Valorização de resíduos em silvicultura – mera eliminação de resíduos ou adequado programa de fertilização florestal? – Paulo Pimenta de Castro

O regime da valorização de lamas de depuração em solos de uso agrícola ou silvícola é definido a nível comunitário pela Diretiva n.º 86/278/CEE, do Conselho, de 12 de junho, transposta para o regime jurídico nacional pelo Decreto-lei n.º 118/2006, de 21 de junho, revogado pelo Decreto-lei n.º 276/2009, de 2 de outubro.

O que refere a propósito o Ministério da Agricultura:

Informa que a utilização destes resíduos em solos de uso agrícola ou silvícola está sujeita a licenciamento, tendo por base dois instrumentos de planeamento e gestão: o plano de gestão de lamas (PGL) e a declaração do planeamento das operações (DPO). O PGL, que deverá ser aprovado pela DRAP territorialmente competente, evidenciará a aptidão dos solos para a aplicação destes resíduos, demonstrando que a mesma é compatível com os objetivos definidos no DL n.º 276/2009 e preverá destinos alternativos adequados quando não seja possível a aplicação da totalidade dos resíduos. A DPO, que deverá ser apresentada às DRAP anualmente para respetiva aprovação, definirá as parcelas que irão ser sujeitas à utilização e a conformidade com o PGL respetivo. Ou seja, existe um “código da estrada” e são emitidas “cartas de condução”.

Reforça que, a compatibilização entre as caraterísticas destes resíduos e dos solos alvo de valorização é avaliada aquando da receção da documentação para aprovação do PGL e posteriormente das DPO. Ainda de acordo com o Ministério, na análise do PGL, as DRAP têm em consideração a caraterização dos resíduos a aplicar, assim como a descrição das caraterísticas dos solos e dos sistemas de cultura. Refere ainda o Ministério que, na DPO são apresentados, como documentos anexos, as análises aos solos e as análises aos resíduos tendo em conta os parâmetros e a frequência legalmente previstos e, para além disso, as quantidades de resíduos autorizados para valorização são estimadas sempre de acordo com o preceituado no Manual de Fertilização das Culturas do INIAV, tendo em atenção a cultura a que se destina.

Esquecem os responsáveis do Ministério que, apesar do excelente e exaustivo trabalho produzido pelo Laboratório Químico Agrícola Rebelo da Silva, integrado no INIAV, o manual em causa não é de aplicação a culturas silvícolas, nem às lenhícolas. Mais, desconhecem-se estudos científicos independentes, realizados a nível nacional, sobre os potenciais impactos da aplicação destes resíduos em ecossistemas florestais. Mesmo ao nível da produtividade em culturas silvícolas e lenhícolas, não se conhecem estudos nacionais desenvolvidos por entidades independentes.

O regime jurídico aplicável prevê que sejam assumidos diversos compromissos pelo requerente (produtor ou operador de gestão de resíduos); de entre eles, salienta-se o de notificar a DRAP territorialmente competente, com pelo menos três dias de antecedência, da data de aplicação dos resíduos, bem como o local e a quantidade. Argumenta o Ministério que, graças a estas notificações, as DRAP podem acompanhar localmente os procedimentos de valorização destes resíduos.

Importa ter em conta que, sobre este tipo de resíduos, ao Ministério do Ambiente compete a fiscalização à sua produção, ao transporte e à gestão, muito embora vários estudos ponham seriamente em causa a eficácia do seu desempenho. Tais estudos referem do desconhecimento do destino de cerca de 50% dos resíduos produzidos no país. Já ao Ministério da Agricultura compete a fiscalização na designada valorização destes resíduos em culturas agrícolas e florestais. Mas, será que as DRAP dispõem de meios para acompanhar devidamente as operações de eliminação de resíduos em culturas agrícolas e, sobretudo, nos de uso silvícola e lenhícola? Quanto às eventuais atividades de fiscalização desenvolvidas pelas DRAP, desconhecem-se relatórios públicos que abranjam as superfícies florestas, designadamente as geridas por grandes players industriais, como a Portucel Soporcel e a Altri. Ou seja, existe um “código da estrada”, são emitidas “cartas de condução”, mas não sabemos se o “código” é respeitado. Ou seja, sabemos que o país é pródigo na produção de legislação, mas também sabemos que peca constantemente na não fiscalização do seu cumprimento.

Em todo o caso, nas ações de fiscalização a desenvolver no âmbito do Ministério da Agricultura, tem de estar em causa não só o acompanhamento dos procedimentos de aplicação dos resíduos nos solos, mas sobretudo a monitorização subsequente e periódica aos potenciais impactos nos ecossistemas e para as populações rurais.

Acontece ainda que, no que respeita à aplicação destes resíduos em solos de uso silvícola ou lenhícola, muitos deles são depositados em solos objeto de certificação florestal. Mas, será que as entidades certificadoras dispõem de normativos, do FSC (Forest Stewardship Council) ou do PEFC (Programme for the Endorsement of Forest Certification) – reconhecidos pelo Ministério da Agricultura, sobre a aplicação destes em ações de valorização como fertilizante orgânico em florestas certificadas? Seguem os normativos e grupos de trabalho do CEN (Comité Europeu de Normalização – CT 308) neste domínio? Justificam a sua ação (ou inação) em estudos científicos independentes realizados em ecossistemas nacionais? O FSC e o PEFC têm a noção de que, para além dos impactos económicos e ambientais, pode estar em causa a saúde pública?

O Ministério e os sistemas de certificação florestal têm de nos esclarecer: A aplicação de resíduos nos solos de uso agrícola ou florestal é uma mera operação de eliminação de um problema municipal ou industrial, ou reveste-se de um adequado programa de fertilização das culturas? Nas áreas florestais, tal carece de uma resposta clara, baseada em estudos científicos independentes, desenvolvidos para as nossas culturas e nas nossas condições edafoclimáticas.

Importa ainda ter em conta que, a aplicação de resíduos em áreas florestais geridas por empresas industriais, sem uma fiscalização transparente por parte das entidades oficiais, mais ainda na ausência de requisitos específicos em auditoria de certificação florestal, acaba por colocar em causa a credibilidade dos esforços que muitos outros fazem na aposta no reconhecimento público da melhoria contínua da sua gestão florestal.

A Diretiva que define o regime de aplicação destes resíduos nos solos é de 1986, quer o FSC quer o PEFC já deveriam ter anunciado requisitos específicos sobre a aplicação destes em florestas certificadas. Mais, o facto de em Portugal as áreas sob gestão da indústria papeleira, produtora destes resíduos, representarem mais de 60% da área certificada, reforça a urgência de assegurar a credibilidade da sua intervenção. Em causa está não só a verificação do cumprimento das disposições legais, mas mais ainda, a verificação da monitorização subsequente dos potenciais impactos sobre a saúde pública, a fauna e a flora, nos solos e nos aquíferos, e na biodiversidade.

Impactos nefastos na aplicação destes resíduos em culturas florestais podem ainda condicionar ou inviabilizar investimentos futuros nas áreas submetidas à aplicação de resíduos.

Paulo Pimenta de Castro
Engenheiro Silvicultor
Presidente da Acréscimo, Associação de Promoção ao Investimento Florestal

Os proprietários de florestas e as suas representantes – Paulo Pimenta de Castro


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