Jaime Piçarra

Disponíveis para defender aquilo em que acreditamos? – Jaime Piçarra

Há dias, numa reunião interna da IACA, em que falávamos da volatilidade e da incerteza dos mercados, dos desafios que temos pela frente e no quanto nos sentimos isolados para lhes dar as respostas adequadas, tais as contradições (e fragilidades) das políticas nacionais e europeias, perguntavam-me se Portugal quer apostar na pecuária. Sinceramente, não sei.

Também me questiono se a União Europeia considera a produção animal – cuja indústria, no seu conjunto (alimentação animal, leite e carnes) é a mais relevante do agroalimentar – realmente importante.

Infelizmente, temos tido alguns sinais que indiciam não ser uma prioridade, sobretudo a produção de carne, numa altura em que os focos são a segurança alimentar (disponibilidade de alimentos), o combate às alterações climáticas, a crise demográfica, a desertificação e abandono das zonas rurais, a sustentabilidade, nos seus pilares económico, social e ambiental, e o papel da Europa na geopolítica mundial, nomeadamente nas cadeias de abastecimento globais.

Talvez a resposta seja “sim”, com um outro modelo de pecuária, que não sabemos bem como será, mas que não nos augura nada de bom, tantos são os constrangimentos e obstáculos colocados, quer no lado da oferta, com crescentes restrições legislativas nos licenciamentos ou nos tipos de instalações, proteção ambiental, saúde e bem-estar animal, ou da procura, nas dietas alimentares, nos apelos a um menor consumo de produtos de origem animal, proibições sucessivas e eventualmente, quiçá num futuro não muito longínquo, a existência de taxas ou diferenciação do IVA.

Veja-se, aliás, o recente exemplo de Espanha com a suspensão do IVA em alguns produtos essenciais, deixando de fora o setor das carnes, constituindo, em nossa opinião, um claro sinal político.

Quando se privilegia o fundamentalismo, o populismo e a falta de senso, quando se olha mais para o ruído e se ignora a Ciência, corremos sérios riscos de definhar e empobrecer, de acrescentar mais abandono ao interior desertificado, tanto mais que para a definição das políticas públicas, os governos e decisores políticos têm de auscultar (e bem) os principais intervenientes da “sociedade civil”, sem nunca esquecer os “desafios societais” aqueles que, muitas vezes, nem sabemos por quem são definidos.

Se queremos produzir com respeito pelos consumidores, pelo ambiente e equilíbrio do território, pelo desenvolvimento sustentável – que tem de ser viável para criar valor e emprego – que tem de produzir alimentos para diferentes mercados, sem esquecer as exportações, cada vez mais essenciais para o equilíbrio dos nossos mercados,  o que pretende a opinião pública ou publicada, da pecuária ou do mundo rural, que têm de estar diretamente ligados?

É um facto que o sector pecuário está hoje no epicentro dos debates públicos em todo o mundo e não apenas na Europa.

Com essas discussões, não raras vezes amplificadas pelas redes sociais, aparecem os convencidos, os ideólogos, deixando pouco espaço para a ciência ou o bom-senso, para a comunicação e o contraditório, alimentam muitos mitos e estereótipos, que contrastam com a realidade vivida por agricultores e profissionais no terreno. A Europa é um espaço de diversidade, multifuncional, em que a dimensão média das explorações é muito inferior à dos nossos principais competidores como os EUA ou o Brasil.

A atividade pecuária apoia um grande número de empregos e indústrias, contribui para uma economia circular e garante um fornecimento constante e acessível de alimentos nutritivos, necessários para uma dieta equilibrada.

Embora o setor esteja plenamente consciente e atue em muitos desafios, com abordagens construtivas e reafirmando que quer ser (e é) parte da solução, o fim da pecuária na Europa, ou a introdução de fortes limitações ao seu desenvolvimento sustentável, teria consequências desastrosas, pelo que algumas das atuais discussões parecem-nos bastante perigosas.

