Por Carlos Neves, agricultor, produtor de leite e vice-presidente da APROLEP
O setor do leite em Portugal é um negócio de milhões. Milhões de litros de leite produzidos e consumidos, milhões de euros (500!) em importações anuais de leite e produtos lácteos e milhões de euros pagos em salários aos administradores da Lactogal, uma sociedade anónima que pertence a uma cooperativa (Proleite) e duas uniões de cooperativas (Agros e Lacticoop).
A Lactogal foi fundada há 22 anos, através da junção das partes industriais e comerciais das 3 cooperativas fundadoras e atuais acionistas. Desde cedo ouvimos dizer que os salários da administração eram elevados, mas no “diz-que-disse” também se inventam avenças e vencimentos a quem nada recebe ou recebeu. Adiante. O assunto tornou-se público e oficial quando estourou como uma bomba na capa do Correio da Manhã em 28 de Março de 2009 – “Negócio do leite dá salários milionários”. Recordo-me de acabar a ordenha à pressa para ir ao quiosque comprar o jornal que ainda tenho arquivado. Ficámos então a saber que “9 gestores ganham entre 410 e 910 mil euros por ano” sendo que o Presidente da Lactogal desde sempre, Comendador Casimiro de Almeida, ganhava 850 mil por ano, o que correspondia a 60.000 (!) euros por mês e os restantes administradores cerca de 30.000 (!) euros por mês. Alguns eram executivos a tempo inteiro e outros apenas participavam em duas ou três reuniões por mês, o que torna estes valores astronómicos ainda mais absurdos. Não vinha no jornal, mas ouvi depois dizer que os restantes membros dos corpos sociais (assembleia geral e conselho fiscal) teriam senhas de presença de 5000(!) euros por reunião.
A notícia, nunca desmentida pela Lactogal, causou revolta entre os produtores. Recordo-me de estar a fazer a ordenha no domingo seguinte, ao fim da tarde, e acontecer o que nos acontece às vezes na sala de ordenha, ser atingido com um pedaço de bosta de vaca na cara e me lembrar: “andamos nós aqui a esta hora ao domingo, mal pagos, e aqueles fulanos a ganhar milhões na Lactogal!”. Na semana seguinte houve manifestação espontânea, convocada por sms, não se sabe de quem. Fomos centenas de produtores à porta da antiga sede da Agros, então também fábrica da Lactogal, em frente ao MacDonalds de Vila do Conde.
O ambiente na Agros já era pesado, a contestação aumentou e culminou com eleição de nova direção alguns anos depois cujos representantes, mais tarde ainda, renunciaram aos vencimentos da Lactogal, passando a receber da Agros vencimentos várias vezes inferiores aos do passado mas ainda assim elevados e contestados pelos produtores em tempo de crise. Curiosamente, não se observa publicamente a mesma contestação nas cooperativas parceiras, Proleite e Lacticoop, cujos representantes continuam a receber os salários milionários de 30.000 euros por mês e a dar respostas inacreditáveis, como por exemplo: “A Lactogal é que paga melhor o leite, se damos 5 os produtores querem 50!…”. E assim estivemos com um preço médio de Portugal (ao produtor) durante 10 anos abaixo da média europeia, com o pior preço entre os 28 estados membros da Europa em vários meses de 2018, com a Lactogal a pagar na Ilha Terceira, onde recolhe 100% do leite, vários cêntimos abaixo de S. Miguel, onde recolhem outras empresas privadas e cooperativas… Mas certamente com os administradores leiteiros mais bem pagos da Europa!
O Ronaldo e outros jogadores de futebol também ganham valores exorbitantes, mas se marcarem golos a gente perdoa! O pior é nós vermos estes jogadores do leite, com idade que já merecia a reforma, a perder o jogo e não mudar de tática! A insistir em campanhas sobre o leite UHT e a descurar os produtos de valor acrescentado. A denunciar as importações dos hipermercados mas também a importar produtos lácteos. A criticar as inovações dos outros e a segui-las com um atraso de vários anos! A desvalorizar iniciativas de exportação de produtos agrícolas pelo mundo fora e a apostar quase tudo em Espanha para vender leite cru , leite UHT de marca branca e acabar por vender a fábrica que abastecia o gigante da distribuição Mercadona. E a deitar sempre a culpa para os outros: Para os hipermercados, para os governos, para a Europa, para os Açores, para os produtores, esses ingratos que “querem abater” o presidente da Lactogal, por causa de um mau momento segundo uma simpática biografia entretanto publicada.
Nós, produtores, não queremos abater ninguém! Nem sequer as vacas que nos obrigaram a abater, para reduzir a produção, porque a administração da Lactogal, paga a peso de ouro, não foi capaz de pedalar para vender o leite que produzimos com tanto esforço antes de ser recolhido pelo camião e passar por uma série de mãos competentes até chegar ao consumidor final. Não foi apenas um mau momento, é uma sucessão errática de maus momentos, de tomar decisões em cima do joelho, de mudar as regras dois meses depois do ano começar com contratos acabados de assinar, reduzir sucessivamente a recolha, baixar o preço a meio do ano porque as contas estão no vermelho e depois repor o preço no fim do ano e ainda ficar com dezenas de milhões de euros em resultados!
Efetivamente, nem tudo é mau. O leite de origem é bom, de qualidade superior. As fábricas são modernas, bem equipadas e os funcionários, apesar dos salários baixos na base, parecem esforçados e competentes a avaliar pela qualidade final do leite e produtos lácteos vendidos. As marcas da Lactogal merecem a confiança dos consumidores e os produtos avaliados costumam obter bons resultados nos testes e analises efetuados a nível de segurança alimentar. Temos portanto de reconhecer que houve um trabalho com muitos aspetos positivos que se podem perder se a gestão da Lactogal continuar a definhar e temos uma empresa com resultados económicos positivos, embora aí, infelizmente, à custa dos produtores, que recebem pouco para a Lactogal ser competitiva no mercado ou para dar os lucros necessários para depois dar dividendos aos acionistas, além dos milhões de impostos ao Estado que não existiriam se a Lactogal pagasse um preço mais elevado à produção.
Os produtores não querem “abater” mas esta gestão colocou-os entre a espada e a parede e não se podem deixar “abater” por esta falta de rumo, de liderança, de inovação, de confiança, de esperança! E não nos vamos calar enquanto não houver justiça na distribuição de valor ao longo da cadeia do leite! Os produtores certamente irão compreender que administradores profissionais e competentes custam dinheiro e que mesmo a tempo parcial assumem-se responsabilidades e gasta-se tempo que deve ser compensado de forma digna e justa. Mas não podemos continuar com estes valores astronómicos de dezenas de milhares de euros por mês “porque assim não chateiam” (e isto foi-me contado pessoalmente por quem ouviu esta resposta – e mais colegas ouviram a história na primeira pessoa como eu ouvi). Os produtores querem representantes que continuem a ser produtores de leite e de preferência a receber mais das suas explorações leiteiras do que da administração da empresa, porque aí esquecem a origem e começam a pensar como industriais de lacticínios incapazes de pagar um preço justo pelo leite mas muito competentes a manter o poder e as benesses associadas.