Além de ser uma perturbação natural dos ecossistemas, o fogo é há muito uma ferramenta usada na agricultura, pastagens e florestas. Igualmente antiga é a legislação sobre o uso do fogo. Conheça o percurso das penalizações, restrições e normas criadas para prevenir a ameaça associada ao fogo, com a ajuda do Estudo Técnico “O Uso do Fogo em Portugal – tradição e técnica” neste artigo escrito em colaboração com a estudante Mariana Carvalho.
As penalizações relacionadas com o uso do fogo – e a emergência de incêndios dele resultantes – não são um fenómeno recente, mas a legislação sobre o uso do fogo reforçou-se na viragem para o século XX. À medida que a floresta portuguesa crescia, substituindo as terras que as comunidades rurais usavam como suas e nas quais o fogo tradicional, associado à agricultura e pastagens, era prática comum, a legislação associada ao fogo foi também aumentando.
A mais antiga referência conhecida sobre uma penalização por uso do fogo devido a danos resultantes de incêndio tem 14 séculos e consta do “Código Visigótico”, promulgado pelo rei godo Kindasvendo no ano 652. Este conjunto legislativo foi o primeiro código de Espanha e vigorou em Portugal até 1446, data da publicação das Ordenações Afonsinas.
Esta é a primeira referência identificada no Estudo Técnico “O Uso do Fogo em Portugal – tradição e técnica”, do Observatório Técnico Independente, que apoia o Governo no conhecimento relacionado com os incêndios. Segundo esta mesma fonte, até 1521 – data do primeiro livro das ordenações do rei D. Manuel, que tinha um capítulo dedicado à pena por uso indevido do fogo –, apenas foram registadas referências a conflitos no uso do fogo em cartas régias.
Entre o reinado de D. Sebastião (1557 -1578) e o de D. Filipe III (1621-1640) foram publicadas várias leis, com restrições e penas relacionadas com o uso do fogo, danos causados e com atividades como a caça ou o pastoreio nas terras percorridas pelo fogo. As Ordenações Filipinas, publicadas em 1603, compilam os regimentos que vigoravam na altura e que se mantiveram até 1867.
Legislação sobre o uso do fogo centra-se no património real e senhorial
Após a restauração da independência, é publicado, em 1650, o “Regimento das Coutadas, Matas, Montarias e Defezas” que determina a existência de um “juíz das causas” relativas às coutadas, que administra, gere e protege as propriedades do rei e define a pena a aplicar pelo uso do fogo dentro destas áreas.
Em 1699, o “Regimento dos Verdes e Montados do Campo de Ourique” define os procedimentos para o uso tradicional do fogo, de forma a proteger os montados produtivos e atribui competências a “Oficiais das Câmaras” que determinam os dias em que pode ser usado o fogo e a forma como deve ser feito. Esta é a primeira vez que surge na legislação um condicionamento à utilização tradicional do fogo.
A primeira referência ao fogo técnico e à sua utilização para fazer a queima de combustíveis em povoamentos florestais surge em 1751, no “Regimento do Guarda Mór do Pinhal de Leiria”. Além de descrever as funções dos diferentes elementos do regimento, define a técnica e os cuidados a ter no uso do fogo, quando deve ser feito e quem o deve fazer. Portugal foi, assim, um pioneiro no uso do fogo com a componente técnica de gestão da biomassa.
Em 1783, o incendiarismo e o aproveitamento de cinzas para a indústria vidreira levam à publicação de um Alvará a proibir a sua extração nas Matas Coutadas e a estabelecer as penas para quem fosse apanhado a recolher as cinzas.
A utilização das Reais Coutadas e Montarias voltou a ser regulamentada em 1800. Nessa altura, um “Alvará com força de Lei” regulamenta o uso do fogo e outras práticas tradicionais como a renovação da vegetação para pastagem, o fabrico de carvão ou a queima de resíduos de ações de prevenção (aberturas de caminhos, por exemplo) nos espaços pertencentes à Coroa.
Legislação sobre o uso do fogo
Os diplomas e portarias que vão sendo publicados refletem o aumento que se verificava na frequência de incêndios, na preocupação com os seus impactes e na necessidade de medidas de prevenção.
Em 1816 é publicada a “Portaria, providenciando ácerca de incêndios” que chama a atenção para a necessidade de se evitar incêndios rurais em pinhais, vinhedos e herdades, estabelecendo a obrigatoriedade de os trabalhadores assegurarem trabalhos de extinção de incêndios, sob pena de condenação, e de os proprietários de pinhais e matas fazerem a limpeza da vegetação junto às estradas reais (as estradas nacionais atuais). Esta legislação reforça ainda o condicionamento das atividades tradicionais permitidas em áreas ardidas por parte de pastores, caçadores e carvoeiros.
