A culpa do apagão é das renováveis? Portugal e Espanha é que não têm tecnologia certa

Sem que se saiba ainda o que causou o apagão ibérico, começaram a subir de tom as vozes que atribuíam a responsabilidade a um excesso de energias renováveis. Vários especialistas com quem o PÚBLICO falou desacreditaram essa ideia, mas não negaram que, quando há muita integração de fontes renováveis na rede eléctrica, é necessário introduzir soluções tecnológicas para a tornar mais robusta. Só que Espanha não tem tais soluções, e Portugal também não.

Culpar as energias renováveis não é a forma correcta de encarar o problema. “Já tivemos mais de seis dias seguidos com o consumo assegurado por renováveis, em 2023, mas já tivemos vários períodos longos assim. E em 2024, 70 % de consumo nacional foi assegurado por produção de renováveis”, recordou Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero. “Não há nada de novo.”

“Agora, é realmente um desafio muito maior ter uma rede suportada por muitas fontes renováveis”, reconhece Francisco Ferreira.

“O problema de qualquer rede eléctrica é que, a cada instante, a produção tem que ser igual à procura, e isso é difícil. Com as centrais térmicas, por exemplo a gás, era como ter um acelerador, podia produzir mais ou menos electricidade, consoante o que era necessário. Mas as fontes de energia renováveis são mais variáveis”, resume Paulo Ferrão, professor catedrático do Instituto Superior Técnico.

O problema da inércia

O problema está na inércia, ou seja, com a resistência de um sistema eléctrico a mudanças e oscilações, em especial de frequência e tensão. Era essa a preocupação reconhecida pela Red Eléctrica espanhola perante o Mercado de Valores em Fevereiro, um tema que foi retomado na terça-feira por todos os media espanhóis (e tratado com um certo tom de desconfiança).

João Peças Lopes, professor catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, explica onde está o problema: “Os conversores de energia solar fotovoltaica e eólica não têm inércia associada, por isso, à medida que se vai incorporando mais as renováveis, é verdade que vamos operar um sistema que é cada vez mais frágil.”

Mas isso pode ser resolvido, assegura, e não é preciso inventar a roda. Vários elementos da sua equipa de investigação trabalham nestas tecnologias, que estão a ser testadas com grande sucesso em outras redes da Europa, como na Alemanha e em Inglaterra. Mas não em Espanha.

“Obviamente, é preciso fazer investimentos, é preciso gastar algum dinheiro, mas não é nada do outro mundo”, afirma o engenheiro especialista em sistemas sustentáveis de energia.

“O que fazemos é utilizar um conceito chamado ‘inércia sintética’”, adiantou Peças Lopes. Espanha não o usa. Mas em Portugal está a ser testado na Madeira e, mais recentemente, nos Açores, adiantou. “Os sistemas insulares são mais frágeis e, portanto, são muitas vezes utilizados para estudarmos certas soluções para os sistemas continentais”, explicou Peças Lopes.

Esta inércia sintética obtém-se com uma tecnologia que reproduz o que faz uma máquina síncrona, um dispositivo que existe nas centrais térmicas. Esta máquina rotativa, que opera a uma velocidade constante, funciona como gerador, convertendo energia mecânica em eléctrica, ou como motor, convertendo energia eléctrica em mecânica.

O operador do sistema tem também de ter ferramentas de monitorização da segurança dinâmica do sistema, adianta o engenheiro, “que lhe permitam compreender o grau de robustez do sistema perante fenómenos dinâmicos”. Mais uma vez, nem Portugal nem Espanha os têm.

“É preciso avançar com um plano de investimento para trazer estas soluções para o continente e também para compensadores síncronos”, outra máquina utilizada nas centrais convencionais, que funciona como motor. Mais uma vez, assegura Peças Lopes, esta tecnologia não é usada em Espanha, nem em Portugal.

Tudo isto é um pouco técnico demais, reconhece Peças Lopes. “Mas o que é preciso perceber é que, apesar desses fantasmas [relativos às energias renováveis e à estabilidade da rede eléctrica], que têm algo de realidade por trás, existem soluções, que estão testadas e têm grande sucesso. Não são coisas do outro mundo. O que temos de fazer é trazê-las para cá”, desafia.

Parar e reflectir

O que é estranho, perante isto, é que nem Portugal nem Espanha, países europeus que se destacam na integração das energias renováveis na rede eléctrica, estejam a usar estas tecnologias e ferramentas de que fala Peças Lopes. “O sistema funcionou já muitos milhares de horas sem problemas. Este é o momento de parar e reflectir sobre o que é preciso fazer para que isto não volte a acontecer”, aconselha.

“O importante é perceber que não podemos dizer que temos de reduzir o volume de energias renováveis no sistema. Não, a solução não é essa, é exactamente o contrário”, frisa Peças Lopes.

Portugal, na verdade, tem até algumas vantagens face a Espanha para manter a estabilidade da rede eléctrica. “A electricidade hídrica [produzida pelas barragens] é tão ou mais eficiente que o nuclear ou as centrais térmicas para garantir a estabilização da rede”, salienta Francisco Ferreira, dirigente da Zero.

Quando falta sol ou vento, ou quando há excesso, é preciso armazenar energia. E essa capacidade de armazenamento é garantida pelas barragens reversíveis. “Portugal tem várias. O sistema português tem sido brilhante”, afirma Paulo Ferrão.

“Quando tenho electricidade a mais no sistema, bombeio a água de uma barragem para cima, para outra, e nem preciso de ter caudal no rio. Preciso é de ter duas barragens seguidas. E temos várias”, explica o catedrático do Instituto Superior Técnico.

“A bombagem é uma salvaguarda enorme para o nosso sistema eléctrico, as nossas grandes baterias são estas barragens que permitem usar o solar produzido em Portugal ou em Espanha, durante o dia, armazena-lo e usá-lo à noite”, diz Francisco Ferreira. “E é um negócio, pode-se comprar a electricidade a um euro por megawatt-hora (MW-hora) e vender a 20 euros por MW-hora mais tarde”, acrescenta.

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