Esta mania das alcunhas tem muito que se lhe diga. É o caso de Aveiro, apelidada de “Veneza portuguesa”. Não há certezas sobre quem a terá assim batizado, mas não poderia ser mais redutor. Para Aveiro e para Veneza, para as suas gentes e para as suas histórias, tão distintas quanto ricas. Basta estar lá mais do que apenas umas horas e depressa se percebe que meia dúzia de canais urbanos não fazem uma Rainha do Adriático, nem uma gôndola está ao nível da vida árdua de um moliceiro, mas como manobra de marketing até pode ter os seus frutos.

Foi com a missão de conhecer e respeitar as diferenças, que a SÁBADO Viajante chegou à região de Aveiro e Ílhavo, terras de ria e mar, porcelana e bacalhau, hotéis-boutique, fábricas, museus, sal, ostras e tanto mais.

Museu Vista Alegre, Ílhavo

A primeira paragem foi na Vista Alegre, fábrica, museu e hotel. Todos eles em grande estilo. Comecemos pela história. Fundada em 1824, a fábrica de porcelana mais famosa de Portugal, foi também a primeira do género no País. Hoje é propriedade do Grupo Visabeira, mas tudo começou com José Ferreira Pinto Basto, visionário proprietário agrícola e comerciante do século XIX. Os primeiros anos foram de tentativa e erro, até se acertar na composição certa da pasta e serem descobertas importantes jazidas de caulino na região. A partir daí, vieram as feiras e exposições internacionais, os prémios e as distinções para a mais emblemática marca de porcelanas portuguesas. Durante o século XX, chegaram novos estilos, exportação, colaborações com a família real inglesa e encomendas de todo o mundo. E em 1964, abriu o Museu da Vista Alegre, onde se fica a saber toda esta história.

Sala dos Artistas, Vista Alegre

A visita começa em frente ao imenso forno, para termos uma primeira ideia da dimensão desta fábrica, do volume de produção e da quantidade de gente que por aqui passou ao longo de praticamente dois séculos. Se tiverem a sorte de ter Filipa Quatorze, coordenadora do museu, como cicerone, será ainda mais fácil mergulhar neste mundo de arte e detalhe com mais de 30 mil peças armazenadas. E, se respeitarem o silêncio, vão poder ver os artistas a trabalhar de perto.

São mesmo os pormenores que fazem a diferença, como se entende ao entrar no Montebelo Vista Alegre Ílhavo Hotel, tudo junto, mesmo ali ao lado, parte edifício novo, parte antigo palácio, parte bairro operário, junto à Ria e ao rio Boco. Conjugado sem atritos, nem as cegonhas no alto das antigas chaminés da fábrica sentem qualquer impacto. Estão a tomar conta dos pontos altos, como a cruz da capela dedicada à Senhora da Penha de França, do século XVII, outro local que merece ser visitado, tal a qualidade do que por lá se encontra. Ou a Fonte do Carrapichel, que dá nome à Vista Alegre, como nas suas pedras se pode ler.

Montebelo Vista Alegre Hotel, em Ílhavo

Passear por esta aldeia nascida da necessidade de alojar os trabalhadores, é também entender o papel social, descobrir o grupo de teatro, a pioneira creche, visitar as lojas da marca – e das “irmãs” de grupo empresarial, Bordallo Pinheiro e Atlantis. Mas é, acima de tudo, aproveitar para recarregar as baterias. No spa, claro, ou à mesa do restaurante, com um menu onde há pato, vieira, polvo, peixe, marisco, robalo ou cabrito, devidamente acompanhado pelos brancos e tintos da Casa da Ínsua, outro elemento da família empresarial, uma das mais discretas em termos mediáticos, mas com mais de 12 mil pessoas na folha de pagamentos.

Continuamos na cidade de Ílhavo, a menos de cinco quilómetros de Aveiro, com as típicas rivalidades associadas. O ponto seguinte é o Museu Marítimo, mas antes há que passar pelo Jardim Henriqueta Maia para um café e um vislumbre da estátua de Carlos Paião, filho de gentes da terra, nascido por necessidade em Coimbra. Recordados os sucessos do cantor, é tempo de entender o papel da pesca do bacalhau na cidade.

