Mas e tantos ambientalistas e investigadores (de várias áreas científicas) podem estar assim tão enganados?
Sim, podem.
Comecemos pela questão da competência dos investigadores (de várias áreas científicas).
Eu posso ser o maior especialista de Linaria ricardoi do mundo e não saber nada das práticas agrícolas que favorecem a espécie nem dos factores económicos e sociais que as influenciam, desconhecendo por completo como está a evoluir o mercado de azeite, para dar um exemplo.
Posso dizer, por exemplo que aparece em “Searas, pousios e prados em olivais tradicionais ou montados, raramente em taludes e bermas de caminhos. Em solos calcários.”. Posso mesmo acrescentar que é um “Endemismo restrito à região de Ferreira do Alentejo, Beja, Cuba e Serpa. Embora possa ser localmente abundante em alguns locais, as alterações de uso do solo (intensificação) nesta região constituem uma séria ameaça à sua persistência.”, sem registar que se referem os solos calcáreos na descrição da sua ecologia e depois se descreve a sua localização numa zona em que os calcáreos são relativamente raros (as duas coisas podem não ser contraditórias, a Linaria poderia estar situado nos poucos calcáreos da região).
Ao mesmo tempo, a lista vermelha da flora justifica a alteração do seu estatuto de ameaça de “quase ameaçada” para “em perigo”, entre outras razões, porque existe “uma redução populacional superior a 30% suportada pelo quase desaparecimento da planta dos Barros de Beja”.
Nestas circunstâncias, a minha opção mais natural, tanto mais que sendo o maior especialista do mundo na espécie forçosamente sei que há muito coisa que não compreendo na ecologia da espécie, é uma opção de precaução: proibir tudo o que possa afectar a espécie, incluindo eventuais núcleos que eu desconheça, ou seja, o melhor é parar de expandir o olival intensivo e manter os usos tradicionais.
Porque o que sei é de Linaria ricardoi, não vejo a menor contradição em ser contra o regadio, cuja principal razão para se expandir é a falta de competitividade dos tais usos tradicionais. A proibição da expansão do regadio não garante que os usos tradicionais se mantenham, pelo contrário, o mais natural é que sejam abandonados, diminuindo as perturbações que tornam possível a sobrevivência da Linaria ricardoi (embora com ganhos para a renaturalização dos sistemas naturais, mas nesses sistemas a Linaria ricardoi tem condições de sobrevivência muito dificeis, porque vive de aproveitar a perturbação dos sistemas, o que é verdade para outros grupos, como as aves estepárias, por exemplo).
Fechado nas minhas certezas, é difícil que me chegue aos ouvidos a história de um grande produtor de olival superintensivo que comprou sete hectares abandonados há mais de dez anos, sem Linaria ricardoi e sem qualquer valor natural relevante, era um terreno que estava por ali, com um valor social marginal ou, usando a terminologia tradicional, não dava palha nem dava espiga.
Depois das tramitações administrativas e legais, dá-se início às operações para trazer esses sete hectares para o olival intensivo e é feita uma gradagem em todo o terreno. Porque a vida é como é, nada correu como planeado, não havia plantas disponíveis para a plantação, e o terreno, depois de gradado, ficou à espera de melhores dias.
Para surpresa para todos, os especilistas na Linaria ricardoi e os produtores de olival superintensivo, depois de uma Primavera, todo o terreno está coberto de outras coisas antes desconhecidas no local, incluindo Linaria ricardoi e outras oportunistas que gostaram da perturbação que não tinha existido nos últimos dez anos.
Algumas peripécias depois, os sete hectares continuam a integrar a área do grande produtor de olival intensivo, mas agora como um banco de sementes para projectos de gestão, conservando-se a Linaria ricardoi e companhia, sendo possível ao produtor, porque gere muito mais área de olival superintensivo, manter esses sete hectares como área de conservação, com gestão activa, se for caso disso, para manter o nível de perturbação favorável à Linaria ricardoi. Ao contrário do que aconteceria se se pretendesse impor administrativamente usos tradicionais que o mercado não valoriza o suficiente para que o gestor mantenha o nível de gestão que, teoricamente, garantiria a conservação da espécie.
Portanto, o primeiro ponto (os outros serão rápidos) está fixado: o facto de se ser o maior especialista num assunto (uma espécie, motas, parafusos, pão, camisas, seja qual for o assunto), diz muito pouco sobre a minha capacidade para integrar esse conhecimento num processo de gestão que seja socialmente útil.
O segundo ponto é muito rápido porque vou remeter para um post meu anterior, sobre como um investigador inegavelmente considerado, pode acabar a dizer disparates sobre um assunto que não estudou, mesmo que esse assunto se relacione com a sua área de investigação.
E chego ao terceiro ponto, conclusivo, que o post vai longo: o que a ciência diz sobre os impactos ambientais dos eucaliptos, é uma coisa, o que diz o movimento ambientalista, é outra, o que a ciência diz sobre o glifosato é uma coisa, o que o movimento ambientalista diz, é outra, o que a ciência diz sobre a relação entre espécies de árvores e fogos, é uma coisa, o que o movimento ambientalista diz, é outra, e há mais assuntos em que é igual (regadio, nitrificação de solos, agricultura intensiva, agricultura biológica, pastoreio, etc.).
Mesmo que a ciência e o movimento ambientalista dissessem as mesmas coisas – uma hipótes muito pouco plausível, nem a ciência, nem o movimento ambientalista são monolíticos – isso não alteraria o essencial: as opções de desenvolvimento social são opções políticas, preferentemente influenciadas pelo melhor conhecimento disponível, mas cujo processo de decisão será sempre um processo complexo em que os governos e os sábios contam muito menos do que pensam.
Que a ciência diga que o regadio, na mesma parcela, é incompatível com a conservação da Linaria ricardoi, é pacífico.
Que a partir dessa constatação se defina qual é a melhor forma de conciliar o regadio e a conservação da Linaria ricardoi é que já não é do domínio da ciência, é do domínio da política, ou seja, da arte do possível, democraticamente legitimada.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.