A face oculta das Quotas Leiteiras e… das respectivas multas – Pedro Pimentel

Com o aproximar do encerramento de mais uma campanha leiteira e com a probabilidade, cada vez mais real de se poder verificar o pagamento de multas por via da ultrapassagem da quota nacional, volta a soar o repetido coro da demagogia com o “eu não tenho culpa, porque eu até avisei que se devia avisar…” que antecede sempre o coro da desresponsabilização com o “vão pagar-se multas porque os produtores não foram avisados…”.

Era bom que houvesse algum decoro quando se faz este tipo de declarações e se alguns produtores haverá que se sentirão confortados com essas palavras, a enorme maioria dos restantes recebeu a mensagem de que poderia haver ultrapassagem da quota nacional, compreendeu-a e agiu em conformidade.

Faz algum sentido, contudo, voltar à raiz da questão: porque existe e para que serve o sistema de quotas.

Este sistema, de uma forma algo simplista, surge após um longo período de livre produção, a qual gerou elevadíssimos excedentes e motivou uma profunda desvalorização do leite matéria-prima e dos produtos lácteos a partir dele obtidos. As quantidades de produtos em intervenção eram enormes e tendencialmente crescentes. Havia, pois, que inverter esse estado de coisas e não apenas limitar os encargos comunitários com todo o esquema de intervenção, como contribuir para a estabilização dos rendimentos dos produtores.

Este é o verdadeiro objectivo do sistema de quotas: o controlo da oferta. Para restringir encargos orçamentais e para manter um padrão razoável de rendimento ao produtor.

E como controlar a oferta comunitária de leite?
Através da instituição de um sistema de quotas leiteiras, com uma divisão entre países e dentro destes individualmente a cada produtor. A quota, como alguns dirigentes da produção não se cansam de repetir, pertence ao produtor. É o produtor que a recebe, é o produtor que a compra, é o produtor que a vende, é o produtor que sobre ela recebe o prémio aos produtos lácteos, é, finalmente, o produtor que a deve gerir. Assim é e deve ser…

Caso não existisse sistema de quotas, o mercado lácteo europeu, mesmo com todas as oscilações conjunturais que ciclicamente sente, atravessaria uma fase prolongada de relativo equilíbrio como a que se vem verificando nos últimos três/quatro anos? Julgo que não. Caso não existisse sistema de quotas, a produção leiteira distribuir-se-ia amplamente pelo espaço comunitário tal como se verifica hoje-em-dia? Certamente que não. E se não existisse sistema de quotas, os produtores de leite receberiam o leite aos preços que são pagos actualmente? Seguramente que não…

Os produtores e todos os que se relacionam com o sector deveriam entender, de uma vez por todas, que as multas (até pela clareza da filosofia da sua aplicação) são seguramente um preço a pagar pouco significativo se comparado com as vantagens que os produtores retiram do sistema.

Todos os produtores sabem que, quaisquer que sejam as circunstâncias, não realizando entregas (corrigidas) superiores às suas quotas, nunca estarão sujeitos ao pagamento da multa implícita no Regime de Imposição Suplementar.

Logicamente, se todos os produtores realizassem entregas inferiores às suas quotas, o país não estaria sujeito ao problema da ultrapassagem e da aplicação das multas, mas, muito provavelmente, seriam muitas dezenas de milhares de toneladas que não seriam produzidas, pelo somatório de todas as subutilizações. Seriam os produtores a perder ao nível de rendimento, seria a transformação a perder na sua capacidade de abastecimento e laboração, seria, seguramente, o país a perder.

É aqui que importa referir a acção, ao nível da gestão do sistema de quotas, que pode caber aos compradores e que é, sem qualquer dúvida, cabal e eficazmente realizada por muitos deles. É também – e contrariamente ao que alguns dirigentes ligados à produção tantas vezes protestam – por via dos compradores que uma enorme maioria dos produtores recebe a informação relevante para adequar o seu comportamento ao longo da campanha.

Uma palavra ainda para lembrar que este é um momento particularmente delicado para o sistema de quotas leiteiras, não sendo nada improvável a hipótese de, com a conclusão do processo negocial em curso no seio da Organização Mundial do Comércio, seguramente todo o conjunto da Política Agrícola Comum, mas muito especialmente a OCM-Leite, sofrerá fortes pressões para no quadro de 2007/2008 ser objecto de profunda revisão.

