Leia aqui o artigo de opinião do advogado da BCA – Bettencourt da Camara & Associados, Miguel Bettencourt da Camara, sobre a agricultura e os Direitos Fundamentais.
Não vamos aqui responder à questão de saber se Portugal tem ou não dimensão para tantos programas e planos territoriais. Ou, dito de outra forma, se Portugal tem ou não dimensão para uma organização administrativa tão vasta e complexa como a nossa.
A crescente intervenção do Estado, quer por via legislativa quer por via administrativa, em diversos setores, nomeadamente no agrícola, leva-nos a pensar que é urgente debater os limites dessa intervenção. Se não, vejamos: em pleno séc. XXI, é bem possível que um qualquer cidadão proprietário de uma parcela de terreno inserida num determinado perímetro de rega (áreas estas com uma vocação natural para a agricultura) e que queira exercer livre e responsavelmente uma atividade agrícola se veja obrigado a fazer um exercício muito difícil — um verdadeiro puzzle jurídico-normativo dos mais difíceis de completar —, pois essa mesma parcela é, provavelmente, atingida por diversos instrumentos de gestão territorial (IGT), designadamente planos e programas e, além disso, poderá ainda estar abrangida pelo regime jurídico derivado da chamada Rede Natura 2000. Pode muito bem suceder que 50% ou mais da sua parcela de terreno esteja limitada para o exercício daquilo que se denomina agricultura intensiva. Agricultura esta que, apesar de se apresentar viável para o proprietário explorar a sua parcela, não consegue ultrapassar com êxito o escrutínio jus-normativo dos referidos IGT, muitos deles em sobreposição e com diferentes normas por vezes conflituantes entre si. E, como se as dificuldades não bastassem, estes mesmos diplomas estão frequentemente impregnados de conceitos indeterminados, o que permite à Administração Pública aumentar a sua margem de discricionariedade, afastando ainda mais os particulares que, à partida, estejam interessados e necessitem de conhecer as regras do jogo de forma bem definida.
Por outro lado, é tema de política legislativa saber quais os valores a proteger e quais aqueles que, em caso de conflito, merecem maior proteção à luz do Direito em vigor, mas não podemos deixar que a oneração excessiva dos privados — neste caso da propriedade privada, feita na transição do séc. XX para o séc. XXI, por via destes planos de ordenamento territorial e outros de natureza ambiental (ex: Rede Natura 2000), sem que isso tivesse implicado um prévio procedimento de expropriação (em muitos destes casos, estávamos perante verdadeiras expropriações de facto) — se traduza numa clamorosa afronta a um dos pilares em que deve assentar o Estado de Direito: o respeito pelos direitos fundamentais, devendo a restrição aos mesmos estar sujeita ao cumprimento de normas constitucionalmente previstas.
A título meramente ilustrativo do excesso do sacrifício do direito de propriedade de muitos cidadãos portugueses, veja-se o exemplo da nossa vizinha Espanha — país que, como é consabido, é cinco vezes maior em território do que Portugal, e no qual o Parque Doñana, feito em propriedade pública, tem uma dimensão bem menor do que, por exemplo, o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Através deste exemplo, pode-se perceber que o Estado português exagerou, usando de modo desproporcionado — com violação do princípio da proporcionalidade — as propriedades dos privados para fins públicos, ou seja, para a constituição de zonas e parques protegidos, quando podia e devia ter usado em primeiro lugar propriedade pública para o efeito. E, na falta desta, aí sim, poderia e deveria ter expropriado certas e determinadas propriedades, fazendo jus ao princípio da subsidiariedade, mas sem esquecer que, em caso de afetação do núcleo essencial do respetivo direito de propriedade, o Estado está vinculado ao cumprimento do seu dever de pagar a justa indemnização.
*Miguel Bettencourt da Camara é advogado na BCA – Bettencourt da Camara & Associados.