A FILEIRA PORTUGUESA DA CARNE: Os desafios da indústria de alimentos compostos – Jaime Piçarra

Sobretudo a partir de 1993, com a concretização do Mercado Único e a consequente liberalização das trocas intracomunitárias, a que se seguiram sucessivas crises em inúmeros sectores (BSE nos bovinos, dioxinas e peste aviária nas aves, crise da suinicultura e, mais recentemente, a ultrapassagem das quotas leiteiras), a par de problemas em torno da segurança alimentar, – confrontada com importações crescentes de produtos animais – dadas as dificuldades da pecuária, a produção de alimentos compostos tem vindo a registar uma tendência de quebra de produção (para o ano 2000 prevêmos uma quebra da ordem dos 2.0%), assistindo-se a uma compressão de margens, problemas de créditos e encargos financeiros elevados, assumindo-se a indústria como financiadora da actividade pecuária. Por outro lado, acompanhando a tendência europeia, temos vindo a assistir a uma diminuição no número de unidades fabris e a uma relativa concentração da actividade.

A alimentação constitui o principal encargo das explorações pecuárias, representando em alguns casos, cerca de 70% dos custos de produção, pelo que, sobretudo ao nível da pecuária intensiva, da competitividade futura dos alimentos compostos depende a capacidade concorrencial da pecuária nacional e a sua sobrevivência no curto médio/prazo, inserida cada vez mais num mercado globalizado à escala europeia e mundial e condicionada pelos acordos com os PECO no âmbito do alargamento da União Europeia aos países de Leste e com as negociações da Organização Mundial do Comércio (todos sabemos como são importantes as restituições à exportação para o equilíbrio do mercado europeu e, consequentemente, para o nosso mercado), para além de aspectos tão importantes como o ambiente e o bem estar animal.

Nesta perspectiva, gostaríamos de focar dois aspectos fundamentais e que directamente se inter-relacionam: a competitividade e a segurança alimentar, onde se levantam um conjunto de questões que irão marcar de uma forma decisiva os futuros acordos da Organização Mundial do Comércio, ao nível dos acordos SPS (sanitários e fitossanitários).

No que respeita à competitividade dos alimentos compostos, elemento central nesta discussão, Portugal importa cerca de 80% das matérias-primas de que necessita, para além do facto de sermos um país periférico. Deste modo, os custos de aprovisionamento são mais elevados que os dos nossos concorrentes directos, designadamente Espanha e França. No entanto, apesar desta debilidade estrutural, desde 1998 que o nosso país vem sendo fortemente penalizado com as medidas de combate à BSE, sobretudo ao nível da suinicultura. Não podendo utilizar farinhas de carne na alimentação animal, as alternativas de utilização (gorduras hidrogenadas, óleo de soja, ácidos aminados sintéticos, fosfato dicálcico e sobretudo bagaço de soja) têm vindo a onerar os custos de formulação em cerca de 2$00/kg (3 a 4%) o que representa um acréscimo de cerca de 8$00/kg de carcaça de suíno, constituindo uma perda de competitividade, sobretudo em relação ao mercado espanhol que não é objecto destas restrições. De facto, desde que foi adoptada esta imposição ao nosso país que a IACA tem alertado as autoridades para a gravidade deste problema que é, em grande parte, responsável pela situação que atravessa a suinicultura nacional, sendo injusto que não possamos utilizar farinha de carne na alimentação animal e sermos confrontados com importações de carnes e de animais vivos alimentados com farinhas de carne.

Um segundo aspecto prende-se com o contingente de importação de 500 000 toneladas de milho de países terceiros, concedido ao nosso país como reconhecimento das nossas debilidades no aprovisionamento de matérias primas. Este contingente tem sido relativamente importante para a Fileira, pela diversificação de fontes de abastecimento e “arrefecendo” eventuais tendências especulativas do milho proveniente de França e, por arrastamento, outras matérias-primas. No entanto, os problemas em torno dos organismos geneticamente modificados e a divergência de posições entre a União Europeia e os EUA, têm limitado o acesso ao contingente apenas aos países de Leste e à Argentina, reduzindo o impacto do milho no mercado. Para o ano 2001 é de esperar que se não continue a importar milho dos EUA e os países de Leste encontram-se numa situação problemática, dadas as quebras de produção que se verificaram ao longo da campanha. Deste modo, receamos que o mercado venha a ser abastecido em grande parte pela Argentina o que significa a criação de condições para o aumento do preço do milho francês, uma vez que o milho argentino só estará disponível a partir de Março/Abril, o que contribuirá para agravar os custos de aprovisionamento e, consequentemente, os custos dos produtos animais.

