1- Enquadramento
Seca e escassez de água correspondem a problemáticas distintas, embora ambas complexas e com impactos significativos, sendo muitas vezes coexistentes e interdependentes numa dada região.
As situações de seca, enquanto redução transitória das condições de precipitação, correspondem a um fenómeno natural, de origem meteorológica, que sucede com alguma regularidade. Como tal, é impossível ser evitado e os seus efeitos são tanto mais gravosos quanto mais intensa for a dependência e utilização da água na região afetada.
As condições de escassez estão relacionadas com a influência humana sobre os recursos hídricos, nomeadamente com o nível de utilizações, face às disponibilidades. Porém, não existe um volume fixo de água disponível numa dada região, variando este em função das condições meteorológicas e de armazenamento, seja ele existente, ou possível; de cariz natural (ex. aquíferos), ou artificial (ex. albufeiras). Além do ciclo hidrológico natural, poderá, ainda, ser considerada a exploração de outras origens, como é o caso da dessalinização, o que dificulta a estipulação de limites de utilização.
A seca e escassez de água correspondem, então, a problemáticas distintas na causa que lhes está subjacente. Não obstante, em situações como a região sul da Europa, verifica-se uma forte interdependência entre secas e escassez. De facto, numa região com problemas de escassez, a margem de segurança no abastecimento das utilizações é mais reduzida, tornando a região especialmente vulnerável à seca, por mais ligeira que seja.
2- Avaliação e gestão de secas
Decorre dos pontos anteriores que, não sendo possível controlar, ou até prever, a ocorrência de situações de seca, os seus impactos podem ser mitigados, até certo ponto, através de um correto acompanhamento e definição de estratégias preventivas e de gestão previamente estipuladas. Esse aspeto será ainda mais relevante com a expectável maior frequência na ocorrência de situações severas de seca, devidas a alterações do clima.
No estado do conhecimento atual, existem vários métodos de avaliação de secas, baseados em indicadores/ índices específicos. Porém, nenhum é de aplicação universal, uma vez que as escalas de classificação não atendem às características da região para previsão dos impactos expectáveis. A verificação de impactos é dependente do tipo de utilizações, das origens existentes e mesmo das características socioeconómicas da região, pelo que não é suficiente uma avaliação com base em índices em que a precipitação é a principal componente. É por esse motivo que a população que vive em maiores centros urbanos não tem perceção desses impactos. Porque os potenciais impactos não apresentam a mesma relevância para o tecido socioeconómico e porque os sistemas de distribuição existentes possuem uma maior resiliência.
Como tal, a gestão de secas deverá ser enquadrada no âmbito de uma análise e gestão de risco, devidamente moldada às vulnerabilidades da região. Salienta-se como exemplo, o recurso à avaliação por índices múltiplos, ou a avaliação socioeconómica de impactos de seca1, 2, que poderão, de alguma forma, melhorar a representatividade da avaliação de seca e salientar onde, de facto, os problemas são relevantes e salientar a importância dos impactos face à economia da região.
Além disso, existem, mundialmente, inúmeros exemplos de como um adequado planeamento de gestão de seca, adequado às utilizações e realidade de uma dada região, poderão ser um instrumento muito relevante na prevenção e mitigação de impactos de seca. Desde logo, poderá destacar-se, pela proximidade e relevância na gestão dos recursos hídricos nacionais, o exemplo das entidades espanholas e do trabalho que têm vindo a desenvolver ao longo das últimas duas décadas3.
Importará, salientar a existência, em Portugal, desde julho de 2017, de um Plano de Prevenção, Monitorização e Contingência para Situações de Seca4. Porém, na atual situação de seca verifica-se que, pelo menos na comunicação com a população em geral, não têm sido seguidas as orientações definidas neste plano de distinção dos níveis de seca agrometeorológica e de seca hidrológica.
Por outro lado, esse plano, de cariz nacional, deveria ser complementado por outros mais específicos de âmbito regional e setorial (ex. planos de contingência ao nível das entidades responsáveis por sistemas de captação e distribuição de água, i.e., para consumo humano, ou em aproveitamentos hidroagrícolas, tal como salientado nesse plano), desconhecendo-se, atualmente, o estado de desenvolvimento e de implementação dos mesmos.
