Formação de preços e construção de equilíbrios na cadeia alimentar – Pedro Pimentel

Pressuposto de base: da mesma forma que existe uma forte interdependência entre a produção primária e o sector da transformação agro-alimentar – que em muitos casos se constituem como verdadeiras fileiras à escala local, regional ou nacional – essa interdependência é igualmente fundamental no relacionamento entre fornecedores (sejam eles produtores ou transformadores) e distribuidores.

Sem qualquer hipocrisia ou ironia, o desejo dos fornecedores é, obviamente, relacionar-se com operadores da distribuição fortes, competitivos, rentáveis e saudáveis.

São esses os operadores que dão maiores garantias de continuidade de negócio. São esses operadores que dão maiores garantias de um trabalho adequado junto dos consumidores.

Apesar disso, os desequilíbrios ao longo da cadeia alimentar são hoje um facto.

São cada vez mais as vozes que se levantam dando conta do elevado desequilíbrio do poder negocial entre as partes.

Repetem-se cada vez mais as afirmações referindo o forte desequilíbrio na distribuição de valor.

Importa afirmar que este não é um problema português, ou um problema ibérico (os contornos da situação em Espanha pouco diferem daquilo que se vive em Portugal) ou mesmo um problema dos países do Sul da Europa.

Contudo, em alguns países – como é o caso de Portugal – este problema assume dimensão mais relevante, não apenas pela forte concentração no seio da distribuição, mas essencialmente em razão de um conjunto de práticas e comportamentos que afectam fortemente os equilíbrios daquelas relações.

Não valerá a pena perder demasiado tempo a dissecar o conjunto de factores que contribuiu para que se chegasse à situação actual, como será também perda de tempo discutir se a situação actual resulta do aproveitamento excessivo do poder que os distribuidores efectivamente detêm ou se será também o resultado de algum comodismo e facilitismo com que, a dada altura, o tecido de fornecedores encarou o reforço de poder dos principais operadores da moderna distribuição.

Mais do que descobrir se quem nasceu primeiro foi a galinha ou o ovo, importa reflectir nas circunstâncias em que estas relações actualmente se desenvolvem, perspectivar a sua evolução, concertar aquilo que for concertável e regular as matérias em que a tensão que envolve estas relações impede um efectivo estabelecimento de mecanismos de auto-regulação.

Tem sido dedicada atenção crescente ao tema da formação de preços em cada um dos elos da cadeia alimentar, bem como ao de uma melhor aferição da efectiva distribuição de valor entre os operadores que a integram. Quer a nível comunitário, quer a nível de diferentes Estados-membro estão em estudo ou foram já criados Observatórios de Preços e, nalguns casos, de Preços e Margens.
Esta é uma matéria interessante e importante, simples no conceito, mas muito complexa na concretização.

Desde logo pelo leque cada vez mais alargado de bens alimentares existentes no mercado que choca com a necessidade de encontrar e utilizar amostras supostamente representativas de sectores e categorias de produtos.

Depois, porque dentro de cada uma dessas amostras há que integrar produtos – por exemplo, marcas de fabricante e marcas de distribuidor – que têm configurações e estruturas de custos e de margens, completamente distintas.

Uma escolha errada ou enviesada daquelas amostras descredibiliza o esforço dos executores desta tarefa, e, acima de tudo, gera informação errada.

Mas, mesmo que ultrapassado, de forma satisfatória, o exercício de selecção das categorias de produtos mais relevantes e de construção de amostras representativas, há que vencer a dificuldade seguinte, relacionada com a recolha e tratamento de informação.

Se quisermos conhecer os preços efectivos das transacções entre a produção primária e a indústria transformadora, desta para os clientes da distribuição e, finalmente, os preços ao consumidor, temos que ser muito objectivos nas metodologias e nos conceitos a utilizar.

Assim, relativamente aos preços à produção existe uma grande transparência e informação recolhida sistematicamente.

Já em relação aos preços ao consumidor, a complexidade aumenta. São muitas as referências, muitas vezes com valores diferentes em diferentes espaços comerciais. Os preços têm que ser ponderados pelas respectivas quotas de mercado.
No entanto, com mais ou menos trabalho e paciência, pode conseguir-se uma elevada objectividade no apuramento desses valores, pois, afinal, os preços de venda ao público são públicos por definição.

A dificuldade mais séria prende-se, contudo, com os preços de cessão pelos fornecedores aos distribuidores.

A relação contratual (e extra-contratual) entre uns e outros tem um espectro muito amplo e se muitas das suas cláusulas se esgotam em cada transacção efectuada, muitas outras afectam conjuntos mais alargados de transacções, dificultando o cálculo daqueles preços de cessão.

Numa empresa fornecedora, todos os descontos indirectos concedidos e todas as acções e outras despesas promocionais suportadas se reflectem no preço efectivo de venda dos seus produtos.

Para a empresa, o relevante não é o preço facturado, é o valor efectivamente recebido.

Explicando um pouco melhor: se um fornecedor, por via dos múltiplos descontos a que está sujeito, não recebe uma parcela importante dos valores facturados, ou se tem que suportar contribuições, em dinheiro ou em espécie, que lhe são exigidas para a comercialização dos seus produtos, então tudo isso se reflecte negativamente na rentabilidade da sua actividade.

Percebido o conceito, fácil é também perceber que toda essa rentabilidade que o fornecedor perde, corresponde, na mesma e exacta medida, a rentabilidade que o distribuidor conquista.

