afirmando.

O processo de arranque da implementação da Lei da Água em Portugal tem associado um conjunto de premissas e decisões estratégicas incorretas, que deveriam constar de um manual de “como não fazer”.

A recente “fusão” do Ministério do Ambiente com o Ministério da Agricultura pode criar condições para que se venham a corrigir os erros cometidos bem como recuperar o tempo perdido.

1º – O “edifício legislativo”

Um dos erros típicos da administração, sendo este o caso, é que se perde demasiado tempo a efectuar uma legislação “perfeita”. De facto, esta legislação, como outras tem lacunas e como seria de esperar levou a atrasos substanciais.

Outro erro típico do legislador – Administração – é o distanciamento da realidade do Pais, o que se reflecte em medidas e imposições que dificilmente são aplicáveis, ou sendo-o prejudicam claramente a nossa economia. Este distanciamento e a incapacidade do legislador de saber ouvir e sentir o pulsar regional, onde as medidas vão ser aplicadas e sentidas, levam que o dito “edifício legislativo”, fique fragilizado na fase de implementação.

Para além dos erros comuns a várias transposições de Directivas Europeia, no caso da “nossa” Lei da Água destacam-se dois equívocos:

De facto, a DQA sendo uma directiva europeia mais pensada para resolver os graves problemas de qualidade da água no norte da Europa, deveria ser adaptada e aplicada na zona mediterrânica com particular cuidado, porque aqui, mais do que a preservação da qualidade da água, está em causa a preservação da continuidade da actividade económica e o povoamento de algumas regiões rurais. De certa forma, a DQA reconhece esse aspecto, permitindo que cada Estado membro, efectue a transposição com as devidas adaptações. Nós, como bons alunos, pouca importância demos a essa liberdade (por exemplo os nossos pequenos canais de rega são consideradas “massas de água”, equiparados aos enormes canais navegáveis do norte da Europa), pelo que se transpôs com pouca inteligência, não aproveitando a margem que nos foi permitida.

Mas, a principal lacuna legislativa, passou pelo facto de o Ministério do Ambiente, aparentemente, ter ignorado o Ministério da Agricultura (Autoridade do Regadio), esquecendo e marginalizando a realidade e a historia do fomento hidroagrícola em Portugal, como se o maior utilizador de água do Pais não tivesse qualquer papel na aplicação da Lei da Água. Em resultado desse facto, constata-se incompatibilidades legislativas, reacções antagónicas entre organismos e mau estar geral entre os agentes tutelados pelo Ministério do Ambiente e os tutelados pelo Ministério da Agricultura… sem qualquer proveito para o Pais.

2º – A capacidade de dialogo com os cidadãos

Infelizmente para muitos dirigentes da Administração, a consulta publica é um mero expediente, um formalismo que é imposto superiormente – neste caso pela DQA – que apenas atrapalha e atrasa um processo que de uma forma iluminada já alguém decidiu ser o melhor para todos. Na aplicação da Lei da Água em Portugal tal aplicou-se de facto. O esforço da Administração para envolver o maior número de organizações e cidadãos foi mínimo e mesmo aqueles que decidiram participar viram as suas expectativas defraudadas, quer pela simples ignorar das suas sugestões ou mesmo pela alteração dos pressupostos previamente anunciados. Quem participa em consultas públicas deve ter consciência de que não será admissível que a Administração incorpore todas as sugestões e propostas, até porque algumas desvirtuavam o sentido e objectivo geral da DQA. No entanto, neste caso, foi evidente que não seriam incorporadas opiniões que não estivessem de acordo com a programação pré concebida, por mais sensatas e equilibradas que fossem essas sugestões. Tem sido comum neste processo transformar sessões de consulta pública e participação em sessões de propaganda e apresentação de medidas previamente aprovadas, ficando a ilusão de uma participação e consulta meramente fictícia.

3º – Capacidade de delegação e envolvimento

Desde logo se constatou que, ao nível da implementação da DQA, seria exigida a criação de mais 5 novos institutos públicos, os quais naturalmente não poderiam funcionar sem os quadros de pessoal adequados, sempre insuficientes, na maioria com a necessidade de novas sedes e reestruturação de infra-estruturas próprias, com os necessários meios materiais e com um orçamento adequado à excelência do serviço a prestar. Em pleno contra ciclo e com indicadores bem claros, de índole nacional e de alerta internacional, que pressionavam para reduzir o peso do Estado e toda a maquina que tem levado o Pais á ameaça da bancarrota, eis que se insiste em justificar a necessidade fundamental de mais 5 novos organismos Estatais. E neste caso não se olhou a meios para atingir os fins: antecipou-se a cobrança da Taxa de Recursos Hídricos (TRH) para 2008, quando na própria consulta publica se anunciou 2010, tal como permitia a DQA, na ânsia de financiar as ARH’s que só no final de 2008 viriam a existir legalmente. Assim a TRH, que tem princípios nobre e até certo ponto aceitáveis, de uma taxa passou a ser um imposto, apenas para alguns que estavam identificados (regantes dos aproveitamentos hidroagrícolas) uma vez que, sem lhe estar apenso qualquer serviço ou plano de investimento, ou mesmo estudo de base, só nesse contexto se pode entender.