3- Avaliação e gestão de escassez
Ao nível da escassez, importará mencionar o estudo levado a cabo para a Agência APA, de “Avaliação das disponibilidades hídricas atuais e futuras e aplicação do Índice de Escassez WEI+”, que esteve em consulta pública até ao dia 30-06-20225 e que já serviu de suporte ao 3º ciclo dos Planos de Gestão de Região Hidrográfica (2022-2027).
Com base nesse estudo, que foi, inclusive, alvo de apresentação e discussão, recentemente, numa sessão pública da APRH- Núcleo Regional Norte6, é possível retirar algumas conclusões relevantes para futuro, nomeadamente, ao nível das disponibilidades naturais:
- As disponibilidades hídricas têm vindo a reduzir nas últimas décadas, prevendo-se que, mesmo na região Norte, se atinja mais de 20 % de redução em relação ao século XX.
- Nas bacias hidrográficas internacionais, os caudais de Espanha poderão ter uma expressão ainda mais significativa, face à maior redução de disponibilidades expectável no lado português.
- As situações de seca tenderão a agravar-se, uma vez que é expectável um aumento do número de dias com ausência de precipitação.
Por outro lado, a quantificação do índice de Escassez WEI+- Water Exploitation Index Plus, por bacia hidrográfica, permite retirar, também no balanço entre disponibilidades e utilizações, conclusões muito preocupantes:
- Apenas quatro bacias hidrográficas (Minho, Lima, Douro e Mondego) possuem níveis de escassez baixa, ou moderada (WEI+ ≤ 30%);
- Cinco bacias hidrográficas (Ave, Leça, Ribeiras do Oeste, Sado, Mira, Guadiana e Ribeiras do Algarve) possuem níveis de escassez severa ou extrema (WEI+ > 50%).
Estes resultados correspondem a uma alteração muito significativa dos valores anteriormente disponíveis7, no âmbito do Plano Nacional da Água, aprovado em 2016, não sendo, no entanto, possível analisar os dados e metodologias considerados neste estudo mais recente, face aos elementos disponibilizados em fase de Consulta Pública.
Atendendo ao natural desfasamento temporal dos períodos de dados de base considerados e das análises propriamente ditas, poderá estar em causa, uma alteração/ atualização da metodologia de cálculo do índice. Não obstante, não será de excluir a possibilidade de, pelo menos parte desse agravamento, resultar da ação conjugada de redução das disponibilidades (atuais e futuras), com um aumento (e/ou melhor quantificação) das utilizações de água.
Nesse contexto, é muito importante que a avaliação de escassez seja integrada e destacada, de forma transversal, nos diversos instrumentos de planeamento e de gestão de recursos hídricos disponíveis8. No que diz respeito a soluções, impor-se-á a consideração de medidas tanto ao nível das necessidades, mas também das disponibilidades, adequadas a cada região e aos principais setores utilizadores envolvidos.
Em todo o caso, de pouco servirá essa avaliação e discussão se a mesma não for devidamente conjugada com os respetivos planos e objetivos de desenvolvimento regional. De facto, além de se avaliarem as soluções disponíveis e as respetivas implicações ambientais e económicas, deverão ser igualmente identificadas e avaliadas as consequências, ao nível do desenvolvimento e dinâmicas socioeconómicas de cada região, se as mesmas não forem adotadas.
Eduardo Vivas
Presidente da Comissão Diretiva do Núcleo Regional Norte da APRH.
1 – Vivas, E. (2011). Avaliação e Gestão de Situações de Seca e Escassez. Aplicação ao caso do Guadiana, Tese de Doutoramento, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
2 – Vivas, E. (2014). Métodos de avaliação de secas para apoio à gestão de recursos hídricos, Revista Recursos Hídricos, Vol. 35, Nº 2,89-97, novembro de 2014. APRH, ISSN 0870-1741|DOI 10.5894/rh35n2-8
3 – Planes de gestión de sequías (miteco.gob.es)
6 – Gestão e Prevenção de Secas na Região Norte – Disponibilidades Hídricas (aprh.pt)
7 – DL_76_2016_Plano_Nacional_Agua.pdf (apambiente.pt)
8 – Planeamento e Ordenamento | Agência Portuguesa do Ambiente (apambiente.pt)
Fonte: APRH