Uma outra questão importante para o mercado nacional, diz respeito à privatização da SILOPOR, pelo seu carácter estratégico no abastecimento de matérias-primas (passam pela SILOPOR cerca de 60% dos granéis sólidos alimentares) e a falta de alternativas em termos de descarga (15% dos custos de aprovisionamento). O Governo vai avançar para a concessão dos silos em Lisboa e Leixões e nas diversas reuniões que mantivemos com os Ministérios envolvidos alertámos para o facto de se não poder criar situações de monopólio que ponham em causa a sobrevivência da Fileira. O modelo tem de ser abrangente face aos operadores envolvidos, tem de assegurar uma neutralidade de gestão para o mercado e uma solução que potencie a sua capacidade competitiva e as condições de concorrência, ou seja, numa lógica de custos mínimos ou de lucro zero na descarga e armazenagem e que os representantes dos sectores envolvidos sejam obrigatoriamente ouvidos na elaboração do caderno de encargos. O objectivo é o de criar condições mais favoráveis em termos de aprovisionamento de matérias-primas.

Como conclusão, Portugal tem de criar condições para minorar os custos de aprovisionamento de matérias-primas para a indústria de alimentos compostos, condição indispensável para que a pecuária nacional possa ser competitiva, pelo que, para além dos aspectos já referenciados, continuamos a defender a transferência de stocks de intervenção de cereais de países excedentários para os deficitários como o nosso e a defender uma política europeia de cereais que privilegie o mercado interno em detrimento das exportações para o mercado mundial.

A reforma da PAC de 1999, ao não contemplar as medidas inicialmente previstas pela Comissão, optando-se pela diminuição dos preços dos cereais em 15% em vez de 20%, set-aside de 10% e manutenção das majorações mensais, dificilmente permitirá que a União Europeia possa exportar produtos animais, de uma forma sustentada, sem o recurso a restituições à exportação, ultrapassando deste modo as limitações impostas pelos acordos do GATT. Tal significa que os países exportadores pretenderão manter as suas quotas de mercado e tenderão a pressionar o mercado da União Europeia, introduzindo situações de desequilíbrio e uma conjuntura de preços baixos, o que tenderá a perturbar o mercado nacional, pela sua notória vulnerabilidade.

Nesta perspectiva, Portugal tem de negociar medidas de excepção para o nosso país, de forma a ultrapassar o nosso problema estrutural no aprovisionamento de matérias primas e criar condições de maior competitividade para a Fileira.

O segundo grande pilar desta nossa intervenção prende-se com os aspectos ligados à segurança alimentar. Como é do conhecimento de todos, as crises da BSE e das dioxinas abalaram fortemente a confiança dos consumidores nos sistemas de regulação e de fiscalização europeus enquanto que problemas ligados à utilização de hormonas, de antibióticos, a utilização de organismos geneticamente modificados e problemas sanitários, amplificados pela comunicação social, têm vindo a afectar a imagem dos produtos animais junto da opinião pública. Entretanto, as associações de consumidores têm vindo a ganhar uma importância acrescida junto dos poderes de decisão, as questões da produção são hoje encaradas na óptica do consumidor e o Parlamento Europeu, através do processo de co-decisão têm hoje uma importância decisiva no quadro legislativo da União Europeia. Infelizmente, não raras vezes se pretende mostrar serviço para uma opinião pública cada vez mais urbanizada e distante do meio rural (em Portugal, de acordo com dados recentes publicados no Relatório do Desenvolvimento Humano de 2000, cerca de 37.0% da população vive nas cidades, prevendo-se 46.6% em 2015; na Bélgica a população citadina representa actualmente 97.2%, prevendo-se 98.0% em 2015) e relatórios e pareceres científicos são esquecidos ou ignorados quando são contrários a determinadas correntes de opinião.

