As sucessivas crises que têm atingido Cabo Verde, da seca prolongada à pandemia ou ao aumento dos preços, não provocaram fome extrema, mas um terço da população não tem uma dieta saudável, afirmou à Lusa a representante da FAO.
“Não, fome, pelo menos os nossos dados não falam nisso. Mas sim, há 100 mil pessoas que estão numa condição de maior vulnerabilidade, que são as que estão a receber alimentos”, disse Ana Touza, representante em Cabo Verde da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), à margem de uma conferência realizado na Praia para assinalar o dia mundial da Alimentação (16 de outubro).
“Há um número reduzido, não de fome extrema, mas de alta vulnerabilidade”, acrescentou.
Os 100 mil cabo-verdianos que a FAO identifica em situação de vulnerabilidade são pessoas sem trabalho ou acesso a rendimentos, que recebem apoio em alimentos, mas a organização estima ainda que, globalmente, um terço dos cerca de 490 mil habitantes do arquipélago não têm uma dieta saudável diariamente.
“No contexto em que estamos, praticamente um terço da população tem dificuldades para ter uma dieta saudável. Uma dieta saudável é uma dieta equilibrada, estamos a falar de ter proteínas, todos os nutrientes. Então, há um terço da população que tem dificuldades para atingir uma dieta saudável, não estão a fazer todas as refeições por dia ou estão a comer mais cereais do que outros produtos mais nutritivos”, sublinhou Ana Touza.
Em declarações à Lusa à margem da conferência “Sistemas agroalimentares para a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional: Desafios e perspetivas no contexto de crise”, promovida em parceria com o Governo cabo-verdiano, a representante da FAO, instituição que também a 16 de outubro assinala 77 anos de existência e que tem em curso vários projetos de reforço da segurança alimentar no arquipélago, apontou que apesar de Cabo Verde ter uma “agricultura pequena”, produz “alimentos nutritivos e que estão disponíveis”.
“Mas sempre há vulnerabilidade pela importação de alimentos, num contexto em que os preços estão a aumentar, continuam a aumentar”, destacou.
“Cabo Verde tem condições de resiliência diferentes das do resto da região. Primeiro porque tem uma situação de paz e de democracia que em muitos lugares não há e isso dá para pensar, para planear, para tomar decisões, para fazer o trabalho que tem que ser feito. E neste contexto está-se a trabalhar sobretudo em dar acesso a rendimentos a famílias mais vulneráveis”, reconheceu ainda.
No contexto regional, o caso de Cabo Verde, fortemente afetado por mais de quatro anos de seca severa, pelos efeitos da pandemia de covid-19 no turismo – que representa 25% do Produto Interno Bruto – e pela atual crise de preços, quando importa cerca de 80% dos alimentos que consome, é “extraordinário”, enfatizou Ana Touza.
“Mas também é importante dizer que o Governo, o Ministério da Agricultura, está a prever estas situações e a tomar medidas muito antecipadamente. No caso das crises, é preciso ter a capacidade de prognosticar, de ter informação chave e reagir antecipadamente. E aqui o Governo está a reagir antecipadamente e tomou medidas muito antes do que outros países da região. Não é um milagre, é o resultado de um esforço, de uma planificação e de estar sempre atento ao que está a acontecer no país”, concluiu a representante da FAO.
O arquipélago enfrenta uma profunda crise económica e financeira, decorrente da forte quebra na procura turística desde março de 2020, devido à pandemia de covid-19.
Em 2020, registou uma recessão económica histórica, equivalente a 14,8% do PIB, seguindo-se um crescimento de 7% em 2021 impulsionado pela retoma da procura turística. Para 2022, devido às consequências económicas da guerra na Ucrânia, nomeadamente a escalada de preços, o Governo cabo-verdiano baixou a previsão de crescimento de 6% para 4%.
“Não é só os efeitos da crise que devem constituir oportunidade ou, se quisermos, inspiração para nós reforçarmos o sistema de segurança alimentar e nutricional. Devemos também nos inspirar nos ganhos que o nosso país já teve em matéria de segurança alimentar e nutricional ao longo de várias décadas”, sublinhou, por sua vez, o ministro da Agricultura e do Ambiente, Gilberto Silva.
“Se olharmos para trás, Cabo Verde seguramente hoje consome mais alimentos, consome alimentos de melhor qualidade, tem melhor dieta, tem melhor nutrição e os números estão lá para demonstrar estas melhorias. Melhoramos consideravelmente em matéria de comercialização, aumentámos a capacidade de estoque dos alimentos, reforçámos a legislação liberalizamos a comercialização dos produtos com um impacto muito grande na democratização do acesso aos alimentos em Cabo Verde”, acrescentou.
“Ganhos” que, descreveu Gilberto Silva ao intervir na conferência de hoje, devem ser “comemorados” por Cabo Verde no contexto do dia mundial da Alimentação.
“São ganhos de que, às vezes até nós nos esquecemos, muitas vezes. Mas foram ganhos deste país e hoje nós somos o exemplo do funcionamento das cantinas escolares, onde pouco mais de 20% da nossa população tem acesso a refeições quentes, diárias, nas escolas, com impacto na aprendizagem e com impacto na redução do abandono escolar”, apontou.