Corre Portugal o risco de Desertificação? – Mário Carvalho

A desertificação pode ser entendida como a perda da capacidade produtiva dos ecossistemas de uma região, ou no seu sentido mais lato, como o despovoamento uma determinada região por esta deixar de ser atractiva para os seus habitantes em que, para além das causas ambientais, há razões económicas e sociais para essa percepção. Nesta perspectiva mais lata, pode considerar-se que a generalidade do interior do país corre riscos de desertificação, pois mesmo nos casos em que não se verifica uma diminuição da capacidade produtiva física dos ecossistemas, a degradação relativa das condições económicas do sector agrícola e as menores oportunidades à disposição das populações do interior (económicas, educativas, de acesso à saúde, etc.) levam à sua migração. Se é certo que a sustentabilidade do interior do país pode e deve passar por uma maior diversidade da sua economia, é evidente que a sua vitalidade depende do sector agrícola, pois é à volta deste sector que outros negócios se podem instalar, quer a montante (empresas que vendem produtos e serviços à agricultura), quer a jusante como sejam os casos do agro-turismo e indústrias agro-alimentares. As dificuldades de sustentabilidade da generalidade dos sectores agrícolas em Portugal, muito em especial do seu interior, são várias e prendem-se com causas estruturais e ambientais e a falta de uma estratégia das políticas públicas.

Do ponto de vista estrutural a agricultura portuguesa está assente numa classe empresarial envelhecida e pouco instruída, problema este que se tem vindo a agravar. Entre 1999 e 2009 a idade média dos produtores agrícolas subiu de 59 para 65 anos. Mais grave ainda é a perda de produtores mais jovens (Tabela 1) o que para além de outros problemas, significa uma menor capacidade de inovação tecnológica, sem a qual não é possível melhorar a eficiências dos diversos sectores agrícolas. A juntar à estrutura etária temos o baixo grau de formação (89% dos produtores só têm formação prática) e uma estrutura fundiária muito repartida e de pequenas dimensões, em que 76% das explorações agrícolas têm menos de 5 hectares.

Tabela 1: Variação percentual do número de produtores agrícolas por faixa etária no território continental, entre 1999 e 2009 (Fonte: INE – Recenseamento Agrícola de 2009)

Estrutura Etária dos Produtores Total
<35 Anos 35-<45 Anos 45-<65 Anos >65 Anos
-62% -54% -36% -7% -28%

Do ponto de vista ambiental são sobejamente conhecidas as nossas limitações, quer climáticas quer edáficas. A concentração das chuvas no Inverno cria problemas de encharcamento e erosão dos solos, enquanto a sua escassez de Primavera e Verão conduz a perdas de rendimento por deficiência hídrica, características estas que estão associadas a uma desconcertante variabilidade climática. As alterações climáticas que se prevêem para o nosso país, em virtude do aquecimento global, agravam a situação, pois teme-se o aumento da frequência de situações extremas, quer de invernia quer de seca. A generalidade da superfície agrícola nacional é composta por solos pouco férteis e instáveis do ponto de vista estrutural, o que agrava os problemas de encharcamento, erosão e secura. Os solos com elevada capacidade de troca catiónica, parâmetro relacionado com a sua capacidade de fornecer nutrientes às plantas, representam apenas 4,2% da nossa superfície agrícola. Nos restantes solos a sua fertilidade está normalmente dependente do seu teor em matéria orgânica, mas mais de 70% dos nossos solos apresentam um teor orgânico muito baixo. A acidez dos solos portugueses é generalizada, o que dificulta também a absorção de alguns dos nutrientes mais importantes para as culturas e, em muitos casos, permite o aparecimento de toxicidades de elementos como o alumínio e o manganês.

Tabela 2: Algumas características da superfície agrícola portuguesa (5400000 ha). C.T.C. – capacidade de troca; M.O. – teor de matéria orgânica do solo. (Fonte: Alves, 1989)

C.T.C (meq/100 g solos) M.O. (%) (0-20 cm) pH (água)
Valor % Área Total Valor % Área Total Valor % Área Total
>20 4.2 >2 27.5 >6.5 11.8
10-20 70.2 1-2 2.2 5.5-6.5 5.3
<10 25.2 <1 70.4 <5.5 82.9

Em relação directa com as causas estruturais e ambientais descritas, a inovação tecnológica de boa parte dos sectores agrícolas portugueses, nomeadamente os mais representativos do interior do país, é muito escassa. Contudo há aqui uma responsabilidade das políticas públicas, uma vez que a investigação agrária há muito que deixou de ser uma preocupação da política agrícola portuguesa. Uma política de investigação e divulgação aos agricultores constrói-se baseada em quatro pilares: infra-estruturas, recursos humanos, programas de investigação e extensão rural. Se admitirmos que a prioridade da investigação agrária em Portugal deverá ser o aumento da sustentabilidade económica e ambiental dos principais sectores, particularmente os que estão em pior situação, então toda a atenção deve ser concentrada no solo e na melhoria das suas qualidades, pelo que a primazia deve ser dada à investigação aplicada e de longa duração, uma vez que as alterações das propriedades do solo levam tempo a ocorrer. Isto tem implicações na definição dos pilares acima referidos. As infra-estruturas devem contar com campos experimentais e estes devem estar localizados nas regiões e sistemas a estudar, o que obriga a igual dispersão dos recursos humanos. No entanto, nos actuais quadros de investigação do Ministério da Agricultura existem 121 investigadores, sendo que 99 se encontram em Oeiras e no interior do país apenas 8, em Elvas. As verbas para programas de investigação estão todas na dependência do Ministério da Ciência e Ensino Superior, atribuídas a projectos de curta duração (até três anos) e cuja prioridade é a publicação científica e não a melhoria do desempenho da agricultura portuguesa de uma forma directa. Como exemplo pode referir-se que nos projectos aprovados pela FCT em 2008 na área agrária, apenas 3% em valor foi atribuída a projectos que abordassem tecnologias de produção e, do ponto de vista geográfico, 72% das verbas foram atribuídas a instituições situadas em Lisboa e no Porto. A falta de uma investigação agrária aplicada e direccionada para a melhoria do desempenho dos diversos sectores agrícolas será certamente o pecado original da agricultura portuguesa.

