O sector do leite e produtos lácteos vale, hoje, um volume de negócios anual próximo dos dois mil milhões de euros. Vale 1,3% do PIB, vale quase 15% do sector agro-alimentar e é um dos mais importantes subsectores daquele que continua a ser o mais importante sector económico do país.
Na área da transformação colaboram cerca de 10 mil trabalhadores. Dele dependem quase 10 mil explorações leiteiras que dão trabalho e geram rendimento a mais de 30 mil pessoas. Do sector lácteo depende – directa e indirectamente – o rendimento de quase 100 mil famílias.
O convite para a Audição organizada pela Comissão Parlamentar de Agricultura refere que “o sector produtivo leiteiro vive um período de grande agudização dos seus problemas económicos, estando mesmo em causa, a sustentabilidade de muitas explorações” e essa é uma verdade inequívoca.
O agravamento dos factores de produção, que está a colocar em causa a viabilidade das explorações, é, contudo, paralelo ao que se vive no sector industrial, onde para além dos sucessivos aumentos do preço do leite ao produtor há uma inflação galopante que ataca os restantes custos de produção: combustíveis, energia, transportes, embalagens,…
Em relação ao preço do leite, em Dezembro, último mês relativamente ao qual possuímos informação, Portugal apresenta um preço médio de 32,2 cêntimos face a um preço comunitário de 32,3 cêntimos. O preço do leite no Continente subiu para os 33,4 cêntimos, ou seja os preços do leite no nosso país voltaram estar em linha com os preços praticados na União Europeia. Mas gostaríamos, também, de recordar que, em relação há um ano atrás, o preço ao produtor nacional aumentou 11,5% (ou seja 3,3 cêntimos). Se nos reportarmos apenas aos preços do leite no Continente aquela percentagem sobe para quase 13%, isto é, mais 3,8 cêntimos.
Apesar disso, gostaríamos de chamar a atenção que estes aumentos têm sido feitos apesar de não se verificar uma escassez sensível do leite no mercado e que estes aumentos têm sido feitos apesar de as empresas industriais não estarem a conseguir repercutir os incrementos dos preços do leite e dos outros factores de produção nos seus preços de cessão, ou seja, nos preços de venda dos seus produtos aos seus clientes directos: as grandes cadeias de distribuição.
Seria importante falar da evolução da política comunitária para o sector e muito especialmente para o desmantelamento do sistema de quotas leiteira ou sobre o respectivo impacto na estrutura da nossa produção leiteira ou sobre o aprovisionamento das unidades industriais portuguesas, mas queria direccionar a minha atenção para o que consideramos um facto: a forma mais viável de atingir a sustentabilidade da fileira passa por conseguir vender bem os nossos produtos, por colocar os nossos produtos no mercado de forma rentável.
Porém, é necessário que o mercado funcione, que funcione de forma transparente e mais justa, dando oportunidades similares a todos os produtos, proporcionando uma adequada repartição da rentabilidade pelos diferentes elos da cadeia!
A pressão exercida pela distribuição moderna é sentida por todos os sectores ditos do grande consumo, mas é especialmente forte no sector de lacticínios, seja por se tratar de um sector que fornece um leque alargado de produtos básicos, seja por ser dos sectores fornecedores mais organizados, seja, por muito paradoxal que tal possa parecer, pelo facto de o sector ser autosuficiente e especialmente direccionado para o mercado nacional.
Recorde-se que os fornecedores pagam elevados valores para vender os seus produtos na distribuição. Esses pagamentos ultrapassam geralmente os 40% do valor das suas vendas às grandes cadeias comerciais e esses pagamentos assumem as formas mais imaginosas.
Os mais importantes clientes exigem aos seus fornecedores margens garantidas, mas pretendem, ainda assim, apresentar ao consumidor os preços mais baixos do mercado. É, verdadeiramente querer o melhor dos dois mundos… as melhores margens comerciais e os preços ao consumidor mais competitivos…
A ausência de alternativas equivalentes e o risco de saída de linha são argumentos que fazem com que as empresas fornecedoras sejam coagidas a aceitar estas exigências.
As empresas fornecedoras são confrontadas, para além disso, com a fortíssima concorrência dos produtos de Marca de Distribuidor, que apresentam como principal argumento comercial os preços mais baixos. Especula o consumidor como é possível o diferencial de preços que se verifica e deixa-se transparecer, sem nunca o desmentir, que alguns – as cadeias de distribuição – estão preocupados com o bem-estar e o rendimento disponível dos consumidores, enquanto outros – os fabricantes – querem apenas manter os seus lucros e a sua rentabilidade.
Mas será essa, efectivamente, a realidade? Será que os produtos de marca própria têm uma estrutura de custo assim tão distinta? Será que os produtos de marca branca e os produtos de marca de fabricante, quando entram nos armazéns da distribuição, apresentam realmente aqueles diferenciais de preço? Será que as margens que os distribuidores aplicam aos seus próprios produtos são idênticas às que aplicam aos produtos das marcas de fabricante? Há ou não subsidiação cruzada entre produtos?