É essa rentabilidade perdida pelo fornecedor que inibe a diversificação e a inovação dos seus produtos, inibe a realização de acções publicitárias e de comunicação, inibe a progressão na cadeia de valor, limita uma mais justa remuneração das matérias-primas.

Ao invés, é essa rentabilidade conquistada que permite aos principais operadores da moderna distribuição serem hoje os campeões do investimento publicitário, serem os maiores patrocinadores de eventos no país, que permite a esses operadores investir em novos espaços comerciais e em novos segmentos de mercado, que lhes permite apostar em novas geografias.

Não considerar esta realidade ao nível dos trabalhos daqueles Observatórios, escamoteia a verdadeira natureza das relações actuais entre fornecedores e distribuidores e, obviamente, não traduz fielmente a efectiva distribuição de valor ao longo da cadeia de fornecimento.

Mas voltando às relações produção-distribuição, faz sentido recordar que Portugal foi, de alguma forma, pioneiro no estabelecimento de um acordo de auto-regulação entre as partes, com a assinatura, em 1997, do Código de Boas Práticas Comerciais celebrado entre a CIP e a APED.

A incapacidade que aquele Acordo revelou para resolver os problemas existentes naquelas relações, a sua inoperância e o avolumar dos já referidos desequilíbrios negociais, levam, hoje-em-dia, os fornecedores a não acreditar em mecanismos de auto-regulação, a não ser que estes surjam na sequência de um novo quadro legal, nacional e comunitário, que, pela via regulamentar, introduza algum reequilíbrio nas relações entre fornecedores e distribuidores.

Esta via regulamentar deve, em nossa opinião, – quer na esfera nacional, quer na esfera europeia – considerar a correcção de desajustamentos, lacunas e incoerências da actual legislação, em especial ao nível das denominadas práticas comerciais restritivas ou desleais, mas também ao nível da disciplina dos prazos de pagamento, ao nível das cópia parasitárias e ao nível dos procedimentos relativos à avaliação das operações de concentração.

Área mais complexa, mas nem por isso menos importante, é a relacionada com a regulação relativa às Marcas da Distribuição. Nada nos move contra estes produtos, os quais, recorde-se, são fabricados em unidades industriais de empresas fabricantes e até, pela sua crescente quota de mercado, vêm adquirindo enorme importância para inúmeros fornecedores.
No entanto, estas Marcas beneficiam do vazio legal em que se movem para enviesarem o mercado.

Utilizam esse vazio legal para utilizar, em proveito próprio, informação que a outros é vedada. Utilizam esse vazio legal para adoptar políticas de preços e margens que condicionam a visibilidade dos produtos e a escolha dos consumidores.

Estas Marcas permitem que os operadores da distribuição sejam, numa área de elevadíssima concorrência, árbitro e jogador de um jogo em que saem sempre a ganhar.

Neste campo, não se pretende nada de extraordinário: apenas que seja regulada a sua presença no mercado, de modo a que possuam os mesmos direitos, mas também as mesmas obrigações, que qualquer outra marca comercial.

Finalmente, é fundamental que sejam criados mecanismos de arbitragem e resolução de conflitos entre fornecedores e distribuidores,

Mecanismos simples, expeditos e que permitam decisões em tempo útil.

Mecanismos que sejam adoptados, com a necessária força legal, de molde a que as respectivas decisões sejam acatadas, de forma indubitável, pelas partes.

O poder político, para além do quadro legal, deverá também actuar noutras áreas.

Desde logo, estabelecendo uma definição clara das atribuições das autoridades competentes. Certificando-se que não há espaços vazios entre as respectivas esferas de actividade.

Assegurando que a actuação daquelas autoridades deixe de ser escassa, reactiva, morosa e desajustada.

E não esquecendo a necessidade de promover uma monitorização expedita e regular do funcionamento do mercado.

Desta forma, deverão estar reunidas condições para que aquelas entidades consigam combater a especulação económica e a manipulação dos preços junto do consumidor, seja pela via das constantes campanhas promocionais com recurso à figura da venda com prejuízo, seja pela utilização repetida dos chamados produtos e preços-isco, seja ainda pela subsidiação cruzada de produtos, realizada a partir de políticas de margens comerciais anti-concorrenciais e promotoras da discriminação entre produtos.

Por imperativos económicos, mas também por imperativos ambientais, de emprego e de responsabilidade social, o Poder Político deverá também defender as produções locais, aumentar o consumo de proximidade, impor uma melhor identificação da origem dos produtos e desincentivar as importações desnecessárias, defendendo, dessa forma, uma maior soberania alimentar.

Apenas por esta via, as relações entre a Moderna Distribuição e os seus Fornecedores se poderão reequilibrar e ser pautadas por princípios de boa fé, de transparência, de certeza e de simplicidade, de equidade e de não discriminação, de não retroactividade, de reciprocidade e de proporcionalidade na distribuição do risco, princípios estes que, pelo menos em teoria e ao nível do discurso, seguramente todos defendem.

Pedro Pimentel
Presidente da Direcção da Associação Nacional dos Industriais de Lacticínios (ANIL)

* intervenção realizada no âmbito do workshop sobre as “Relações ao longo da cadeia agroalimentar”, promovido no Parlamento Europeu pela eurodeputada portuguesa Maria do Céu Patrão Neves e que teve lugar a 19 de Junho

Regulação ou auto-regulação: é impossível jogar num terreno ‘inclinado’!… – Pedro Pimentel


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