Eduardo Oliveira e Sousa

“Desmantelar o Ministério da Agricultura é uma questão de tempo”

Não foi suave o arranque da legislatura. As relações entre a Confederação dos Agricultores Portugueses (CAP) e a ministra da Agricultura azedaram ainda durante a campanha eleitoral. A CAP foi acusada de ser oposição e a ministra sugeriu, mais tarde, que os agricultores se fossem queixar àqueles a quem deram o voto. Em que ponto da relação estão Ministério e agricultores, numa altura em que são descobertos casos de escravatura entre trabalhadores migrantes contratados por grandes explorações, fundos europeus por aplicar e uma reforma institucional que não é pacífica? São temas desta conversa com Eduardo Oliveira e Sousa, presidente da CAP.

Vamos primeiro ao tema que é o elefante na sala. As Direções Regionais da Agricultura tinham morte anunciada, os serviços passariam para as Comissões de Desenvolvimento Regional (CCDR). A CAP insurgiu-se contra essa possibilidade. Depois o governo veio dar uma espécie de dito por não dito… Em que ponto é que estamos?

Lendo a entrevista que a senhora ministra deu recentemente ao Diário de Notícias, quase que fica a pergunta: então se fica tudo na mesma, segundo a resposta que ela deu, para quê esta remodelação? A única diferença que vejo na resposta que a senhora ministra deu é que o diretor regional desce de categoria. Portanto, deixa de ser um diretor, para passar a ser um subdiretor. O resto fica tudo na mesma. Então, se é assim, tem de haver outra razão. E essa outra razão é a pergunta que nós fazemos também à senhora ministra, mas também ao governo, porque foi uma decisão tomada em Conselho de Ministros. Tem de haver aqui uma razão mais abrangente para haver uma medida desta natureza…

Qual é a razão, na sua opinião?

Na minha opinião há vontade de entrar por um processo de regionalização, mais até do que de descentralização, que não foi devidamente escrutinado. A descentralização é um processo com o qual estamos de acordo em termos concetuais e, de alguma forma, as Direções Regionais de Agricultura corporizam uma certa descentralização. Uma regionalização tem obrigatoriamente de passar por uma consulta ao povo português, que não foi feita. E, por isso, há aqui qualquer mecanismo, qualquer orientação superior que justifica ser devidamente esclarecida.

Mas como tem sido hábito nos últimos tempos as decisões serem tomadas sem haver um prévio acordo ou discussão, algum consenso, alguma partilha de estratégias que o governo pretenda implementar, neste caso particular em que a agricultura está envolvida, gostaríamos que o assunto tivesse sido primeiro discutido connosco e depois, mesmo que eventualmente as nossas opiniões se mantenham divergentes das decisões que sejam para ser tomadas, haver então uma decisão.

Isso seria aceite?

Não somos contra isso. A democracia é feita de opções, de maiorias, de decisões. Agora, aquela sensação de que ficámos fora da discussão pareceu-nos completamente desajustada numa matéria tão sensível como é a agricultura, que é a única área da economia que está sujeita a uma política europeia, que tem mecanismos complicadíssimos de serem alvo de gestão e de medidas de controlo, que têm de ser feitos por pessoas que são especializadas nessas áreas. E nós não acreditamos de maneira nenhuma que vão ficar sujeitas a uma hierarquia diferente daquela que é a do próprio Ministério da Agricultura. E é essa hierarquia que eu ponho em causa.

Já vamos a esse assunto. Ou melhor, retomar esse assunto da figura do diretor regional – que, diz a ministra, vai passar a ter outro nome e a ser um elemento que participa, e estou a citar, “na Comissão de Coordenação sendo um vice-presidente, um vogal, outra figura qualquer que o governo ainda não definiu”. Já agora, isto quer dizer o quê?

Estas declarações são indicadoras de alguma coisa que ainda não está bem pensada. “Outra coisa qualquer” é o quê?