Como resultado de todas estas condicionantes, o número de explorações agrícolas que são consideradas viáveis e competitivas do ponto de vista económico (num mercado aberto) representam apenas 7% em número. As explorações viáveis economicamente mas não competitivas representam 15% (mas 44% de superfície agrícola útil – SAU) e as que são viáveis mas sem remunerarem alguns factores (como o trabalho familiar) representam 75% (43% da SAU). Há ainda um remanescente de 5% de explorações (2% da SAU) que, mesmo com o actual nível de ajudas, não são consideradas viáveis do ponto de vista económico. No entanto, o nível de conhecimentos actualmente existente poderia permitir melhorar de uma forma considerável o desempenho económico das explorações consideradas viáveis mas não competitivas (87 % da SAU) e o desempenho ambiental de todas elas. Para isso será necessário instituir políticas agrícolas estáveis e sectoriais (uma vez que os problemas dos diferentes sectores não são iguais) e que coloquem a defesa do solo no centro da sua atenção. De facto, se a falta de uma investigação agrária aplicada pode ser considerada o pecado original da agricultura portuguesa, a pouca importância dada à conservação do solo e melhoria das suas condições pode ser considerada o seu pecado mortal. Se existe factor que por si só pode acelerar a desertificação do interior do país é a erosão do solo.

O controlo da erosão do solo é a condição base para se proceder a uma recuperação da sua fertilidade e melhoria das relações hídricas. Através de técnicas de sementeira directa e da manutenção de resíduos na superfície do solo (área de investigação a que a Universidade de Évora se dedica há trinta anos e é líder em Portugal) é possível, de imediato, reduzir as perdas de solo por erosão para níveis inferiores aos da capacidade de regeneração do próprio solo. Na Fotografia 1 mostram-se duas áreas de um campo de demonstração, numa empresa agrícola privada, com a cultura de milho em Maio de 2003. A área da esquerda, cultivada pelo método tradicional, o utilizado à data pelo agricultor, foi devastada por chuvas intensas ocorridas no mês de Maio. No entanto, na área da direita, semeada em sementeira directa, a protecção do solo foi total.

Mas os dados experimentais obtidos mostram também que o recurso à sementeira directa e a manutenção dos resíduos das culturas no solo permitem, no médio prazo (cerca de 10 anos), duplicar o teor do solo em matéria orgânica e este facto altera por completo as relações do clima e do solo com as culturas. O solo enriquecido em matéria orgânica permitiu simultaneamente um aumento de 30% na produtividade da terra e uma redução de 50% nas necessidades de adubo. Conseguiu-se ainda uma menor interferência das condições climáticas no desempenho das culturas, quer em anos de seca (por maior armazenamento de água no solo), quer em anos de muita chuva (por melhor drenagem), tornando assim os sistemas de culturas mais adaptados às alterações climáticas previstas para o nosso país. O aumento da produção das culturas e a redução de gastos (menos energia porque não se mobiliza o solo e menos adubos) permitiu duplicar a eficiência energética do sistema, que passou de 5,3 MJ de energia gasta para produzir um quilograma de trigo, para 2,6 MJ. A eficiência económica do sistema aumentou igualmente, como não podia deixar de ser e a conta de cultura do trigo passou de uma margem líquida nula (ou seja cultura só viável com apoios) para uma margem líquida de 250 euros/ha (ou seja cultura competitiva).

Respondendo à questão inicialmente colocada, poder-se-á dizer que sim, Portugal enfrenta um sério risco de desertificação que resulta de causas ambientais (clima e solos), tecnológicas (sistemas de culturas que desprotegem o solo) e estruturais (dimensão média das explorações, idade e preparação dos agricultores, ausência de uma política de investigação e extensão, ausência de políticas agrícolas sectoriais e estáveis a médio prazo), risco este acrescido por factores como as alterações climáticas, o previsível aumento dos custos dos factores de produção agrícolas (muito baseados no custo da energia) e a competição internacional de regiões do mundo com melhores condições ambientais e estruturais. No entanto, o nível actual dos conhecimentos permite começar a inverter a situação desde já e, sem ser possível definir uma única estratégia para todos os sectores agrícolas (e são muitas as acções que se podem e devem implementar), a alteração mais importante passa por colocar a defesa do solo no centro da nossa política agrícola e ter a perseverança e estabilidade para esperar pelo menos dez anos para se obterem resultados visíveis.

Uma nota final para referir que outros perigos existem para a desertificação dos nos campos, como a sobre exploração dos recursos hídricos subterrâneos (como é mais visível no Algarve) ou a salinização dos solos por utilização de água de rega de fraca qualidade (por exemplo nos novos regadios do Alqueva, particularmente nas zonas mais secas), mas que não é possível tratar destes aspectos num texto desta natureza.

Mário José Carvalho,
Professor Catedrático do Departamento de Fitotecnia da Universidade de Évora


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