Proibi o meu filho de ir de autocarro para a escola, é muito perigoso! Mas também não lhe consigo dar boleia, por isso agora não vai à escola… ao menos não vai no autocarro com estranhos!
Não fiz isso, mas seria estranho que o fizesse!
Apenas queria ilustrar uma espécie de macro-loucura de grupo que aprece que se apoderou da Europa, e que nos vai levar todos à ruína… e com a Agricultura a ser sacrificada em primeiro lugar. Esta psicose resulta de termos perdido a escala. Não no sentido que se usa coloquialmente de termos perdido dimensão, mas no sentido original da palavra. Perdemos a capacidade de medir. E quando não conseguimos medir, também não conseguimos hierarquizar, com todas as consequências que isso traz.
Como disse, não se trata de um problema exclusivo da agricultura, ou da forma como ela é vista. É um problema de base, de como se vê o papel dos governantes na acção de moldar a vida da sociedade em geral.
Um bom exemplo é a decisão da EU de não permitir a venda de mais carros com motor a combustão, a partir de 2035. A ideia pretende reduzir emissões dos veículos automóveis, e seria boa se tivesse sido apresentada como um objectivo futuro, acompanhado de um plano para o tornar possível. Mas tanto quanto eu consegui apurar ninguém mostrou que tínhamos forma de responder às questões difíceis que precisamos de resolver para que esse objectivo seja possível sem um custo demasiado elevado. De acordo com o Eurostat, produziu-se, na Europa, em 2021 cerca de 2,9 milhões de GWh de eletricidade, sendo cerca de 37% destes de fontes renováveis. Ora, segundo a Agência Europeia do Ambiente, em 2017 (mais recentes dados que consegui encontrar) consumiu-se em transporte rodoviário mais que essa electricidade gerada em 2021, cerca de 3,6 M GWh. Portanto, levantam-se algumas questões que são inexplicavelmente esquecidas nesta decisão para 2035:
- Como será possível sequer distribuir mais do dobro da electricidade que actualmente as redes eléctricas da europa conseguem entregar?
- Se só conseguimos gerar 37% da energia actual com fontes renováveis, como conseguiremos gerar 223% daqui a 13 anos? E isso é assumindo que o consumo energético não aumenta… é que estar a fazer toda esta mudança só para ter as emissões um pouco a montante em vez de no carro é, no mínimo, um erro infantil que não podemos pagar!
- Quanto vai custar toda esta ampliação da capacidade produtiva e quanto vai custar a ampliação da rede de distribuição necessária? Será que havia alternativas com benefício de custo? Será que toda essa obra não terá emissões importantes associadas, que poderão ter um enorme impacto ambiental?
- E que impactos terão as vidas dos europeus, com uma alteração tão conturbada nas suas vidas? É que mobilidade significa, muitas vezes, acesso ao trabalho e à subsistência.
Não me querendo alargar mais no tema, acho que todo o cidadão europeu se deveria preocupar com estas questões, e que não deveria ser aceitável que decisões como estas fossem tomadas sem que o cidadão comum, leia-se o patrão do político num regime democrático, tivesse todas as questões de fundamento esclarecidas.
Mas este texto, por incrível que pareça, é sobre agricultura. E como eu disse no início, a agricultura vai sofrer na pele e em primeira mão desta ilusão em massa que nos assola enquanto europeus.
Se o primeiro exemplo servia para ilustrar a loucura de tomar decisões, ainda que fictícias, sem bom-senso e sem a escala de valores no sítio certo, o segundo, muitíssimo verdadeiro, serve para mostrar como podem estas decisões precipitadas afectar tremendamente a vida do comum dos cidadãos. Ora o mundo agrícola sofre de problemas semelhantes, com a dificuldade de ser impactado a ritmos diferentes da sociedade em geral, o que faz com que esta não esteja a ver o mal que se aproxima até que seja tarde demais.