O sistema de quotas ficará certamente no ‘fio da navalha’ e bom era que toda a fileira do leite portuguesa percebesse as consequências de tal ameaça e pugnasse fortemente no sentido da sua manutenção e consolidação.

Voltando à situação da presente campanha e da previsível ultrapassagem da quota leiteira nacional (e consequente pagamento de multas), há também muito a dizer.

Desde logo que no final da campanha passada, a produção – já de acordo com as novas regras de aplicação do regime de imposição suplementar em Portugal, por força da existência da franquia do auto-consumo açoriano – havia ficado a cerca de 3.000 toneladas (0,2 por cento) no continente e a menos de 11.000 toneladas (2 por cento) nos Açores, dos respectivos limites de produção.

Que a produção já vinha em crescendo nos últimos meses da campanha anterior e que os crescimentos nos primeiros meses da actual campanha face aos meses homólogos da campanha leiteira 2004/2005 indiciavam, com toda a clareza, a franca probabilidade de, pelo menos no Continente, se verificar uma ultrapassagem da quota nacional. Todos os compradores foram recebendo, ao longo da campanha, essa monitorização da evolução das entregas e foram disso dando informação aos seus produtores…

Que o alarme verificado nos Açores, face ao impulso das entregas dos últimos meses do ano passado, foi, esse sim, inesperado e ao arrepio das previsões que se vinham formulando. Mas que, contudo, e honra lhes seja feita, um forte apelo desencadeado por governo regional, industriais e organizações de produtores no sentido da contenção da produção, adicionado a um esforço financeiro relevante na compra de quotas leiteiras no continente, terá (e este terá, à data que este texto é escrito é ainda condicional) conseguido recolocar os volumes de entregas abaixo do limiar do pagamento de multas…

Que logo em Outubro nalguns casos e nos meses subsequentes noutros, foram diversos os compradores que accionaram o denominado mecanismo de Retenção, o qual não apenas precavê a situação ulterior de pagamento de multas como, pelo impacto financeiro junto do produtor, tende a funcionar como elemento dissuasor da produção e, se observado no plano nacional, como um factor de contenção da produção.

E ainda que o próprio Regime de Imposição Suplementar impõe, pelo seu processo de sucessivas compensações entre sub e sobreutilizações, que a aplicação das multas se faça apenas aos maiores ultrapassadores dentro dos ultrapassadores e que mesmo estes paguem apenas multa sobre uma parcela francamente inferior relativamente ao volume total da ultrapassagem.

Depois da situação verificada com a primeira ultrapassagem da quota na campanha 1999/2000 e do efectivo pagamento de multas na campanha de 2002/2003, é no mínimo absurdo referir que os produtores irão ser penalizados porque não conhecem as regras do sistema, ou porque não receberam informação atempada. Qualquer produtor que se sabe em ultrapassagem recebeu informação sobre os riscos que corre e, caso não a tenha recebido ou percebido, o que é que o impediu de se tentar informar? É ou não ele o detentor e gestor último da sua quota…

Algum condutor que receba uma multa indicando que foi ‘apanhado’ a conduzir a 180 km/hora numa auto-estrada, irá advogar em sua defesa que o estado não o informou, não lhe remeteu para casa e não o convocou para inúmeras sessões em que o tema era o Código da Estrada, ou que no percurso que fez, não existia de duzentos em duzentos metros uma placa indicando-lhe que a velocidade limite era de 120 km/hora? E será que pode apresentar o argumento de que afinal comprou um carro novo e que o mesmo atinge os 200 km/hora e que não estava a fazer mal a ninguém?

Pois é, se as respostas às questões anteriores é, obviamente, NÃO, então porque agir de forma oposta quando o tema é “quotas leiteiras”. Acaso haverá no país algum produtor que possa dizer que não teve acesso à informação sobre o sistema, ou que não tenha sido sistematicamente informado sobre os seus limites de produção? E quantos houve que, mesmo numa situação de risco de ultrapassagem de quota, continuaram a comprar animais, muitos deles chegando às explorações já em produção?

Entre os produtores ultrapassadores há, por certo, uma enorme diversidade de situações (e, porventura, de justificações…), mas existe um pequeno conjunto de situações mais ou menos tipificáveis. Desde logo os que por realizarem as suas entregas a compradores que para o conjunto dos seus produtores (e por via da compensação interna) não terão problemas de ultrapassagem e que, por esse motivo, não serão sujeitos ao pagamento de multas. Depois os que por haver ultrapassado, em termos relativos, apenas ligeiramente as suas quotas e que, por via dos sucessivos mecanismos de compensação ficarão isentos do pagamento daquelas multas.