Estátua de Carlos Paião, Ílhavo

O impacto começa logo à entrada, com o edifício do museu. Por fora e por dentro, demonstra arrojo e convida-nos até a subir a bordo de um bacalhoeiro para entender a dificuldade desta atividade. Juntando o diretor Nuno Miguel Costa à conversa, depressa se percebe uma realidade: “Praticamente todas as pessoas em Ílhavo têm ou tiveram alguém ligado à pesca do bacalhau.” Estima-se que, entre 1937 e 1974, pelo menos 21 mil homens embarcaram para a Terra Nova e Gronelândia, saídos da costa entre Vila Praia de Âncora e Fuseta. Grande fatia – ou posta, pela coerência – partiu de Ílhavo. E foram muitos os que não voltaram dessas campanhas de seis meses, normalmente de março a setembro. E enquanto isso, no Aquário do Museu Marítimo de Ílhavo, lá estão os ditos bacalhaus a serem alimentados. É bom vê-los vivos, sem sal, nem espalmados em forma triangular. Para muita gente que aqui vem, é a primeira oportunidade de os ver assim.

Aquário dos Bacalhaus, Museu Marítimo de Ílhavo

É tudo perto por aqui, seja o navio museu “Santo André”, junto ao Jardim Oudinot, na Gafanha da Nazaré, ou as mais que conhecidas casas com riscas coloridas da Costa Nova, na Gafanha da Encarnação. Terminamos aí o dia, justamente em tons de vermelho e branco, no restaurante Praia do Tubarão. Mesmo quem chega de novo, sente-se em casa. Mais ainda com a caldeirada de enguias e o ensopado de garoupa. E as amêijoas. E as lulas fritas. E Adriano Ferreira, o patrão deste barco há 35 anos – “O segredo está na ponta dos dedos.”

Adriano Ferreira, restaurante Praia do Tubarão, Costa Nova
Amêijoas do Praia do Tubarão, Costa Nova

Quase sem que o GPS tenha tempo de atualizar a nova direção, já estamos em Aveiro, a terra de Eça de Queirós, Ferreira de Castro ou Zeca Afonso. A sua localização é tão especial para a sobrevivência humana que aqui vive gente desde a pré-história. O sal e o comércio naval foram fundamentais para que prosperasse. Os Romanos entenderam o seu potencial e, até hoje, continuam a ser modos de vida. Para isso foi fundamental, no início do século XIX, o assoreamento da barra de Aveiro e a sua abertura artificial. Chegou mais gente, mais investimento e com eles a tal prosperidade, à vista nos edifícios da cidade, pontuados pela Art Déco e pelo Modernismo, mas mantendo também a ligação ao tradicional, pelas casas revestidas a azulejo, herança dos marnotos e dos pescadores.

Museu da Arte Nova, em Aveiro

Começamos, justamente, pela arquitetura e pelo Museu Arte Nova. Funciona na antiga casa Major Pessoa, de 1909, e apresenta uma exposição dedicada à influência da Arte Nova na tipografia. É o ponto de partida para depois ir percorrer as ruas à descoberta de 28 edifícios pautados por este movimento. E, de caminho, descobrir lojas, cafés, restaurantes, a vida de uma cidade orgulhosamente universitária e com um passado de luta e contestação. Seja em 1973, durante a realização aqui do Congresso da Oposição Democrática, ou nas paredes forradas a posters e frases fortes do mítico bar Posto 7, no mais famoso largo de Aveiro, a Praça do Peixe.

O 1877 Estrela Palace, boutique-hotel em Aveiro

É também nestas ruas sempre com canais por perto que encontramos sítio para dormir. E que boa surpresa – 1877 Estrela Palace. Fica na rua da Católica, mítico comércio local da cidade. O palacete do século XVIII foi propriedade da família Barbosa, negociantes da terra, e hoje é um boutique-hotel sem mácula. Tem uma vista única para a cidade e para a ria e faz-nos sentir parte da história local. Em cada um dos nove quartos, há a história de uma personagem, de momentos e do passado aveirense.