É uma espécie de “gato escondido com o rabo de fora” neste processo?

Pode ser uma intenção de dar a entender que tudo vai ficar como está, mas sabemos, até por experiência de outras situações, que não fica tudo como está passado relativamente pouco tempo. Dou um exemplo, para ser pragmático. Um presidente de uma CCDR vai assumir, além da pasta da agricultura, assuntos relacionados com a educação ou com a saúde. Num dia, numa reunião em que está presente o ainda diretor Regional da Agricultura da altura, que tem um problema, um assunto para levar ao conjunto de temas que terão de ser discutidos naquela reunião, e está um problema grave de saúde ou um problema grave de segurança social ou de educação, a agricultura vai ser prioritária nessa análise? Não vai. Isto vai ser uma questão de tempo. O desmantelar do Ministério não é imediato, obviamente, mas consta que já há funcionários a receber perguntas sobre mobilidade, etc.

Ou seja, há qualquer coisa que precisa de ser muito bem explicada. E, na nossa perspetiva, se há setor da economia que tem de ter representatividade no território é o da agricultura, porque está relacionado com uma prática que é feita no território, que é preciso descentralizar. É preciso intensificar o relacionamento entre o governo, através das direções regionais, e as organizações de agricultores que estão no terreno e que fazem a ponte direta para os agricultores, inclusivamente com outras áreas governativas, que hoje implicam assuntos com a agricultura – como seja o Ministério do Ambiente, através das diferentes competências que agora assumiu e que também são agrícolas. E por isso ficámos muito pouco confortáveis com esta notícia, principalmente porque não conhecemos a minúcia, não conhecemos os objetivos de longo prazo que se pretende atingir com esta decisão.

Posso deduzir das suas palavras que está a falar de uma espécie de regionalização encapotada?

Assumo que sim, que será qualquer coisa desse género, que poderá estar naquilo que desconhecemos e que não aceitamos que seja possível levar por diante sem haver uma devida discussão.

Como estão as relações da CAP com o Ministério da Agricultura, ou melhor, com a ministra, do ponto de vista institucional, depois da guerra que aqui já referimos?

A palavra “guerra”, que utilizou, se existir, não é nossa. De maneira nenhuma. Aliás, ainda bem que traz esse assunto, porque dá a sensação de que ficou esquecido. Lembra-se com certeza de que a própria senhora ministra terá respondido às perguntas que foram insistentemente colocadas, não apenas por jornalistas, mas até por membros de outros partidos políticos. E disse: “Eu vou ao Parlamento fazer um esclarecimento cabal da razão porque disse o que disse”. Que eu saiba, ela não foi ao Parlamento fazer essa explicação. E, portanto, esse assunto ainda carece de ser explicado porque foi uma verdadeira ofensa, quase, não só aos agricultores, mas até ao próprio país, dando a entender que há uma relação direta entre quem vota ou quem não vota no PS. E creio que até o PS está incomodado com essa situação. Nunca houve da nossa parte intenção de fazer um relacionamento direto com o PS. Tinha que ver, sim, com uma coligação que estava na iminência de acontecer com um partido que, esse sim, pretende destruir a agricultura da forma como nós a vemos.

Foi contra isso que falou?

E foi isso que não foi entendido. E por isso tem de haver outra razão para, depois de esse assunto ter sido esclarecido, explicar que a senhora ministra se tenha lembrado de fazer, naquele dia, aquela observação perante um assunto que tinha que ver com ajudas à situação desastrosa, dramática, trágica que o setor estava a viver naquele momento em relação aos problemas da seca. Passados todos estes meses, as ajudas da seca ainda não chegaram. Têm mais de um ano de prometidas, mas não sabemos quando chegarão. Estas são as nossas incongruências no relacionamento que temos com a senhora ministra, porque nunca conseguimos obter uma resposta que seja: “É assim, vai ser assim”.