Depois ainda, os que possuindo quotas muito diminutas e tendo ultrapassagens percentualmente elevadas (ainda que não muito significativas em volume absoluto), os quais poderão ser fortemente penalizados e finalmente os que possuindo quotas razoáveis, têm apesar disso ultrapassagens consideráveis.

A experiência de aplicação efectiva do regime de imposição não é ainda demasiada, mas não será descabido pensar que, no seio dos compradores que não ficam isentos do pagamento de multas, os produtores atingidos deverão ter ultrapassagens de pelo menos 20 por cento face ao quantitativo das respectivas quotas e que o valor da multa a ultrapassar não excederá os 50 por cento dessa ultrapassagem.

Estes dois valores atrás referidos partem do facto de vários produtores serem subutilizadores de quota e de haver saldos de subutilização no caso dos compradores cujos produtores ficam, por via da compensação interna, isentos da aplicação das multas do Regime de Imposição Suplementar. Há pois produtores mais conscientes que abdicam de produzir acima dos seus limites (e de auferir os correspondentes rendimentos) em defesa da sua situação, mas também, não o esqueçamos, em prol do bem comum (e, já agora, da conta bancária dos ultrapassadores).

A indústria, que em muitos casos é simultaneamente o comprador do leite, compra e paga todo o leite que recebe. O que está dentro e o que ultrapassa as quotas. No entanto, são cada vez mais as empresas que se preocupam em criar regras prévias de jogo, desincentivando as entregas superiores aos limites da quota, tentando construir uma ‘carteira’ de produtores que liberte todos do problema das multas.

A gestão das quotas e as multas, sendo uma responsabilidade e um problema para os produtores, não deixam de ser uma factor que condiciona a actividade de compradores e/ou industriais. Seja pela incerteza e ansiedade que introduzem na produção, seja pelas fortes oscilações das entregas que por vezes surgem ao longo de uma campanha leiteira, seja pelas implicações na programação da produção industrial que implicam…

A generalidade dos compradores e industriais tem-se comportado neste processo e ao longo dos anos, muitas vezes com voluntarismo e emotividade, mas acima de tudo com a responsabilidade que o sistema de quotas leiteiras impõe. Noutras campanhas leiteiras (recordo aqui muito especialmente a de 2002/2003) se atitudes diferentes tivessem sido assumidas – mais activas e actuantes – no relacionamento com a produção, provavelmente o resultado a que se teria chegado teria sido diferente.

Na actual campanha, é da mais elementar justiça reconhecer que tais ‘inacções’ não se verificaram e que muitos foram os caminhos seguidos (avisos sucessivos, retenções, multiplicação das compras de quota e das cedências temporárias,…) para que ou não se verificasse ultrapassagem ou, nessa impossibilidade, a mesma fosse tão reduzida quanto possível.

Parece finalmente absurdo dar a entender que a ultrapassagem da quota – que se situará seguramente em menos de meio por cento da quota total do continente, ou, se quisermos, menos que o equivalente a dia e meio de produção – foi criada pela indústria, “interessada em preços baixos”. A vontade será então perguntar: e se os preços fossem mais altos a produção desceria?

As afirmações ficam para quem as produz, mas responsáveis em organizações de cúpula deveriam ter algum pejo em apenas sacudir a água do seu capote (ou deveríamos dizer capotes?) e reconhecer que, qualquer que seja o ponto de vista da análise, a situação dos produtores no continente a esse nível é francamente mais favorável que a da maior parte dos seus colegas europeus e que o sector do leite foi, é e esperamos que continue a ser a fonte de rendimentos mais segura e melhor remunerada de toda a agro-pecuária nacional.

É, pois, fundamental que cada um dos implicados na fileira do leite – produtores, compradores, industriais, organizações e administração – no seu campo de actuação e na sua área de competência, actue com o máximo de profissionalismo e de empenho na resolução das questão que vão afectando o dia-a-dia do sector, abdicando do alarmismo e alarido e apostando na eficácia e objectividade.

E é exactamente isso que se deve esperar de todos os protagonistas do sector…

Pedro Pimentel
Secretário Geral
ANIL – Associação Nacional dos Industriais de Lacticínios


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