Temos ainda duas viagens de barco para fazer: de moliceiro e a energia solar. A primeira pelos canais urbanos, a segunda entre as marinhas, os talhões de terreno aquoso onde é trabalhado o sal. Já foram mais de 300 em funcionamento, hoje são apenas 7.
A opção mais procurada é o barco moliceiro e com ele, em cerca de 45 minutos, ficar a conhecer a cidade a partir dos canais. São mais de 90, 10 deles em pleno centro urbano. Cada uma destas embarcações tradicionais podia transportar até sete toneladas de carga. Hoje, o peso em quilos é menor, mas o impacto dos turistas que aqui se sentam podem fazer a diferença na balança. Comercial, entenda-se.

Sterna, o barco solar da Ria de Aveiro

O segundo passeio de barco começa no Canal da Veia. Vamos a bordo do Sterna, um barco solar que organiza passeios nos mais de 200 quilómetros navegáveis da ria. Sandra Oliveira vai de guia e é uma das mentoras do projeto. Seguimos sem ruído, intercalando explicações e as boas piadas de Sílvio, o mestre gafanheiro, com o sobrevoar de gaivotas e corvos-marinhos. Não os vimos, mas também já lá existe uma população de flamingos. A profundidade vai de 80 centímetros a dois metros nesta parte do percurso, a viagem é tranquila, a paisagem é arrebatadora, sempre com a cidade lá ao fundo e o mar a curta distância. Ajudam ao cenário a flute de espumante, os ovos moles e as raivas, os biscoitos secos que estão cada vez mais na moda.

Ostraveiro, degustação e tranquilidade

Temos ainda um curtíssimo trajeto de barco para fazer antes de assentar em terra firme. Não conta sequer como uma viagem no sentido exploratório da palavra. É uma boleia de menos de um minuto, entre o Cais do Sal e a Ostraveiro, a funcionar numa das tais marinhas de sal. Afinal, era só o que faltava estar em Aveiro e não provar uma ostra acabada de sair da água. Sandra e Sandro são os anfitriões e, mais do que as ostras, querem mostrar tudo o que brilha na ria, como as amêijoas e as enguias. Fica a sugestão do petisco e, para quem venha com tempo, a possibilidade de ficar a dormir em casas flutuantes ou no Ninho de Sal, um quarto especial a fazer lembrar os montes de sal que marcaram desde sempre esta paisagem.

Atravessamos uma última vez o pequeno canal. E fechamos o círculo. Nem por uma vez Aveiro se assemelhou a Veneza. É curioso que, em ambas as cidades, além dos canais, também o bacalhau seja um prato com forte tradição, mas lá está, cada uma ao seu jeito, as duas especiais. Com uma vantagem clara para Aveiro. É nossa. 

Montebelo Vista Alegre Ílhavo Hotel
Inseridos no complexo da fábrica, os quartos, suítes e apartamentos estão divididos pelo antigo Palácio dos Mestres Pintores, o novo edifício, a Casa dos Pintores e a antiga vila operária. A estada inclui voucher para visitar o Museu da Fábrica e desconto nas lojas da Vista Alegre, Bordallo Pinheiro e Outlet.
Preço a partir de €113/noite com pequeno-almoço
montebelohotels.com

1877 Estrela Palace
Edifício do século XVII, boutique-hotel cheio de charme, com 9 quartos e suítes. A nossa sugestão em Aveiro.
R. José Estêvão 4
A partir de €108/noite
1877estrelapalace.pt

Faça um workshop de ovos moles
Saiba mais sobre o famoso doce de Aveiro e meta as mãos na massa. A casa Maria da Apresentação da Cruz, Herdeiros, fundada em 1882 trata de tudo.
R. Dom Jorge de Lencastre n.º82
Workshop (aproximadamente 30 minutos): 2,50 euros
Informações em m1882.com

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