Jaime Piçarra

Notas da Semana – O que (não) aprendemos com a guerra – Jaime Piçarra

Infelizmente, celebramos hoje um ano no que julgávamos impensável acontecer nesta Europa, supostamente civilizada e de Paz, em pleno século XXI: a invasão da Ucrânia pela Rússia, no dia 24 de fevereiro de 2022.

Os vários livros, filmes e documentários das guerras que varreram a Europa, as duas Grandes Guerras, ou os conflitos mais regionais, nos Balcãs, em África, no Afeganistão…parece que não contribuíram para um clima de paz suficientemente duradouro. Também não contribuíram para a Paz as memórias já esquecidas, as lutas pelo poder ou o ajuste de contas com o passado, que sempre marcaram a nossa História, independentemente da narrativa que se quer promover.

A verdade é que temos uma opinião pública cada vez mais indiferente à política e às guerras longínquas, mas atenta e preocupada quando os conflitos se aproximam do nosso espaço habitual e nos retiram da “zona de conforto” onde nos habituámos a viver, de liberdade e acesso aos bens essenciais, esquecendo que os valores que hoje defendemos no mundo ocidental só foram possíveis pelo sacrifício de muitos que nos antecederam.

Numa altura em que se anunciam planos de Paz, liderados pela China, e em que muitos afirmam que a Rússia não pode ser humilhada – quando conquistou quase 20% do território da Ucrânia – estes valores não podem ser esquecidos e deverão ser reafirmados hoje, dia 24 de fevereiro de 2023.

Recordamo-nos da invasão da Crimeia pela Rússia em 2014 e das reações de então, tímidas, com retaliações comerciais de pouco significado e com uma Europa amedrontada, a confiar que os russos seriam, apesar disso, um parceiro confiável no comércio global e na dependência energética e de matérias-primas relevantes para o Ocidente.

Felizmente, quase tudo mudou e afinal, contrariamente a todas as previsões, a Ucrânia resiste, a União Europeia está hoje mais coesa e reforçada, as opiniões públicas estão mais conscientes das ameaças e, sobretudo, de que nada está garantido, quer a defesa, quer a alimentação. A relação transatlântica está hoje mais reforçada, mas existem muitas ameaças a ter em conta neste mundo bipolar e cuja influência se desloca claramente para o Leste, na Europa, e para o indo-pacifico, a nível global.

Neste dia, em que toda a comunicação social releva, e bem, este acontecimento, não faltarão comentadores bem mais habilitados do que nós para falar dos diferentes tipos de impacto desta guerra sem sentido (aliás, como todas), desde a crise dos refugiados à geopolítica, à economia, à crise energética, passando pela coesão da Nato e pelo seu alargamento, até chegarmos a questões como o que podemos esperar do futuro, qual a posição ideal das Nações Unidas, da Turquia, da China, que impacto tem a crescente influência russa em África…e, obviamente, quais as consequências da inflação, do aumento das taxas de juro, da perda de poder de compra e da elevada fatura da guerra que a Europa já está a suportar, fatura que tende a aumentar, evoluindo ao ritmo da guerra, sem que ninguém consiga prever o seu fim. Mas, ainda assim, acreditamos que um pós-guerra chegará e nessa altura há de haver uma fatura adicional, a da reconstrução da Ucrânia, bem como do seu futuro no quadro da União Europeia.

O que nos motiva para esta reflexão – obviamente para além de uma modesta homenagem ao povo da Ucrânia, que sofreu uma invasão e resiste, com o apoio do Ocidente – são algumas notas que não devem ser esquecidas neste período conturbado que continuamos a viver no setor agrícola e agroalimentar. Felizmente, foram tomadas medidas, no plano europeu e nacional, que permitem afastar um cenário de recessão, mas a inflação continuará por aí, muitos dos custos não irão ser reduzidos, há que continuar a apostar em políticas públicas de apoio às empresas e famílias, pois a incerteza e instabilidade deverão continuar a marcar o nosso quotidiano.

Obviamente que as consequências da invasão da Ucrânia marcaram e condicionaram a evolução do setor, mas é preciso relembrar que o acréscimo de custos já se vinha a fazer sentir desde o segundo semestre de 2021. Entretanto, a crise energética agravou-se com as restrições e dependência do gás e dos fertilizantes. Além disso, em 2022 tivemos igualmente uma seca brutal, problemas sanitários que delapidaram milhões de animais (por exemplo suínos em Espanha) em toda a Europa.

No fundo, as consequências da guerra só vieram contribuir para agravar as dificuldades, com acréscimos de custos brutais e níveis de inflação elevadíssimos, sobretudo na alimentação, situação a que não estávamos habituados. Talvez não tivéssemos dado suficiente atenção, no passado, aos baixos preços dos produtos agrícolas. Talvez seja necessário valorizar a agricultura e o mundo rural.