Com a Revolução Liberal, é publicado um decreto, em 1821, que acaba com obrigações associadas ao Regime Senhorial, nomeadamente o pagamento ao senhorio pelo uso do espaço para o pastoreio ou pelo uso do fogo. Contudo, só em 1867 é aprovado o Código Civil que vem substituir as Ordenações Filipinas de 1603, as quais desvalorizavam o indivíduo e as suas ações e mantinham uma prepotência da coroa e do clero, os senhorios. O novo código penal de 16 de setembro de 1886 apresenta novas penas para o crime de fogo posto, mas não diferencia entre atos intencionais ou resultantes de negligência.
Mais floresta, mais legislação sobre o uso do fogo
Nesta altura, começa a haver pressão política para aumentar a regulação e o controlo do Estado na proteção da floresta: o Regime Florestal, em 1886, tal como os anteriores, volta a impor condicionamentos às atividades em matas e terrenos arborizados.
A primeira Lei de Bases para o Regime Florestal data do início do século XX. A preocupação com a floresta nacional dá origem à apresentação da proposta de lei de Bases para o Regime Florestal em 1900 e à publicação da lei de Execução do Regime Florestal em 1901.
Este diploma procura promover, proteger e explorar os recursos florestais e assegurar a proteção dos solos, dos recursos hídricos e dos complexos dunares, com um foco especial na arborização das serras e reflorestação de incultos. A implementação do Regime Florestal veio também passar os baldios para a administração dos Serviços Florestais o que, a par com as arborizações e limitações ao uso do solo e práticas tradicionais, especialmente o uso do fogo, deu origem a revolta por parte das comunidades rurais.
Em 1926 é publicada a reorganização da Polícia Florestal, que reforça a vigilância e a fiscalização das Matas Nacionais e aumentam as restrições de uso do fogo, assim como de atividades permitidas em áreas percorridas por incêndios. As proibições relacionadas com a silvopastorícia são as que mais resistências levantam junto das populações rurais, o que levou ao reforço e à reorganização da polícia florestal.
Em 1954 é publicado em Decreto-Lei um reforço das restrições ao uso do fogo e pastoreio e das sanções aplicáveis por infração.
Anos 70: a visão de uma floresta sem fogo
Só 16 anos depois, em 1970, foi publicada nova legislação sobre o uso do fogo – dirigida ao seu condicionamento. Este diploma – Decreto-Lei n.º 488/70 de 21 de outubro – reflete já um vasto conjunto de questões como o crescimento da área arborizada, as alterações sociais que levaram maior número de pessoas a usufruir de espaços florestais, a falta de mão-de-obra rural para atividades de gestão de combustível e combate a incêndios, as preocupações com períodos de seca que aumentaram o número de incêndios e área ardida, bem como a consequente necessidade de prevenção florestal. Além de assinalar o Ano Europeu da Conservação da Natureza, o texto introduz a visão de uma “floresta sem fogo”, procurando adotar medidas para eliminar as causas dos incêndios florestais, realizar campanhas educativas, determinar épocas de perigo e fazer uma classificação espacial do risco de incêndio.
Após o 25 de Abril de 1974, os baldios são devolvidos às comunidades rurais, mas mantêm-se sob Regime Florestal. A presença dos Serviços florestais vai-se reduzindo numa paisagem em alteração, onde aumentam as áreas de povoamentos de pinheiro-bravo. O crescimento do número de incêndios e da área ardida leva à publicação do Decreto-Lei n.º 327/80. Este diploma legisla sobre a prevenção, deteção e combate a incêndios florestais, estabelecendo, pela primeira vez, a necessidade de planeamento para a deteção e redução das causas dos incêndios.
No ano seguinte é publicado o Decreto Regulamentar n.º 55/81 que cria a Comissão Especializada de Fogos Florestais, envolvendo agentes a nível nacional, distrital e municipal: estabelece as “épocas de fogos”; define a zonagem do risco de incêndio; atribui competências de prevenção, fiscalização, deteção e combate aos incêndios e menciona, pela primeira vez, a participação de meios aéreos. São definidas também a obrigatoriedade de gestão de combustível e de criação de faixas em redor de edifícios e infraestruturas.
Legislação sobre o uso do fogo
No texto deste Diploma é referida, pela segunda vez desde a publicação do “Regimento do Guarda Mór do Pinhal de Leiria” em 1751, a utilização de fogo controlado – por pessoal técnico dos Serviços Florestais ou por estes credenciado – como medida de prevenção.
Este Decreto vigorou, com algumas alterações, até 2004. As mais significativas dizem respeito ao aumento das restrições e das penas associadas, com a intenção de desencorajar o uso do fogo por parte das comunidades rurais.
Século XX: legislação sobre o uso do fogo reflete pressão de prevenir grandes incêndios
Após os grandes incêndios de 2003, que no seu conjunto devastaram cerca de 425,7 mil hectares, o Decreto-Lei nº 156/2004 estabelece as medidas a desenvolver no âmbito do Sistema Nacional de Prevenção e Proteção da Floresta Contra Incêndios. O diploma determina regras para reduzir a potencial de propagação dos incêndios e define, pela primeira vez, os conceitos base relacionados com o uso do fogo:
– “Fogo controlado”, a ferramenta de gestão de espaços florestais que consiste no uso do fogo sob condições, normas e procedimentos conducentes à satisfação de objetivos específicos e quantificáveis e que é executada sob responsabilidade de técnico credenciado;
– “Queima”, o uso do fogo para eliminar sobrantes de exploração cortados e amontoados;
– “Queimadas”, o uso do fogo para a renovação de pastagens.
