Henrique Pereira dos Santos

O Estado na paisagem e o estado da paisagem

Um dia destes vinha eu no carro e ouvi uma diatribe de Domingos Patacho (que conheço há anos) sobre o facto de num projecto apoiado pelas celuloses estar prevista a plantação de medronheiros mas afinal estarem lá eucaliptos.

Nessa altura nem me apercebi que a Acréscimo – uma associação unipessoal que se entretém a vingar o despedimento do seu único membro conhecido e, por consequência, seu presidente, de um cargo remunerado pelos produtores de eucalipto para fazer lobbying a favor da produção de eucalipto – estava metida ao barulho e conheço o suficiente Domingos Patacho para ter a noção de que não inventaria uma história destas, razão pela qual me interessei por saber o que realmente se tinha passado.

Menos de 24 horas depois tinha o essencial da informação sobre o assunto que me merecia credibilidade: num projecto envolvendo mais de quarenta proprietários e 130 hectares, tinha havido um proprietário que na sua parcela de 4 hectares tinha arrancado os medronheiros que tinham sido plantados de acordo com o projecto a que aderiu, tendo-os substituído por eucaliptos, à revelia do que tinha sido aprovado e de todos os acordos existentes sobre isso.

As celuloses (chamesmos-lhes assim, é mais simples) não só não têm qualquer responsabilidade nessa decisão do proprietário em causa, como imediatamente solicitaram ao Estado que desencadeasse os mecanismos para garantir a legalidade no caso concreto, com arranque dos eucaliptos e reposição da plantação de medronheiros.

A atitude das celuloses percebe-se bem: com um problema reputacional brutal e complicado, a última coisa que pretendem é que projectos apoiados por si contenham espertezas saloias deste tipo (até por terem um longo historial dos efeitos que essa lógica teve na operação do seu negócio, bem ilustrado pela velha piada que se conta no meio, em que os pareceres dos primeiros projectos de plantação que impunham a plantação de folhosas na envolvente das linhas de água eram escrupulosamente cumpridos, plantando eucaliptos, que são folhosas), ao mesmo tempo que pretendem resolver o problema de abastecimento das suas fábricas, ajudando a aumentar a remuneração da actividade de produção de eucalipto através da melhoria da sua eficiência, diminuindo a pressão para que as celuloses subam o preço a que pagam o metro cúbico de rolaria (pelo menos é assim que vejo o assunto, a partir de fora).

No caso, empresas com interesse económico no assunto mobilizaram meios para obter uma melhoria de gestão florestal, com dominância da espécie que lhes interessa, mas integrando outras coisas, e como a sua reputação é muito má, o escrutínio público é muito elevado, permitindo a detecção de ilegalidades e outros problemas de forma bastante eficiente.

Olhemos agora para a área Norte de Ourém. É uma das áreas de actuação, por excelência, de Domingos Patacho, e por isso escolhi este exemplo, mas há por aí mais umas dezenas que são semelhantes.

Cinco anos depois de Pedrogão, e quase cinco anos depois dos fogos de Outubro de 2017, foi recentemente (3 de Agosto) criada uma associação – cujos membros não consegui perceber quem são, mas em que a Câmara Municipal tem um papel dominante, tanto quanto percebo – que irá gerir quase quatro mil hectares, com base em dinheiros do PRR, tendo objectivos semelhantes aos do projecto que citei acima (melhor gestão florestal e uma convivência mais serena com o fogo, havendo com certeza divergências quanto às espécies a usar nesses projectos).

Naturalmente não há aqui ilegalidades a discutir porque, até agora, nada foi feito, para além de papéis. No terreno, está tudo como dantes.

Quem são os proprietários, que compromissos assumem, como se garante a execução do que venha a ser definido, nada disso se sabe, apenas se sabe que há uns dinheiros do PRR para fazer umas coisas num prazo que não ultrapassa os cinco anos, e uma vaga promessa de que Fundo Ambiental pagará a gestão futura da área, sem que ninguém saiba em que termos.

Para quem pense que tudo o que é feito no interesse pessoal não gera benefícios sociais e, ao mesmo tempo, esteja convencido de que o Estado é o garante do bem comum, é fácil escolher o segundo caminho, face ao primeiro.

Olhemos para a realidade tal como ela é.

As celuloses andaram relativamente depressa, de forma mais concreta, envolvendo proprietários concretos – e respectivas idiossincrasias, como demonstra o que combinou uma coisa e fez outra – mobilizando recursos que estão alinhados com os seus interesses, é certo, mas também com os interesses dos proprietários e, aparentemente, estão a obter resultados que são melhores que os da situação de partida: melhor gestão, menos eucalipto, mais mosaico, gestão activa e mais ordenada.

O Estado anda entretido numa matriosca de planos que se unem pelo facto de terem na sua designação “gestão integrada da paisagem”, falando com os representantes dos proprietários e autarquias (que também são o Estado) mas não fazendo acordos concretos com proprietários concretos, alocando meios contingentes, e limitados no tempo, para obter resultados estruturais e prolongados no tempo e, até agora, não tem muito pouco de concreto para mostrar no terreno.

As celuloses são melhores que o Estado na defesa do bem comum?

Nada disso, nenhum deles afecta os recursos em função do bem comum – que provavelmente nenhum deles consegue definir e concretizar à priori, nem eles nem ninguém – os dois afectam os recursos em função dos seus interesses próprios: o lucro, no caso das celuloses, o voto, no caso do Estado (e a propósito disso convém sempre repetir Marx e lembrar que o Estado é um instrumento de repressão nas mãos das classes dominantes).

O que acontece é que os interesses das celuloses estão alinhados com os interesses dos produtores florestais, em grande medida (convergem no sentido de haver melhor gestão do fogo, divergem no magno problema do preço da rolaria à porta da fábrica, por exemplo, no geral há grandes áreas de convergência entre os interesses das celuloses e dos produtores florestais) mas os interesses do Estado estão mais alinhados com os grandes produtores de votos, os habitantes das cidades, pelo que a gestão florestal é um assunto sem grande interesse e em que o retorno em votos, dos recursos alocados – incluindo conhecimento e inteligência -, é sempre baixo.

Acresce que os interesses urbanos na gestão das áreas florestais é dominantemente alinhado com a necessidade de dar “grandes passeios ao Domingo” e não com a remuneração da gestão.

Corolário: do que precisamos não é de chatear as celuloses mais do que merecem – e frequentemente fazem por merecer um bom bocado -, do que verdadeiramente precisamos é que os interessados no pinho, os interessados na cortiça, os interessados no pinhão, os interessados no pastoreio, os interessados na conservação, os interessados na caça, os interessados na filantropia, etc., ponham os olhos no que vai funcionando, percebam as razões de sucesso e falhanço em cada caso, e procurem reproduzir o que parece ser o relativo sucesso das pequenas e recentes iniciativas das celuloses: alinhar incentivos próprios com os incentivos de quem pode realmente fazer a gestão que nos faz falta.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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