O que renasceu após 2017 não chega para apagar o medo do futuro

Há cinco anos o país era varrido por um conjunto de incêndios que devastaram a zona central e, no seu conjunto, constituíram o maior fogo do ano. Desde então recuperaram-se casas, negócios, terrenos e animais. Mas o receio da repetição de uma tragédia idêntica está sempre presente, sobretudo, pela falta de cuidado com a floresta.

Quando olha da janela da casa nova, substituta da anterior, que ardeu por completo durante os violentos incêndios de 15 para 16 de Outubro de 2017, Albina Araújo vê de novo a paisagem pintada de verde. Árvores e árvores que cobrem as encostas, renascidas do negro que pintou tudo durante meses, após os fogos da maior dimensão a que o país assistiu naquele ano. Em Oliveira do Hospital, o rosa-claro das paredes da nova fábrica da J. Guerra já não deixa lugar a qualquer reminiscência do metal e madeira retorcidos que foram tudo o que sobrou da empresa após a passagem do fogo. E nos campos em redor de Carlos Oliveira, os badalos das ovelhas bordaleiras enchem, de novo, o ar desta música tão familiar, agora tocada por novos animais que substituíram os que morreram naquela noite.

Cinco anos depois dos incêndios que devastaram a região centro do país, roubando a vida a pelo menos 50 pessoas, destruindo mais de 1700 habitações e afectando 768 empresas em 30 municípios, consumindo 85% do Pinhal de Leiria e deixando para trás mais de 241 mil hectares queimados (dados da comissão técnica independente, relativos aos incêndios entre 14 e 16 de Outubro), naquele que foi, colectivamente, o maior incêndio do ano, num país já traumatizado com o que acontecera, escassos meses antes, em Pedrógão Grande, há vidas que se refazem e medos que não desaparecem.

E há também um desassossego que não abandona mesmo aqueles que conseguiram recomeçar: a convicção de que a situação da paisagem e da floresta é hoje tão má ou ainda pior do que era nessa altura. “As reflorestações são mínimas. Há uma mancha aqui ou acolá de pinheiro, mas muito pequena, muito pequena mesmo. De resto, a grande maioria está como estava após o incêndio. A ganhar mato e combustível. É a isto que assistimos na maior parte destes concelhos atingidos pelos incêndios. São milhares de hectares que estão a mato, à espera que um outro incêndio, um dia qualquer, venha por aí”, diz o presidente da União de Freguesias de Ervedal e Vila Franca da Beira, Carlos Maia.

Em Oliveira do Hospital, onde estas localidades se integram, 98% do território foi afectado pelos fogos de Outubro de 2017 e em todos os 88 núcleos habitacionais do concelho houve casas ardidas. Carlos Maia atravessou, literalmente, as chamas, na noite de 15 para 16 de Outubro, numa atitude que hoje reconhece como “ingénua” e que não voltaria a repetir. Porque correu bem, diz, mas podia ter corrido mal. É dele uma das histórias que aqui se recordam, de pessoas profundamente afectadas pelos fogos desse ano, que não baixaram os braços, mas também não venceram totalmente o medo.

“O pior é a cabeça. Vive-se em sobressalto”

Albina Araújo, Gaído, Pedorido, Castelo de Paiva

Houve uma altura, meses depois de o fogo ter consumido, por inteiro, a casa dos pais de Albina Araújo, em Gaído, no concelho de Castelo de Paiva, em que ela ainda dizia que não vivia com medo dos incêndios. Era o tempo em que a imagem da devastação estava presente no negro e cinza que cobria a paisagem em redor. Ali, não tinha sobrado nada para ser consumido pelas chamas. Mas hoje, tudo mudou. “Agora tenho mais medo, porque está muito pior. Se começa a arder, isto vai tudo”, diz, olhando o cenário que se vê da varanda ampla da casa reconstruída com os fundos de apoio às vítimas do incêndio, e para onde só se mudou em Setembro de 2020.

Até então, Albina, hoje com 62 anos, e o companheiro, António Silva, bem como o filho da mulher, José, viveram na antiga escola primária da povoação, a escassos metros da casa da família, que foi devorada pelas chamas, com tudo o que lá tinha dentro: móveis, máquinas, roupas e algo que pesou ainda mais, as recordações. Foram-se fotografias, um caracol de bebé do filho, o primeiro dente que lhe tinha caído, a roupa que a criança tinha usado no baptizado, o álbum de casamento. “As pessoas dizem-me que as recordações estão na cabeça. Não é bem assim”, diz a mulher.

Por isso, agora que uma casa se ergue de novo no local onde a antiga existia, é das pequenas memórias que foi conseguindo recuperar, graças a amigos e familiares, que Albina fala. Nos álbuns da família encontrou uma fotografia do seu casamento em que aparece com os pais, uma outra do baptizado do filho, uma dela, na comunhão solene. “Não vou dizer, já estou bem. Nunca mais fui quem era. Lembro-me muito”, conta a mulher, que há anos tem de lidar com depressões e crises de ansiedade. “O pior é a cabeça. Vive-se em sobressalto”, admite.

A casa dos pais de Albina, onde ela vive com a família, foi a única de primeira habitação que ardeu no concelho de Castelo de Paiva. Na altura, pediu que a deixassem ficar na escola primária que frequentara em pequena, e que servia de armazém a uma associação. Conseguiu-o e a solidariedade rapidamente encheu o espaço de móveis e roupa que permitiram à família recomeçar, enquanto se iniciava o longo processo de espera pela nova casa. Ali viveram três anos. “Quando fui para lá, foi um remedeio. Mas estava-me a custar sair. Tinha aquilo muito bonito, a meu gosto. Mas é claro que aqui estou melhor”, sorri Albina.

A casa que lhe construíram tem dois pisos, com dois quartos no andar de cima. Recebeu as chaves em Julho de 2020, mas só dois meses depois é que a família se mudou para ali. “Está bonita”, admite a mulher, mas nota-se que ainda lhe falta criar alguma ligação ao espaço – sobretudo porque as condições financeiras ainda não lhe permitiram decorá-la a seu gosto. A maior parte dos móveis continuam a ser os […]

Continue a ler este artigo no Público.


Publicado

em

, , ,

por

Etiquetas: