Agricultura biológica, o carro ou a bicicleta?

O meu primeiro contacto direto com o mundo da agricultura biológica ocorreu há 30 anos num encontro sobre pecuária biológica em Barcelos, salvo erro, a 28 de março de 1992. Não tenho a certeza da data do encontro, mas foi o dia da minha inscrição como sócio da AGROBIO – Associação Portuguesa de Agricultura Biológica, que organizou o encontro. Eu tinha uma grande preocupação com as consequências do uso de agroquímicos na agricultura e uma enorme expetativa sobre este sistema alternativo de fazer agricultura, mas nesse encontro, sobre produção de leite havia apenas uma apresentação sobre a utilização de bagaço de cerveja numa vacaria do Algarve. Nada mais soube desse projeto. Anos mais tarde, quando lá fui de férias, já não havia produção de leite no Algarve, convencional ou biológica. Reparei com preocupação na recusa de usar antibióticos para tratar os animais (hoje ainda é assim nos EUA, mas o seu uso é permitido na agricultura biológica da Europa, em caso de “risco de vida do animal”, dobrando o intervalo de segurança). A saúde animal no modo biológico era assegurada por “prevenção” (sem vacinas), produtos “homeopáticos” e terapias alternativas. Percebi que não tinha condições para reconverter a vacaria do meu pai para o modo biológico e fiz o meu projeto final de curso na Escola agrícola sobre a implementação de umas estufas com horticultura em modo biológico. Tive uma excelente nota, mas quando na hora de decidir a minha instalação segui a agricultura convencional. Contudo, não esqueci o assunto. Durante anos recebi e li religiosamente o boletim da associação, a “joaninha”, impressa em papel reciclado. Divulguei a agricultura biológica. Em 2004, na primeira viagem que organizei com a AJADP, levei o grupo a ver uma vacaria no modo biológico no norte de Espanha, na Cantábria. Com 30 ou 40 animais, o agricultor vendia metade do leite para o mercado biológico e metade para o convencional, para não inundar o mercado. Em 2013, já com a APROLEP, organizei uma visita à Casa Grande de Xanceda, na Galiza, com vacaria, produção de iogurtes e queijos. Acompanhei à distância a tentativa falhada de produzir leite biológico na região de Mogadouro e, mais tarde, a experiência positiva na ilha Terceira. E enquanto Vice-presidente da AJAP assinei centenas ou milhares de contratos de assistência técnica a agricultores no modo biológico ou de produção integrada.

Então, porque não faço agricultura biológica? E vocês, porque não compram produtos biológicos? Fui uma vez ao supermercado procurar os produtos lácteos biológicos e reparei nos autocolantes com desconto pela aproximação do fim de prazo de validade. Vemos notícias de aumento da venda de produtos biológicos, mas continua a ser um nicho de mercado, uma pequena percentagem. São produtos mais caros e somos um país com baixo poder de compra. Outra dificuldade é a mudança dos consumidores. Muitos consumidores que procuram a novidade do “biológico” depois seguem à procura de outras novidades e mudam para outros produtos mais depressa do que um agricultor muda a sua quinta para a produção biológica (são precisos dois ou três anos de reconversão). Têm surgido notícias sucessivas de excesso de produção de leite biológico / falta de mercado nos Estados Unidos e na França, onde o preço do leite convencional ultrapassou o biológico nos últimos meses. A área cultivada em modo biológico tem aumentado no nosso país e na Europa, mas tenho a perceção que isso acontece essencialmente por causa das ajudas da PAC e não por causa do mercado.

Outra coisa que acho negativa na agricultura biológica é a recusa em usar vacinas ou pesticidas de síntese (como escrevi acima, já se usam antibióticos se for necessário). É a recusa de aproveitar o trabalho da investigação mais recente. Quem produz no modo biológico tem menos opções para proteger as plantas que cultiva ou os animais que cria. Um produto não é mais tóxico apenas por ser artificial. Um cogumelo venenoso é natural. Veneno de cobra é natural. Um pesticida natural pode ser mais tóxico do que um produto sintetizado em laboratório. O critério para usar um produto devia ser a toxicidade e não o seu modo de fabrico.

Ainda outra coisa que me fez afastar da agricultura biológica foi perceber que havia sempre uma crítica em relação à restante agricultura “convencional”, a agricultura “normal”, a que produz 95 ou 99% dos produtos que se vendem nos mercados. Via mais críticas à outra agricultura do que valorização da agricultura biológica. Produzir biológico fica mais caro porque a produção em geral é menor, os fatores de produção são mais caros (adubos, pesticidas e rações certificados) e há menos ferramentas de proteção das culturas disponíveis. Para convencer o consumidor a pagar mais, o marketing biológico cai muitas vezes na tentação de promover o medo passando a ideia de que os produtos da agricultura normal estão “cheios de químicos”, mas no modo biológico também se usam pesticidas (de uma lista mais restrita). Qualquer produto agrícola que se vende ao público não pode ter resíduos de pesticidas ou antibióticos. Há gente que não cumpre as regras? Sim há. Mas há fraudes em ambas as formas de agricultura, tal como acredito que a maioria seja gente séria e bem-intencionada de ambos os lados. Não há santos de um lado e diabos do outro.

O problema é que a agricultura biológica é mais fácil de defender em debates teóricos do que colocar em prática. Esses debates lembram-me as discussões sobre o carro ou a bicicleta que aconteceram há 20 anos quando chegou a Portugal o “dia sem carros”. Toda a gente dizia na televisão que a bicicleta era uma excelente ideia. Experimentaram um dia sem carros no centro de Lisboa durante um dia da semana e foi um enorme sarilho para levar os idosos ao lar e os miúdos à escola e para o trânsito do resto da cidade. Nos anos seguintes o dia sem carros passou a ser feito num local simbólico e ao domingo, para não dar problemas.

Comparei a agricultura convencional ao carro e a agricultura biológica à bicicleta. Entretanto, tal como as agriculturas, os carros e as bicicletas evoluíram. Surgiram os carros elétricos, que não libertam gazes durante a circulação. Do outro lado, surgiram as bicicletas elétricas que permitem a sua utilização em cidades de colinas como Lisboa. Surgiram ainda ciclovias ao lado das estradas para os automóveis.

Também a agricultura biológica e a agricultura convencional evoluíram. Tenho o máximo respeito por quem consome ou produz no modo biológico por paixão, por convicção ou por ser mais rentável combinar a venda dos produtos com as ajudas existentes. Não digo que dessa água não beberei, mas ao fim de 30 anos à volta deste assunto continuo a apostar na “terceira via” da “produção integrada”, uma espécie de meio termo entre uma agricultura que recusa todos os “químicos” e outra que os utilize de modo excessivo e sem cuidado. Penso que é por aí que passa o futuro, por uma agricultura que aproveita o melhor da inovação e investigação, que escolhe os produtos testados como menos tóxicos e mais seguros, mas sem deixar de garantir a produção de alimentos para todos (escrito para o “Mundo Rural” de Julho / Agosto de 2022

O artigo foi publicado originalmente em Carlos Neves Agricultor.


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