Foi o que aconteceu com os pagamentos da antecipação das ajudas, que ela começou por prometer que iam ser feitos em abril, depois passou para maio, depois junho, e só em julho é que houve, de facto, algum pagamento. Mas não são medidas extraordinárias. É uma antecipação de ajudas a que os agricultores tinham direito. E, mesmo assim, não receberam todos, porque a burocracia perturba sempre estes processos. As ajudas extraordinárias da seca, e algumas da guerra, ainda não chegaram, nem sabemos quando chegarão. Os espanhóis receberam-nas no verão… Estas diferenças, fazem com que não seja fácil entendermo-nos nestas minudências gravíssimas. São minudências porque é uma palavra que desprestigia de alguma maneira a ambiguidade dos assuntos. Em termos institucionais não temos problemas nenhuns com o Ministério da Agricultura. As nossas estruturas organizativas, o nosso corpo técnico, que dialoga com a estrutura técnica do Ministério da Agricultura, mantém este diálogo.

Dialoga com a ministra?

Dialoga no institucional. No essencial não dialoga. Não dialogou no PEPAC, não dialogou nestas questões relacionadas com este procedimento de que falámos há pouco, daquilo a que chamamos o desmantelamento do Ministério da Agricultura… Porquê? Porque nós temos visão sobre o futuro para a agricultura e, na nossa perspetiva, não existe essa visão na cabeça do Ministério.

Por falar em PEPAC, precisamente, a Ministra da Agricultura anunciou no DN 6,7 mil milhões para a agricultura. Era o que a CAP esperava?

Esse valor do PEPAC está inteiramente definido em termos de Política Agrícola Comum (PAC), faz parte do orçamento da União Europeia (UE).

A ministra disse também que é um programa muito ambicioso. É ambicioso porque é difícil de executar, ou é realmente ambicioso para a agricultura?

São as tais palavras que a senhora ministra utiliza e que ela própria tem de explicar o que quer dizer com isso. A senhora ministra várias vezes refere que está preocupada ou que quer com este PEPAC, um incremento para a agricultura, que os agricultores vão ficar melhor, que a agricultura vai crescer… Há aqui uma espécie de sonho permanentemente a ser anunciado. E nós estamos muito mais no real. Apetece-me quase dizer, como dizem os brasileiros: “Caia na real”. Não tenho nada contra a senhora ministra, como possam imaginar, simpatizo com a senhora como pessoa, mas quando ela entra no discurso sobre como é que ela vê a agricultura, creio que entra numa espécie de um sonho. E esse sonho tem uma realidade que nós vemos de outra maneira porque estamos no terreno, porque a sentimos, e porque quando a confrontamos com essa realidade, ela fica um pouco sem nos dar respostas objetivas, como seja, por exemplo, nos valores que estão por pagar aos agricultores no âmbito do Programa de Desenvolvimento Rural (PDR), como seja na montagem da arquitetura verde, que ela orquestrou conjuntamente com as suas estruturas técnicas – e com as quais nós não estamos minimamente de acordo.

Deixe-me pegar nesse tema da arquitetura verde, que o PEPAC também prevê em dois pilares. Há um deles que tem uma fatia à qual só terão acesso os agricultores, e que é 25% do valor atribuído, mas só se o agricultor cumprir um conjunto de regras sustentáveis. Este é uma novidade no Programa, pelo menos no primeiro eixo de atuação. Estas regras de produção sustentável vão ser realistas? É possível aplicá-las na agricultura, mantendo a sustentabilidade e o negócio? Ou são regras tão difíceis de cumprir que os agricultores não terão acesso a estes fundos?

Essa é uma dúvida que temos neste momento e quase uma reivindicação. Já a manifestámos à senhora ministra, dizendo-lhe, preto no branco, que achamos que no primeiro ano de implementação deste PEPAC devem ser logo criadas e deve ser feito um pedido à Comissão para o alterar, porque ele foi feito fora […]

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