Vai ser muito difícil regressar aos preços de 2021, até porque temos políticas ligadas ao ambiente, bem-estar animal e segurança alimentar. As exigências da sociedade, a par da necessária transição energética terão de ser remuneradas pelo mercado, isto é, pelos consumidores, sob pena de colocarmos em causa a nossa soberania alimentar, um tema que foi relançado a partir do dia 24 de fevereiro, mas que, atualmente, parece ter ficado esquecido.

De facto, Portugal acordou em fevereiro/março de 2022 para a questão dos cereais e para a dependência da Ucrânia neste aspeto. No estalar da guerra ouvimos falar dos stocks para 15 dias, da falta de armazenagem… não faltaram referências à Campanha do Trigo, à necessidade de stocks estratégicos, afinal, o território invadido, a par da Rússia, eram o celeiro do País e houve que arranjar alternativas em tempo útil, com o apoio das autoridades nacionais, mas sobretudo, pelo esforço dos operadores e das empresas. Reuniões, grupos de trabalho interministeriais que funcionaram e que continuam a ser necessários. Em Bruxelas, acompanhámos a criação das Vias de Solidariedade e o acordo do Mar Negro, da maior importância, que permitiram exportar mais de 40 milhões de toneladas.

Mas, um ano passado e aqui chegados nas condições que acabámos de recordar é necessário lembrar que ainda temos muito para fazer se queremos continuar a ter acesso a alimentação na Europa durante estes tempos conturbados.

O acordo do Mar Negro tem de ser negociado em março para um novo período de 120 dias. A Ucrânia pretenderá uma extensão para um prazo de um ano e a Rússia, certamente, vai utilizar a questão do corredor como arma de arremesso.

Hoje temos menor dependência de cereais da Ucrânia como é evidente, mas apenas a transferimos para outras geografias, na América do Sul e do Norte, para países que têm regras de produção diferentes ao nível da utilização de pesticidas e em que os limites máximos de resíduos nos podem colocar problemas de abastecimento. Os mesmos países que produzem matérias-primas geneticamente modificadas, cujos eventos, em alguns casos, ainda não estão aprovados na União Europeia ou são rejeitados por correntes ambientalistas ou que ignoram a ciência. Convém, neste âmbito, relembrar que vamos ter pela frente uma discussão em torno das novas técnicas de melhoramento de plantas, provavelmente em junho, pois, no passado dia 7 de fevereiro o Tribunal Europeu de Justiça decidiu, e bem, que algumas dessas técnicas deverão estar fora da legislação sobre os OGM.

Há que considerar tudo isto, não só para evitar disrupções na cadeia de abastecimento, mas igualmente para superar os desafios da competitividade e sustentabilidade, com o recurso a todas as tecnologias disponíveis.

Também num contexto de crise económica e de abandono crescente de animais de companhia, o poder político não foi sensível à redução do IVA na sua alimentação – e nem era preciso a isenção de que beneficiam (e bem) todos os outros animais – mas, na nossa opinião, ainda é tempo de ponderar a baixa dos atuais 23% para 13%, em nome da saúde e do bem-estar animal e de mitigar um flagelo que só nos envergonha enquanto sociedade.

Muito haveria para dizer… sobre a PARCA que não reuniu, sobre as infraestruturas portuárias e a SILOPOR que continua igual, sobre a capacidade de armazenagem que não temos, nas empresas e nos operadores – temos de alterar as ajudas no próximo PDR – ou seja, sobre vários itens que concorrem para a nossa necessidade de produzir mais e melhor, numa estratégia que nos permita ser mais autónomos, menos dependentes e com maior capacidade exportadora. Continua a faltar-nos uma maior articulação entre diferentes áreas governativas, como aqui temos repetido, para reduzir os custos de contexto e para criar políticas integradas, em articulação com os empresários, agricultores e as suas organizações.

O esforço de guerra deverá continuar, e com ele a aposta na defesa da Europa. As ajudas da PAC podem estar comprometidas com as novas orientações. Talvez seja necessário aumentar o contributo dos Estados-membros e reformar a União Europeia antes dos próximos alargamentos, pois a conjuntura atual deixa antever um reforço do peso da Polónia (a última fronteira) e os novos candidatos, do Leste europeu.

Temos de olhar para a Agricultura, Alimentação e Mundo Rural como estratégicos, na certeza de que só ganharemos com as parcerias. É o multilateralismo face aos protecionismos. É continuarmos do “lado certo” da História.

Esta também é uma lição que podemos retirar da resiliência do povo ucraniano, da sua simplicidade, coragem e determinação.

É uma inspiração para o futuro da Europa, se quer ter um papel de relevo na geopolítica global. É isto que verdadeiramente está em causa!

Слава Україні!;  “Glória à Ucrânia!

Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA

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