Henrique Pereira dos Santos

Uma particular noção de Estado – Henrique Pereira dos Santos

Conheço Rui Gonçalves há muitos anos, não somos amigos próximos, mas aqui e ali vamos mantendo contacto.

São inúmeras as alturas em que estivemos em desacordo (bastará, para quem conheça a minha opinião sobre José Sócrates, dizer que foi seu chefe de gabinete logo no início da carreira governamental de Sócrates), mas isso nunca interferiu numa relação esporádica, mas cordial.

Ultimamente encontrei-o mais frequentemente, como presidente da Florestgal, uma empresa pública de gestão florestal criada na sequência dos incêndios de 2017, com a suposta missão de ensinar o padre nosso ao cura, isto é, o Estado iria demonstrar aos proprietários como se geriam matas e povoamentos florestais, qualquer coisa do género.

Penso que a 26 de Setembro, Rui Gonçalves escreveu um artigo de opinião no rescaldo (rescaldo intelectual, que quanto a rescaldos no terreno, é melhor nem falar) dos fogos da serra da Estrela, artigo esse que manifestamente não alinhava como o “vai ficar tudo bem” do governo, ou o “fez-se tudo o que era possível” do presidente da república, era com certeza um artigo discutível, mas tinha uma grande virtude: era bastante factual e todas as opiniões partiam de factos verificáveis.

Devo dizer que mal li o artigo comentei em privado que Rui Gonçalves devia estar a preparar a sua reforma antecipada, mas era uma ironia, eu não tenho grandes ilusões sobre a gestão de topo da administração pública e do governo mas, caramba, ainda tenho uns restinhos de confiança na decência das pessoas.

Puro engano: o sentido de Estado, a necessidade patológica de controlo do discurso público sobre a acção do governo, estão em níveis que, mesmo para mim, são surpreendentes.

Demitir um gestor que se limitou a expressar publicamente uma ideia bem fundamentada, sobre um sector que conhece bem, só porque é um bocado desalinhada em relação às fantasias que se pretendem vender?

Boa sorte, camaradas, a mexicanização do Estado vai de vento em popa, aparentemente o povo gosta porque vos dá maiorias absolutas, mas quando já perseguem os vossos que se limitam a ter um bocadinho de indepedência de espírito, o melhor é protegerem bem as costas, nunca sabe de onde virá a faca que um dia vos tirará do caminho.

Nesse dia, postos em sossego e sem poder, olhem bem para trás para ver se valeu a pena.

A mim parece-me triste chegar à conclusão de que andaram numa roda viva a criar poder para depois “partout, everywhere, em toda a parte, A vida égale, idêntica, the same, É sempre um esforço inútil, Um voo cego a nada”.

O que sobrar em vidinha de conforto faltará em respeito por si próprio, e isso dá muito mau dormir, é chato.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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