A Lei da Água refere a possibilidade de constituição de associações de utilizadores, refere a delegação de competências, mas tal até hoje não passa de simples carta de intenções, que estou certo quando as ARH’s já tiverem bem instaladas poderá ser equacionado, não faltando então importantes anúncios de descentralidade. Delegações de competências só se registaram duas: O Estado delegou no Estado, no caso da ARH Alentejo que delegou na EDIA, parte das suas funções no EFMA e o INAG delegou na CAP a inscrições e cadastro de origens de água, após a celebre trapalhada que foram os sucessivos adiamentos dos prazos previamente estipulados pelo INAG para o efeito, que ficou conhecida popularmente como a “lei dos poços”.

Não está em causa a necessidade de constituição das 5 ARH’s e o importante papel que devem ter na implementação da lei da Água. O que parece errado é a génese da sua constituição ter sido virada para dentro, com ânsia de recolher verbas apenas para se instalar, autosustentar e crescer à semelhança de tantos outros organismos do Estado, com uma incapacidade de diálogo e delegação que tem levado a um distanciamento dos cidadãos e suas associações da Administração.

4º – Atraso na implementação

Ninguém em Portugal estranha os atrasos. A aplicação da DQA no nosso Pais não será excepção, sendo naturalmente invocados diversos factores que justificarão esse incumprimento. Desde logo, é típico, a falta de meios humanos, financeiros, materiais, etc, sendo a actual conjuntura económica a “cereja no topo do bolo” para esta justificação.

Como é de esperar ninguém assumirá erros ou culpas próprias e muito menos as que aqui são identificadas.

Perante a ameaça da UE de penalizar Portugal pelo atraso na apresentação dos PGRH e da respectiva implementação, há que acelerar o processo, justificando-se dessa forma o ainda maior aligeirando da consulta pública, bem como o reforço a todo o custo dos meios das ARH. Será invocado que só com o reforço de meios (mais funcionários, mais equipamentos, mais viaturas, mais adjudicação de estudos externos, mais orçamento), será possível conseguir recuperar o atraso. Dialogo com os cidadãos, envolvimento das associações, autarquias e agentes locais, bem como delegação de competências e protocolos tendo em vista a implementação de medidas, será algo a equacionar muito mais tarde.

5º – Agricultura versus Água e Ambiente

Até agora, fruto da deficiente ou inexistente articulação do Ministério do Ambiente com o Ministério da Agricultura e de uma abordagem menos correcta de ambos, nos últimos anos criou-se a imagem que de um lado estão os ambientalistas e de outros estão os agricultores, havendo mesmo reacções de hostilização mutua, com radicalização de posições.

Como não se antevê que Portugal passe a ser um único parque natural e que apesar de tudo os ambientalistas também necessitam de alimentos cultivados pelos agricultores, parece-me que a melhor solução será assentar algumas ideias e desmistificar alguns conceitos.

Refiro este aspecto porque a água podia deveria ser o elo que une os dois pontos de vista: há que cuidar do meio ambiente e preserva-lo, produzindo alimentos de forma sustentada, gerindo a água disponível, tendo em vista as gerações vindouras.

Não sendo os agricultores “exterminadores” do meio ambiente, até porque as suas famílias e descendentes são os que provavelmente vão continuar a viver no meio rural e a usufruir ou sofrer as consequências das suas acções, há que analisar as questões das interacções do homem com o ambiente, através da actividade económica que é produzir alimentos, com pragmatismo.
Até agora, o Ministério do Ambiente ao chamar a si a responsabilidade da aplicação da Lei da Água perdeu uma oportunidade de colocar os agentes rurais em sintonia por esta causa nacional (mundial) que é continuar a produzir de uma forma sustentada em harmonia com o meio ambiente.
Quem conhece e tem acompanhado de perto a agricultura portuguesa sabe que nos últimos 30 anos passámos de um sistema massificado e maximizador da produção bruta, independentemente das consequências associadas, para um sistema de agricultura muito mais equilibrado e sustentável. Hoje, por maior conhecimento e consciência dos agricultores e por natural imposição de um código de boas praticas agrícolas a que estão associadas medidas de condicionalidade, pratica-se uma agricultura muito mais racional, baseada na rentabilização dos custos e consequentemente dos inputs. Hoje, com melhores conhecimentos técnicos e recorrendo a novas tecnologias utiliza-se melhor a água disponível.

A valorização do trabalho do agricultor e todas as externalidades positivas também deveriam ser reconhecidas, o que normalmente só acontece, quando se viaja pelo interior e se observa o abandono, ou mesmo quando se constata a realidade que são os fogos florestais. A recente crise alimentar (a que se seguirão outras) também fez despertar algumas consciências para a insegurança que é a dependência nacional do exterior. É que de facto em Portugal os alimentos podem deixar de “nascer” nas prateleiras dos supermercados, quer pela escassez dos mesmos ou pela escassez financeira.

Pode-se e deve-se fazer melhor, para tal os sectores mais ligados a questões ambientais devem unir esforços aos sectores ligados à agricultura, trabalhando para obter resultados efectivos, sendo a água um elo comum.

Nota final

A recente “fusão” do Ministério do Ambiente com o Ministério da Agricultura dá alguma esperança que se venha a corrigir alguns lapsos que foram cometidos na implementação da Lei da Água. Os agricultores portugueses querem uma implementação da Lei da Água que vá de encontro às suas expectativas. A produção da maioria dos alimentos exige a adução de água, a qual pode ser gerida, em quantidade e qualidade, de forma sustentada, valorizando o preservando o recurso. A participação e empenho dos sectores ligados ao mundo rural pode e deve ser maior. A Lei da Água não pode ser imposta e executada apenas pela Administração, deve ter a colaboração e empenho directos dos cidadãos e suas organizações representativas.

Que gestão para as áreas regadas do Alqueva? – Ilídio Martins


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