Chovia que Deus a dava, no sábado de manhã, e nós a vê-la cair na varanda da Maria Rita, no Romeu, à espera da nossa hora. É uma varanda abrigada destas enxurradas de sul e sudoeste, aberta a noroeste, balaustrada de madeira decorada com malvas, bancos encostados às paredes, conversa feliz e exótica de pessoas ali juntas pelo fim de semana e pela mesa e pelo sítio, Nossa Senhora de Jerusalém zelando a partir dum nicho emoldurado a granito na parede da porta do restaurante de que, cá de fora, pela quadrícula de vidrinhos, adivinhávamos o conforto e apetites. Dia escuríssimo, mas de luz modulada pelo branco do forro da varanda, riscado por uma vetusta e grossa trave de sobro. Ao olharmos os canteiros de rosas em baixo, cheirávamos uma discreta e húmida composição de musgos, de cortiça, de madeiras molhadas, de folhas de outono. O dia certo para que nós os quatro, Noémia, Mariana, João e eu, sentados na sala do forno, nos atirássemos a umas pratadas de açorda quente de espargos (hesitámos na sopa seca mas deixámo-la para o Inverno entrado), com vinho reserva tinto do Romeu, pão molhado em azeite, tudo como Deus o deu!
É óbvio que o provar-se, consumir-se e comprar-se vinho num destino enoturístico, são actos inerentes à própria actividade enoturística. É o que acontece quando vamos a uma adega de marca, quando percorremos uma vinha da moda ou nos sentamos num bar ou restaurante ou taberna encenada para desfrutarmos de tal experiência. E isso é agradável, louvável, um bom serviço à economia e ainda bem que é assim, seja no Cais de Gaia, na Ribeira do Porto, em Lisboa num rooftop, numa quinta no Douro ou num monte alentejano ou qualquer sítio de Portugal. O enoturismo está aí, é um motor do desenvolvimento rural, um factor de povoamento do território e de aumento da sua resiliência à desertificação geográfica. A compreensão da gastronomia e o papel do vinho na coesão duma experiência assim, capaz de despertar sensações e emoções, é uma forma especial de dar sentido a garfadas, copos e, até, a propósitos e decisões de vida.
Mas há, ainda, um outro nível de compreensão do turismo do vinho que, muito antes de haver o rótulo enoturismo ou definição de rotas pré-concebidas, embebeu páginas e páginas de livros, apareceu em filmes, está em teatro e em peças musicais: Steinbeck e Greene, Agustina e Redol, Munthe e Papini, centenas e centenas doutros… é doutra dimensão e sensibilizou e inspira artistas e escritores. Absorveram das uvas, do vinho e do heróico e sofisticado drama e prazer humanos que lhe está associado, uma capacidade de o transmitir que nos transforma em privilegiados ao podermos orbitar em tais constelações. Esse turismo do vinho acrescenta mitologia, humanidade e sentido à aventura da sua descoberta. É o turismo do vinho que ainda temos, felizmente, em Trás-os-Montes e no interior de Portugal.
Sente-se, podemos imbuir-nos no tempo e no modo. Na Maria Rita, por exemplo, ficamos emersos na atmosfera Menéres; tal como, em Vale Pradinhos, na dos Pinto de Azevedo; no castelo de Bragança, nos ecos da princesa arménia que há quase um milénio seduziu um Braganção por quem se deixou raptar; no Solar Bragançano, o arrepio judeu de transe e fortuna, também o dos jesuítas em culta profissão de fé; no Lombo, nos cavaleiros de fossado e fuga que trotavam de Balsamão a Malta e a Algoso, varrendo Mogadouro e todo o planalto onde aqui e ali, tal como hoje, bebiam de botas a espicho temperando a carne e o pão; em todo o Valpaços, os velhos legionários reformados, sandálias nas calçadas e pontes da XVII via, pés de vinha plantados nas nesgas que o granito deixou; na Vilariça, nas aventuras saborosas, imaginadas e autobiográficas, que nos escreveu Ana Maria Magalhães: Tudo tem o Seu Tempo. Poderíamos continuar: os Távoras, o húmus humano de Adriano, o olhar perspectivo e prospectivo de Rentes, as palavras pungentes de Ernesto, a bússola a Nordeste de Pires Cabral… …
É interessante pensar-se que, se estivéssemos em Lisboa, diríamos com propriedade: tudo isto é fado! Aqui, dizemos com verdade: tudo isto é vinho! Turismo de vinho. Quase por explorar. Cheio de inéditos e prosas bárbaras por escrever, aliás, dias por viver e nacos por trincar. Que por Trás-os-Montes se diz cibo: um cibo de pão, um cibo de carne, um cibo de linguiça. Não é um plebeísmo, não senhor: é latim a sobreviver milénios. Toda a nossa comida é uma sobrevivência de milénios, o nosso vinho um decantado de milénios, trincada e sorvido por turistas demandando estas terras há milénios. Que bom! Ser turista do vinho. Turista no espaço e no tempo, do que se bebe e se come… e se nos deixa arrebatar por inteiro! Até no que se lê: “Ciborium: o copo para beber. Cibus, cibi: o comer, o alimento, o sustento” (do dicionário de latim que o meu Pai usava no Colégio de Lamego, há um século!).
Atrevermo-nos no turismo do vinho é muito mais do que percorrermos rotas de enoturismo. É claro que estas são necessárias mas não são tudo. Há uma diferença, algo transgressora, inspiradora e que em tanto retribui, de o fazermos noutra dimensão, mais além, mais impregnada de cultura, mais capaz de nos deixar em plenitude. Há muito tempo que há rotas de vinho em páginas, em películas e em poemas. Que até nos permitem, numa qualquer cidade, num qualquer apartamento, em nossa casa, ao estrelarmos um ovo e o polvilharmos com pimenta ou sal, palpar a intangível frase ao mesmo tempo que, molhando um miolo de pão, o afogamos na nossa boca com um copo dum branco fresco. Pode ser um momento arrebatador. Turismo de vinho sem sair de casa. Do género das madeleines de Proust com o chá que o fizeram desejar e ir a Combray. Não sei onde os levará o ovo no pão com o vinho branco. A mim, se neste momento experimentasse uma ponta de alheira tostada com um tinto certo, tenho a certeza que me veria logo com amigos à volta, acabando a garrafa, escrevendo um artigo, planeando uma saída para um destino daqueles em que, mesmo que chova que Deus a deia, nos iremos sentir bem enquanto esperamos pela vez na sala, fundindo-nos no momento e aspirando a tudo! É muito bom, ser turista de vinho.
Manuel Cardoso
Consultor e escritor
Artigo publicado originalmente em Eggas.