Têm vindo a ser conhecidos os documentos, que na área agrícola e agro-alimentar, vão criando o desenho do que será o novo Quadro Comunitário de Apoio. Alguns desses documentos foram colocados em processo de discussão pública.
Desde logo, três notas positivas…
Uma primeira para dar conta das inúmeras referências à necessidade da agricultura estar virada para o mercado. Esta expressão, ainda que nesta fase não passe de uma mera declaração de intenções, não deixa de constituir um avanço face a posições anteriores que viam no “agricultor guardião da paisagem” o futuro da actividade no nosso país.
Parece-me muito claro que a agricultura do subsídio, o desligamento ou mesmo as medidas agro-ambientais, embora maquilhadas pelo politicamente correcto e pelas exigências do quadro negocial da OMC, não serão outra coisa que um primeiro passo para o desmantelamento da PAC, desta PAC ou de qualquer outra… E o castelo de cartas cairá porque na própria União Europeia as opiniões públicas (e publicadas) não ‘compram’ esses conceitos e começam a associar a subsidiação da agricultura a uma nova forma de parasitismo, o que é muito mais do que um simples primeiro passo para o desmantelamento do sistema.
A segunda nota, consequência da primeira, é a maximização dos apoios na área da competitividade. Não basta declarar que se deve orientar a agricultura para o mercado. Têm que ser dadas condições para que tal aconteça e aqui é necessário não esquecer que com excepção dos produtos não transformados, os restantes carecem de industrialização, pelo que não há produção se não existir transformação e vice-versa. Comum a ambos os casos é a presença da distribuição que estabelece a ligação entre quem produz e quem consome.
Actualmente, não se consegue conquistar o consumidor sem previamente conquistar o distribuidor e esta é porventura a tarefa mais complexa, pois, neste caso, a capacidade de intervenção das medidas de política tem na maior parte das vezes um efeito pouco significativo e porque, cada vez mais, a respectiva capacidade de abastecimento ultrapassa, de largo, as fronteiras nacionais.
A terceira e última nota vai para a multiplicação de referências à agro-indústria e ao complexo agro-alimentar. De há muito se levanta a questão do tratamento menos adequado que é dado pelo Ministério da Agricultura aos sectores industriais que tutela. Provavelmente, pela sua estrutura e forma de organização, o sector lácteo será daqueles que, porventura, menores queixas terá, mas a verdade é que a indústria alimentar foi e continua a ser um parente pobre ao nível da atenção que lhe é dedicada pelo Ministério que a tutela.
Deve-se, sem dúvida, reforçar o seu papel e importância no referido complexo agro-alimentar, perceber que da sua competitividade muito dependerá a competitividade do sector agrícola e recordar que há empresas importantes, em sectores importantes que são claramente marginalizadas pela desadequação ou inaptidão da agricultura nacional em lhes fornecer as matérias primas de que carecem. Alguma vez se viu, nos nossos vizinhos tutelados pelo Ministério da Economia, algum investimento, por exemplo no sector dos têxteis ou do calçado, ser questionado porque o algodão ou as peles não são de origem nacional…
A ANIL directamente ou através de entidades como a FIPA ou o Comité Nacional do Leite fez chegar, em devido tempo, ao Ministério da Agricultura um conjunto de posições e contributos relativamente à preparação do novo Quadro Comunitário de Apoio e aí referia-se a necessidade da “inequívoca definição de áreas e sectores produtivos prioritários. Qualquer agricultor ou industrial é livre de investir na área que entender como mais conveniente e melhor remuneradora. Já ao Estado cabe o papel de definir para que áreas canalizar os seus apoios, que são escassos e que devem produzir – numa perspectiva nacional – o maior efeito multiplicador possível.”
E dizia-se também que a “aposta deve passar, desde logo, pela consideração do sector lácteo, seja do lado da produção, seja do lado da indústria, como pertencendo ao restrito leque dos sectores definidos como prioritários.”
Assim, foi com curiosidade que analisamos os documentos que nos foram disponibilizados. Aí, e bem, foram definidos com transparência quatro sectores prioritários (ou se quisermos, três mais um): os hortofrutícolas, o vinho, o azeite e a floresta…
Mas… lemos, relemos e perguntamo-nos: … e o leite? Qualquer que seja o ponto de vista da análise, não se percebe porque é que o leite não foi colocado neste grupo restrito… Levantamos a questão em diversos locais e a resposta veio uniforme e ensaiada: “o leite não é um sector prioritário mas é estratégico”.
As palavras não se equivalem, mas tratar-se-à de uma mera questão semântica? Com as nossas autoridades as dúvidas persistem… Recordo, há alguns anos, que um produto lácteo foi apreendido porque, quando se referenciava a sua data de validade, essa menção era antecedida de “consumir antes de…”, quando o estrito cumprimento da lei exigia um “consumir até…”
Tentaram justificar essa opção de variadas formas, chegando mesmo a referir que seria mais interessante para um sector posicionar-se como estratégico do que como prioritário. Porquê? Porque não estaria sujeito a regras tão rígidas ou a programas tão formalizados… E a pergunta regressava: se é estratégico então porque não o adjectivar como prioritário?
Os argumentos que estão por trás da orientação seguida pelas autoridades parecem óbvios, mas óbvia é também a forma de os desmontar:
- “o sector está bem, pode trabalhar sem apoios” – e a adaptação ambiental das explorações leiteiras? e a necessidade de reorganização do sector queijeiro? e as dificuldades na internacionalização do sector? e as dificuldades ambientais e ao nível do tratamento dos subprodutos?…
- “a PAC beneficia os países do Norte, o leite é um produto do Norte da Europa e nós não somos a Dinamarca nem a Holanda…” – devemos, então, abdicar da produção de leite? e é mais importante a posição de princípio do que a realidade económica?
Não tenho qualquer dúvida de que o estatuto de sector prioritário deve ser exigido pela fileira do leite até às últimas consequências, porque a sua importância no contexto agrícola e agro-alimentar é inequívoca, porque são ainda vários os problemas que carecem de resolução eficaz e definitiva, porque a competitividade de produtores e transformadores isso exige.
Não duvidemos, há ainda muito por fazer no sector, são amplas áreas que ainda carecem de modernização, temos que nos preparar para as consequências negociais dos acordos da OMC, temos, acima de tudo, que nos preparar para o desmantelamento do sistema de quotas leiteiras que aí vem….
Pedro Pimentel
Secretário Geral
ANIL – Associação Nacional dos Industriais de Lacticínios
A face oculta das Quotas Leiteiras e… das respectivas multas – Pedro Pimentel