É assim, na Holanda, em que os agricultores estão obrigados a fechar explorações ou a reduzir os efectivos animais, por decreto, para evitar emissões de azoto para o solo e a água. Os mesmos agricultores que, nos últimos 30 anos, reduziram as suas emissões de azoto em 68% e que apresentaram propostas para continuar a fazer esse esforço de melhoria, viram o governo rejeitar todas as suas propostas de acção e decretar regras completamente implacáveis, sem pesar as consequências – apenas para responder a uma directiva europeia, e apresentando como motivo que o Estado Holandês se tinha comprometido. Ora, foram estimados os impactos disto na sociedade em geral? A alta eficiência dos agricultores holandeses será reduzida porque com os mesmos recursos terão de produzir menos… o que vai acontecer nas zonas onde se vai produzir a comida que deixa de haver? Vão ser produzidos em sistemas tão eficientes como os holandeses? Ou os governantes europeus estão convencidos que qualquer agricultor tem o desempenho daqueles sistemas de alto rendimento? Um produtor da China, da India ou da América do Sul será tão eficiente? Terá igual ou menor impacto? E como é que este problema das emissões de azoto não é abordado de forma igual na Alemanha, ou na Dinamarca
Na minha opinião, a forte campanha contra a alimentação de base animal toldou a capacidade de julgamento dos decisores e este é só um impacto, de muitos. Não adianta explicar que os animais são uma fonte de alimento fundamental para um mundo com população crescente e que mais de 60% da superfície agrícola da Terra não tem condições para produzir alimentos para humanos, mas sim para produzir pastagens, e que os ruminantes são pequenas fábricas que transformam essas pastagens em alimentos para humanos.
Não me entendam mal, eu penso que o uso sustentável dos recursos, com um forte cuidado com o ambiente, é uma obrigação de todos. Uma obrigação moral. Mas, se seguirmos uma escala de valores adequada, escolher não produzir ou produzir menos comida, num mundo com mais gente é completamente imoral. A solução tem de passar por encontrar novos caminhos. Há sempre uma solução técnica e sociológica, e não virá por decreto. É completamente imoral governantes decretarem uma solução para um problema local, que tenha consequências gravosas no contexto global, sem terem mostrado que fizeram uma análise completa e ponderada das consequências para a sociedade e terem demonstrado que a medida tem mais benefício que custo.
Mas num mundo sem escala, isto é possível. Num mundo sem escala, quando isto dá para o torto os decisores encolhem ombros e dizem que não podiam adivinhar. Que fizeram o que estava ao seu alcance, com a informação que tinham na altura, e que consultaram os especialistas. Pois isso não é bom suficiente e não pode ser aceitável.
O Pacto ecológico Europeu, na sua estratégia para a biodiversidade, estabelece um conjunto de objectivos que terão enormes impactos na agricultura como a conhecemos. Temo que mais algumas medidas por decreto e sem uma fundamentação e uma análise adequada se aproximem.
Até 2030, este plano prevê que haja uma redução de 50% na quantidade e no risco dos produtos fitofarmacêuticos utilizados. Prevê também que, até 2030, 25% da área agrícola da EU seja explorada em agricultura biológica e que as perdas de nutrientes provenientes da fertilização sejam reduzidas em 50%, através de uma redução de 20% nos fertilizantes utilizados.
Os decisores políticos ainda vão a tempo de explicar como é que se aplica menos adubo e se limita a protecção das culturas, e não se reduz muito significativamente a quantidade de alimentos produzidos. Ainda vão a tempo de mostrar que esse trabalho está feito e o explicar ao seu patrão, leia-se todos nós, como é que os óbvios prejuízos gerados por estas decisões vão ser compensados por benefícios superiores. É que sem essa análise, este plano pode não ser um bom plano. Sem a escala de valores certa, podemos estar a sacrificar a produção agrícola onde ela é funcional e eficiente, para ir produzir com menos eficiência, ou seja, com mais impacto, noutros locais. Se simplesmente exportarmos os problemas ambientais que estamos a tentar combater, onde estará o valor dessa decisão. E se o resultado for ainda pior porque exportamos os impactos ambientais, mas produz-se menos comida, o que significa que haverá mais fome no mundo, de quem é a culpa?
Miguel Vieira Lopes
COLABORADOR TÉCNICO
mvieiralopes@agroges.pt
O artigo foi publicado originalmente em AGRO.GES.