Jaime Piçarra

Notas da semana – Hipocrisia e Populismo: de mãos dadas para um novo normal? – Jaime Piçarra

Vale a pena, de quando em vez, olharmos para o significado das palavras, compreendermos que sentido lhes podemos dar, sobretudo nos tempos que correm, marcados pela “espuma dos dias”, pelas redes sociais, pela guerra e por um certo sentimento apocalíptico, em que todos opinamos e somos especialistas, em nome do debate público e da liberdade de expressão, aferido pela maior ou menor capacidade de “ruído”.

Aliás, basta ver a quantidade de programas de debate em que se quer ouvir “a sua opinião”. Tudo isto se justifica porque, deste modo, somos “envolvidos” nas questões, na definição de políticas públicas e pensamos, legitimamente, que fomos realmente auscultados, também em nome de uma certa composição da Sociedade Civil, em permanente mudança.

Para o bem ou para o mal, é assim que funcionamos e devemos funcionar em democracia. Até temos o Portal da Queixa e multiplicam-se as consultas públicas. Falta é, muitas vezes, a avaliação de impacto das medidas e, cada vez mais, o bom-senso.

Feita esta introdução, fomos recuperar o significado de Hipocrisia, que não é mais do que “um ato ou efeito de fingir, dissimular os verdadeiros sentimentos e intenções, e que carece de sinceridade”. Já o Populismo, na política, é uma “prática em que se arroga a defesa dos interesses das classes de menor poder económico, para conquistar a simpatia do povo, a aprovação popular”.

E quem não gosta de ser popular, sobretudo quando se perdem as referências, os afetos ou as inspirações?

Num mundo cada vez mais complexo, o populista é um simplista, que tem sempre soluções para tudo, sobretudo se estiver no papel da oposição. É um “inovador” que encontra sempre “nos outros” a incapacidade de resolver os problemas. É um disruptor, um vendedor de sonhos e ilusões, procura ampliar a sua base de apoio com tudo o que pode alcançar, um camaleão se preciso for, em que os meios justificam os fins.

É evidente, como já percebemos, que Hipocrisia e Populismo caminham de mãos dadas, oportunistas, ao sabor das sondagens e estudos de opinião, em nome do “interesse comum, público ou nacional”, seja ele qual for.

Não nos devemos deixar iludir ou manipular!

Vem tudo isto a propósito de alguns exemplos de discussão de dossiers importantes para o setor agroalimentar e para a Indústria da Alimentação Animal, antigos ou recentes que, pela hipocrisia e populismo, nos penalizam, retiram competitividade e nos condenam a um empobrecimento que certamente não merecemos, em nome de avanços civilizacionais ou dos desafios societais.

O primeiro exemplo é a via-sacra das aprovações de organismos geneticamente modificados e a utilização da Biotecnologia na Agricultura, em que os Estados-membros continuam e continuarão divididos, pese embora os estudos científicos ou evidências de mais de 30 anos demonstrarem que esses produtos são tão seguros quanto os seus congéneres convencionais.

Infelizmente, temos muitos detratores das novas técnicas genómicas, que, a par de todos os melhoramentos genéticos, serão ferramentas essenciais no combate às alterações climáticas, na redução das emissões e na sustentabilidade da nossa agricultura e pecuária, incluindo, naturalmente, a indústria da alimentação animal.

O segundo exemplo, tem a ver com o glifosato, tantas vezes utilizado (tal como a biotecnologia) como arma política e ideológica, ignorando-se os estudos científicos, com inúmeras pressões para a sua proibição, em nome do princípio da precaução.

Tendo sido decidido prorrogar a sua autorização por mais um ano, e uma vez que a EFSA não está em condições de reavaliar o pesticida antes de julho de 2023, a Comissão submeteu à aprovação do SCoPAFF a renovação por um período de 1 ano, que foi bloqueada por não existir uma maioria qualificada. Apesar da maior parte dos Estados-membros aprovarem a decisão, a oposição de Malta, Luxemburgo e Croácia e a abstenção de países como a França, Alemanha e Eslovénia foi o suficiente para bloquear o processo que vai estar agora nas mãos da Comissão Europeia. A data-limite será meados de dezembro de 2022.