Na verdade, aplica-se aquilo que se diz no anúncio do Pingo Doce: “baixa-se de um lado, aumenta-se do outro”… Nunca se deve perder de vista que o preço de venda ao público dos produtos é da inteira responsabilidade do distribuidor, que a margem que é aplicada a cada produto é da inteira responsabilidade do distribuidor.
Em Outubro último, a Autoridade da Concorrência apresentou o seu relatório sobre as relações entre a Distribuição e os seus Fornecedores. O sector lácteo foi daqueles que mereceu uma atenção mais pormenorizada. A Autoridade foi muito assertiva na identificação de muitos aspectos que penalizam o tecido fornecedor, constatando que existe um enorme desequilíbrio nas relações comerciais entre distribuidores e fornecedores e constatando que esse desequilíbrio é agravado pelo papel desempenhado pelas marcas de distribuidor.
Constatou muito, mas as recomendações produzidas no Relatório são praticamente inócuas. Não se questiona a ausência de actuação fiscalizadora, nem é posto em causa o não exercício da função reguladora por parte da própria Autoridade. Sugere-se a implementação de alterações legislativas, mas não se aponta qualquer pista em relação às linhas de evolução da legislação em matéria de concorrência, de práticas restritivas do comércio ou em relação às regras a que deverá obedecer a presença das marcas de distribuidor no mercado…
As dificuldades económicas que o país atravessa levam à utilização de produtos lácteos de marcas de distribuidor como isco para a atracção dos consumidores aos seus espaços comerciais. As políticas comerciais da distribuição acabam por promover uma destruição de valor ao longo de diferentes segmentos de mercado, obrigando as marcas de fabricante a sucessivas compressões de preços e de margens por forma a não perderem definitivamente o mercado para as vulgarmente chamadas marcas brancas.
As mais importantes empresas aparentemente têm que optar entre defender a sua rentabilidade ou defender a sua quota de mercado, mas, em boa verdade, essa é uma falsa questão, pois, no contexto comercial actual, não é possível defender a rentabilidade sem possuir quota de mercado.
O recurso ao aprovisionamento das suas marcas brancas no exterior é outra das formas de colocar pressão adicional sobre o sector, pois, sendo conhecida a existência de produtos lácteos suficientes no nosso mercado, gera-se no seio do sector a necessidade de encontrar formas de escoamento, obviamente menos rentáveis, para a matéria-prima sobejante.
Já falamos do agravamento dos preços do leite à produção, mas as indústria lácteas confrontam-se, para além disso, com aumentos nos restantes factores de produção que excedem também os 10%. O impacto sobre o custo total dos produtos ronda os 8 a 9%.
Contudo, a distribuição tem sistematicamente recusado todas as propostas de actualização dos preços por parte dos seus fornecedores.
O bloqueio total à aceitação desses aumentos de preços é justificado pelos distribuidores com as dificuldades financeiras dos nossos consumidores, mas tal não os impede de exigir condições de fornecimento ainda mais gravosas aos fabricantes.
A manter-se este estado de coisas, muitas empresas no sector poderão ser, a breve trecho, obrigadas a implementar cortes radicais nas suas estruturas, com potencial impacto muito negativo também a nível de emprego e, por outro lado, estarão incapacitadas de actualizar os preços do leite ao produtor, colocando em sério risco uma enorme parcela da produção leiteira nacional.
Referia há dias o presidente da APED em declarações públicas que “a distribuição não é um serviço público. É um negócio e tem o direito de decidir que marcas/produtos coloca na prateleira” e, acrescentamos nós, de decidir também a origem desses produtos, e a prática há muito que se encarrega de confirmar – sem qualquer sombra de dúvidas – essas afirmações.
A indústria gostaria, obviamente, de poder comprar os volumes de que necessita, quando deles necessita, com a melhor qualidade possível, ao menor preço possível… Dir-se-á que é exactamente isso que a moderna distribuição faz, o que não deixa de ser verdade!
No entanto, há entre as duas – indústria e distribuição – uma significativa diferença: a indústria depende do produtor de leite, dos seus produtores de leite, destes produtores de leite; a moderna distribuição depende dos seus fornecedores, mas destes fornecedores ou de quaisquer outros: portugueses, franceses, holandeses ou polacos…
A discussão hoje, a nível nacional e europeu, faz-se em torno da questão da criação de condições para que seja possível pagar um preço justo ao produtor. No entanto, por muito que os políticos e as políticas pretendam, por si só, resolver essa questão, nunca será possível pagar um preço justo ao produtor, se o mercado não pagar um preço justo pelos produtos fabricados com o seu leite.
E é fundamental que todos percebam que tão importante como o preço que o consumidor paga quando compra o leite, o queijo ou o iogurte num qualquer supermercado, é o preço que é pago a quem fabrica esses mesmos produtos, porque há que adquirir a consciência de que essas duas realidades são cada vez mais distintas.
Apenas resolvendo esta dificuldade, ou seja, se conseguirmos que o consumidor pague um preço adequado pelos produtos lácteos que adquire e se conseguirmos também que o fabricante seja justamente remunerado pelos produtos que fornece, então sim, será possível pagar de forma sustentada um preço mais justo ao produtor…
Pedro Pimentel
Presidente da Direcção da Associação Nacional dos Industriais de Lacticínios (ANIL)