Leonor e a mãe são as últimas castrejas a cumprir as mudas do gado em Melgaço

Leonor Rodrigues e a mãe, Isalina, são as últimas mulheres de Castro Laboreiro, Melgaço, a cumprir a “muda” do gado da branda para a inverneira, ou, o contrário, como manda a estação do ano.

Leonor não sabe por quanto tempo mais vai cumprir a transumância, a mudança da casa na branda, a uma maior altitude, para a habitação, em pedra, na inverneira, no vale, mais abrigada.

“Tudo depende da saúde da minha mãe. Enquanto a minha mãe estiver em condições, faço a muda”, garantiu Leonor.

O ciclo, que se cumpre duas vezes por ano, repete-se há milhares de anos na vila de Castro Laboreiro, elevada a uns mil metros acima do nível do mar.

Antes do Natal, mãe e filha, pegaram na roupa necessária para aguentar o rigor do inverno e nos animais e abalaram da casa da branda, no lugar de Padresouro para a da inverneira, em Cainheiras, para fugir ao frio agreste daquelas paragens.

“Neva na mesma, como lá em cima, mas não são neves tão grandes”, referiu a pastora.

Da casa na branda, que Leonor vislumbra da inverneira, vieram as galinhas, patos, coelhos e a toura. Uma mudança bem mais fácil que noutros tempos.

“Hoje não dá muito trabalho porque é de carro e trator. Antigamente era em carros de bois, monte abaixo, e mudava-se tudo. Agora as casas estão equipadas e praticamente trazemos a roupa e os animais”, explicou.

A Joia, cadela da raça que herdou o nome da vila mais a norte do país, e o rafeiro Bolinhas guardam as donas e ajudam a manter na ordem os animais quando, pela manhã, partem para os pastos e, no regresso, ao pôr do sol, para as cortes, onde os esperam canas de feno fresco.

Aos 57 anos lembra-se da “alegria” que envolvia a aldeia quando se iniciava a prática única de pastorícia em Portugal.

As brandas ou as inverneiras estavam “cheias de gente”, jovens e sobretudo mulheres vestidas de preto [as viúvas de vivos] porque os homens emigravam à procura de vida melhor.

“Da primeira pessoa do lugar à última, todas mudavam. Pela descida abaixo [da branda para a inverneira] era vacas e carros de bois, ovelhas, cabras. As galinhas e coelhos vinham no alto dos carros de bois”, contou.

A tradição foi deixando de ser o que era e, atualmente, “ninguém” a cumpre. Uns fixaram-se nas brandas, outros nas inverneiras.

“Antes havia mais animais e não havia o que dar [alimento]. Tínhamos de fugir para o abrigo. Trabalhava-se tudo [campos agrícolas]. Agora há menos animais e muito feno. Nos dias maus, os animais ficam na corte e alimentam-se com feno”, apontou Leonor, para explicar a tendência de extinção do costume.

A pastora cresceu a “mudar” de casa, duas vezes por ano, e até seria “estranho” se a rotina se alterasse.

“Gosto de passar o Natal aqui [na inverneira] e a Páscoa lá em cima [na branda]”, conta.

Quando chegar março, lá por alturas da Páscoa, as duas mulheres, uma viúva e a outra solteira, vão regressar à branda onde permanecerão até à próxima muda.

No lugar de Entalada, onde se contam pelos dedos de uma mão o número de pessoas que residem em permanência na inverneira, os dias correm em silêncio, apenas interrompido pelo som da água, agora farta, a correr pelos riachos, dos chocalhos dos animais ou do latido dos cães assustados com a presença de estranhos.

Raquelinda Gonçalves, de 72 anos, abandonou a muda em 2021. A saúde do marido e os cuidados de que precisa o irmão mais velho impedem-na de cumprir um costume a que se habituou desde que tem “lembrança”, em criança.

“A muda, como antes, nunca mais a vou fazer”, confessa com tristeza. Sozinha para “lidar” com tanto trabalho, precisava de “mais pessoas para ajudar”, mas os filhos seguiram outros caminhos.

À branda do Curral Gonçalo, onde nasceu, regressa apenas para cortar o feno que alimenta os animais.

Chegou a ter cinco vacas, mas agora restam três: a Diana, mãe da Dourada e avó da Cereja, que são tratadas como animais domésticos. As vacas devolvem os cuidados de Raquelinda com carícias e maradas meigas, obedecendo ao chamado da dona no percurso até às pastagens ou a caminho das cortes.

A tristeza de não fazer a muda interrompe, com frequência, o discurso de Raquelinda. De voz embargada prefere ler os versos que escreveu para a reportagem da Lusa e que contam a história de vidas únicas:

“Foi no curral do Gonçalo, o lugar onde eu nasci. Tenho muitas saudades do tempo que ali vivi.

Éramos muita mocidade, isso não vou olvidar do tempo que lá passei, eu sempre vou recordar.

A minha inverneira é a Entalada aonde agora estou a viver, era no carro das vacas que a muda ia fazer.

Eu tinha dois filhos pequenos que também para o carro das vacas os subia. Era aquele transporte porque estrada não havia.

A muda era difícil, mas também para mim era alegria. Eu ia ver os meus outros vizinhos que já há tempos não via.

O tempo anda para a frente, mas para trás não vai voltar. Passa tão devagarinho que nós não o vemos passar.

Passa um dia e passa outro e o tempo sempre a passar, só fima as recordações que eu sempre vou recordar

Eu passei chuva, passei neve. Andava no monte com o gado, mas também esses dias nunca serão olvidados.

Eu vivi tempos bons, mas também tempo amargo. Comecei de muito nova com muitos velhos a meu cargo.

Faz parte da minha vida que vos estou a contar. Eu só sei o que passei e não sei ainda o que tenho para passar

Eu, do tempo que passei tenho muitas saudades, mas agora termino e desejo para todos saúde e muitas felicidades”.


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