Neste caso, para além dos agricultores ficarem sem alternativas para este herbicida, numa altura em que discutimos a proposta sobre a utilização sustentável dos pesticidas – já para não falarmos do impacto da Estratégia do Prado ao Prato -, para a indústria da alimentação animal seria terrível ao nível dos Limites Máximos de Resíduos porque nos EUA, Brasil ou Argentina, as nossas principais fontes de abastecimento, a utilização do glifosato é bastante comum, pelo que a disrupção do mercado seria imediata, com consequências na disponibilidade e nos preços das principais matérias-primas. Acrescentando ainda mais problemas aos que já hoje sentimos.

Não será possível esperar mais uns meses pelo estudo científico da EFSA?

Aliás, o mesmo impacto pode vir a acontecer com as cadeias livres de desflorestação, em que a proposta está em discussão na Tríloga, exigindo-se um período de transição até meados de 2024, para a negociação e agilização dos procedimentos com os países exportadores.

Para já, o Brasil parece irredutível na aplicação da futura legislação e veremos os resultados das eleições do próximo domingo. Enquanto tiverem a China como grande canal de exportação, a Europa parece ficar para segundo plano. O impacto é evidente, menos soja, matérias-primas mais caras, inflação…na conjuntura atual, exigia-se maior serenidade e avaliação (séria) dos impactos na cadeia alimentar. E, sobretudo, uma maior articulação com os países exportadores. Sim, porque todos somos contra a desflorestação.

O último exemplo, o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS) 2022-2030 que está em discussão pública até ao próximo dia 16 de novembro, e no qual todos devemos participar, enquanto empresas, cidadãos, organizações representativas.

De facto, aparentemente livres do apoio dos partidos mais fundamentalistas, seria de esperar da parte das autoridades públicas, neste caso da DGS, um maior bom senso na definição deste tipo de políticas públicas, mas o ataque ao consumo de produtos de origem animal, sobretudo às carnes vermelhas e aos produtos processados (talvez no caso da carne se queiram referir aos produtos transformados) continua a fazer “escola”, ignora as dietas, a sua relação com o exercício físico e estilos de vida saudáveis.

Infelizmente, quer pelo lado da oferta, quer pela procura, continua-se a diabolizar a pecuária e o consumo de produtos de origem animal que, tal como todos os outros, devem ser consumidos com moderação e incluídos em dietas, previstas e consubstanciadas, por exemplo, na roda dos alimentos, devendo valorizar-se a dieta mediterrânica e sobretudo a educação alimentar nas escolas.

Envolvendo verdadeiramente todos os atores da cadeia alimentar, para além dos médicos e nutricionistas. Sem fundamentalismos, com base científica credível, sem demagogia ou ideologia.

A carne, leite, ovos e o pescado são necessários nas dietas alimentares.

Como ficou bem patente numa lição proferida recentemente pelo nosso Professor Chaveiro Soares em Famalicão, o consumo de carne foi essencial ao desenvolvimento humano e à sua capacidade de ser inteligente. A produção pecuária é determinante para a harmonização do território, na melhoria da fertilidade do solo, no combate à desertificação, como travão aos incêndios, na retenção do carbono, na valorização dos ecossistemas e parece que, finalmente, se reconheceu que os efluentes pecuários podem ser muito relevantes na independência energética da Europa.

É tudo isto que continua a estar em causa neste momento.

O Plano de Promoção para uma Alimentação Saudável parte de premissas e estudos errados, que devem ser combatidos com rigor e seriedade.

E aos que advogam que a carne de laboratório é que vai ser o futuro – certamente alguma quota de mercado terá, em função das opções, livres e conscientes, dos consumidores – esperamos apenas que também defendam que esses novos produtos, para serem aprovados e considerados seguros para o consumidor e o ambiente, devem estar sujeitos ao mesmo crivo e rigor da biotecnologia, dos aditivos e tantos outros.

Naturalmente que é importante auscultar os cidadãos e envolver a Sociedade. Mas apostem em políticas de base com seriedade e não em estudos que foram questionados por entidades credíveis e sem qualquer aderência à nossa realidade. E no final, quando definirem as políticas e os seus impactos, sobretudo no mais longo prazo, assumam as consequências dessas políticas, sem populismos ou hipocrisia.

Não nos venham pedir, depois, que sejamos incoerentes e apanhar os cacos de decisões erradas, apenas para agradar a alguma opinião pública.

Se não formos capazes de mudar este “status quo”, hipocrisia e populismo continuarão a caminhar de mãos dadas. Com as consequências a que vamos assistindo.

Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA


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