As novas regras não regulamentam, mas limitam o uso do fogo em todo o espaço rural – e não apenas no espaço florestal – e dentro do “período crítico”, que substitui a designação “época normal de fogos”. Este Decreto-Lei (DL) vem também estabelecer o uso de fogo técnico ou controlado como medida preventiva, mas só permitida fora do período crítico.
Em 2004 são criados os Gabinetes Técnicos Florestais (GTF), que são instalados nos municípios entre 2004 e 2005. Cabe ao GTF, mais precisamente ao seu técnico dedicado ao planeamento e monitorização da prevenção dos incêndios florestais, a elaboração do Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios.
O primeiro regulamento para o uso do fogo técnico – pela Portaria 1061/2004 – é publicado em 2004 e define a necessidade de credenciação pela Direcção-Geral dos Recursos Florestais.
2005 foi de novo marcado por um elevado número de incêndios e de área ardida, o que levou a que, em 2006, fosse aprovado o Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios (PNDFCI) com políticas sectoriais e objetivos para os períodos 2006-2012 e 2012-2018.
Além do PNDFCI, é publicado o Decreto-Lei nº 124/2006 que vem exigir a presença de um técnico ou de uma equipa de bombeiros ou sapadores florestais quando são feitas queimadas, procurando diminuir a utilização do fogo também pelo aumento de coimas. Este novo diploma introduz ainda conceito de “contrafogo” como técnica de combate a incêndio e possibilita que bombeiros qualificados possam realizar fogo controlado.
Em 2009 são transferidos para os municípios as atribuições de constituição e funcionamento dos Gabinetes Técnicos Florestais, prevenção e defesa da floresta e elaboração de regulamentação de uso tradicional do fogo em queimadas.
O DL n.º 124/2006 é alterado em 2009, ampliando as regras de utilização do fogo técnico para além do fogo controlado e introduzindo o conceito de fogo de supressão: “o uso do fogo no âmbito da luta contra os incêndios florestais, compreendendo o fogo tático e o contrafogo”. Este tipo de uso de fogo, especialmente o fogo de supressão, só pode ser usado sob controlo técnico dos Serviços Florestais.
Em 2008 é aprovada a Lei Orgânica da entretanto extinta Autoridade Florestal Nacional (AFN) e com ela é instituído um dispositivo de prevenção estrutural, que vem formalizar dois grupos que existiam formalmente desde 2006: o primeiro era compostos pelos técnicos dedicados ao apoio ao combate a incêndios, que formaram o GAUF – Grupo de Analistas e Utilizadores de Fogo; e o segundo, o GeFoCo – Grupo de Gestores de Fogo Técnico, era uma unidade dedicada à utilização de fogo controlado numa vertente mais de prevenção de incêndios. Estes grupos foram extintos da estrutura da AFN em 2010.
Em 2011, o Código Penal é alterado e o uso de fogo para renovação de pastagens é criminalizado (crime de incêndio florestal), no âmbito dos crimes de dano contra a natureza e de poluição.
Em 2014, uma nova alteração na legislação separa as competências de utilização de fogo técnico para prevenção e para combate. Os Serviços Florestais (ICNF) ficam responsáveis pelo fogo controlado e a Autoridade Nacional de Proteção Civil pela utilização de fogo de supressão em incêndios florestais.
Em 2017, após os maiores incêndios de que há registo em Portugal, é feita a quinta alteração ao Decreto-Lei n.º 124/2006 que estrutura o Sistema de Defesa da Floresta Contra Incêndios. O texto traz novas regras de uso do fogo e define o fogo de gestão de combustível: “o uso do fogo que, em condições meteorológicas adequadas, e em espaços rurais de reduzido valor, permite a evolução do incêndio rural dentro de um perímetro preestabelecido, com um menor empenhamento de meios de supressão no interior do mesmo”.
A legislação mais recente em termos de uso de fogo (em vigor em 2022) foi publicada em 2019 – Decreto-Lei n.º 14/2019 – e adapta as normas relativas a queimadas e queimas de sobrantes. As alterações encontram a justificação no próprio texto: “considerando o elevado número de ignições que têm origem humana, estando uma grande parte dessas ignições associada a negligência e acidentes, nomeadamente decorrentes do uso desajustado do fogo, onde se incluem as queimas de sobrantes e as queimadas”. O novo diploma reforça a necessidade do acompanhamento técnico de queimadas e passa a considerar o uso de fogo intencional quando este acompanhamento não exista.
O artigo foi publicado originalmente em Florestas.pt.