Num passado não muito recente, tivemos exemplos a nível mundial: o colapso da Costa do Marfim que apostou na agricultura biológica para a sua autonomia alimentar ou da Nova Zelândia, país em que a proibição da produção de ovos provenientes de galinhas poedeiras em gaiolas, são disso exemplos, ainda assim esta última opção também se discute no quadro da União Europeia. A saber, a consequência destas iniciativas foi a escassez na oferta e grandes dificuldades para os produtores, quer no mercado interno, quer para exportação. Uma outra medida do Governo neozelandês tinha sido, no final de 2022, a imposição de uma taxa aos gases emitidos pelos bovinos como medida de combate ao aquecimento global.

Também já compreendemos, com os estudos atualmente disponíveis, os impactos da legislação sobre a utilização sustentável de pesticidas ou da Estratégia “Do Prado ao Prato”, sendo certo que o peso político da pasta da Agricultura e do Desenvolvimento Rural não tem a importância de outrora, e dificilmente terá, pelo menos até final do mandato da atual Comissão.

Em Bruxelas, discutimos igualmente a futura legislação relativa ao bem-estar animal, estando em cima da mesa propostas como a limitação de leitões por porca ou o nível de produção de leite pelas vacas leiteiras. Esta abordagem representa um enorme retrocesso no que foi a evolução da pecuária, desde a genética à alimentação, à saúde animal e, não menos importante, a um direito a uma alimentação segura, de qualidade e a preços razoáveis, que permitiu, durante muitos anos, manter a inflação em níveis que contribuíram para a prosperidade dos povos em toda a Europa.

Existe de facto uma forte corrente contra a pecuária, que defende a redução do número de animais, os pequenos agricultores, a agricultura biológica, o fim das gaiolas ou as produções em ar livre como o futuro modelo em que nos devemos apoiar. Toda esta gente ignora temas tão básicos e essenciais como a biossegurança ou a eficiência na utilização de recursos, a tecnologia ao serviço das produções e da produtividade e a relevância do comércio internacional, em que a União Europeia não é, não pode ser, uma ilha.

Ainda esta semana, a propósito da valorização dos talentos existentes na Europa e das zonas rurais, a Comissão lançou um Mecanismo para promover os Talentos,  que ajudará as regiões da UE afetadas pelo declínio acelerado da sua população em idade ativa, a formar, reter e atrair pessoas, para mitigar o acentuado declínio do interior. Na sua Comunicação ao Conselho, Parlamento Europeu, Comité Económico Social e Comité das Regiões, a Comissão reconhece que 82 regiões (30% da população) sofrem o efeito de uma rápida redução da mão-de-obra, baixos níveis de educação e saída de jovens.

Os Estados-membros da UE enfrentam um declínio acentuado da sua população em idade ativa. Esta população diminuiu 3,5 milhões de pessoas entre 2015 e 2020, prevendo-se que venha a perder mais 35 milhões de pessoas até 2050.

Questionamo-nos se existe uma verdadeira política integrada no espaço europeu e nacional que, de uma forma holística, responda aos atuais problemas nesta “tempestade perfeita” em que vivemos, e receamos que o PEPAC não seja suficientemente robusto, nem esteja à altura das ambições.      

Mas não estamos condenados a um papel passivo e de meros espectadores.

A UE criou iniciativas de cidadania para que os seus cidadãos liderem a mudança. Quando uma iniciativa de cidadania atinge um milhão de assinaturas, a Comissão Europeia é obrigada a responder aos cidadãos e a tomar medidas.

Tal como aconteceu com outros dossiers – e o fim das gaiolas terá sido dos mais emblemáticos – foi possível abrir o debate e lançar a discussão de uma forma legítima e legitimada pelas regras de cidadania europeia.

Nesta perspetiva, a European LIvestock Voice, entidade que integra organizações representativas da pecuária da União Europeia, incluindo a alimentação animal, avançou com uma proposta que podemos encontrar em meatthefacts sob o lema “Protect Our Rural Heritage”,  que procura trazer um maior equilíbrio ao debate. Quando escolhemos um dos lados, temos de saber lidar com as suas consequências.

Será que não conseguimos atingir um milhão de assinaturas no espaço da União Europeia?

Dispomos assim de um instrumento que não devemos desperdiçar, de sermos ativistas para as causas em que acreditamos.

Construir a nossa narrativa. Não deixar que os outros liderem o nosso futuro.

Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA


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