Neste contexto, foi publicado em Janeiro de 2000 o Livro Branco sobre a segurança dos alimentos, da responsabilidade da Comissão Europeia e que propõe um conjunto de 84 medidas legislativas, numa perspectiva de controle integrado “da exploração agrícola à mesa do consumidor”, das quais a mais mediatizada tem sido a criação de uma Autoridade Alimentar Europeia, independente, que será responsável pela avaliação e comunicação dos riscos no domínio da segurança dos alimentos mas não pela gestão dos riscos, o que significa que compete à Comissão Europeia, enquanto guardiã do Tratado, assegurar as questões ligadas à legislação e aos controles, remetendo a Autoridade para uma função meramente consultiva, apesar de ser a responsável pelos pareceres científicos.

No caso da alimentação animal, o Livro Branco reserva-lhe um papel de destaque (das 18 medidas prioritárias, 6 respeitam directamente ao nosso sector e existe um capítulo com 7 medidas específicas), reconhecendo que “ a segurança dos produtos alimentares de origem animal começa com a segurança da alimentação animal” mas é igualmente reconhecido o facto de que “a saúde e bem estar dos animais destinados à produção alimentar é fundamental para a saúde pública e para a protecção dos consumidores”. Das medidas propostas para a alimentação animal não está em causa os seus objectivos de garantir uma maior rastreabilidade dos alimentos para animais, a introdução de um sistema de alerta rápido, harmonização dos controles, rotulagem dos alimentos, aditivos, antibióticos, introdução de códigos de práticas baseados em sistemas HACCP, substâncias indesejáveis, revisão dos licenciamentos, etc. mas questionamos se muitas das medidas visam os objectivos de garantia de uma efectiva segurança alimentar ou se não irão apenas onerar os custos de produção e afectar a competitividade da Fileira, sem quaisquer benefícios para os consumidores.

Nesta perspectiva pensamos que as medidas centradas na origem, ao nível do aprovisionamento de matérias-primas e a implementação de sistemas de garantia de qualidade em todos os pontos do circuito, poderão constituir medidas eficazes para garantir a segurança e tranquilizar os consumidores. As aprovações ou as retiradas de produtos têm de basear-se na evidência científica e não nas percepções e emoções dos consumidores e devemos exigir nas importações de produtos de países terceiros os mesmos princípios e iguais restrições às que são impostas aos operadores da União Europeia, sob pena de assistirmos a uma deslocalização das empresas para fora do espaço europeu e à asfixia completa da pecuária.

Nesta perspectiva, num quadro de enormes dificuldades, de grandes mudanças em que as questões centrais serão a competitividade da Fileira e a segurança alimentar, a qualidade, a comunicação com os consumidores e a procura de soluções em conjunto com a Administração Pública assumem uma importância vital no curto prazo. No âmbito da segurança alimentar, a IACA já obteve a homologação da DGV por Despacho de 10 de Outubro, do seu Código de Boas Práticas de Fabrico de Pré-Misturas e de Alimentos Para Animais que procura garantir um conjunto de procedimentos visando a segurança da utilização de alimentos compostos aos produtores pecuários mas é igualmente necessário que as matérias primas sejam controladas e fornecidas à indústria com elevados padrões de segurança.

No entanto, apesar de todas estas dificuldades, estamos certos de que com uma estratégia assumidamente interprofissional, a Fileira continuará a demonstrar a mesma dinâmica e com as sinergias necessárias, saberemos ultrapassar os enormes problemas que se avizinham.

Pela nossa parte, tal como sempre, a IACA estará atenta a toda esta conjuntura complexa e continuará a defender e a lutar, em Portugal e em Bruxelas, pelos interesses da indústria nacional de alimentos compostos, pela consolidação da Fileira Pecuária Nacional e pelo reconhecimento da sua real importância no desenvolvimento equilibrado do mundo rural.

Novembro de 2000

Jaime Piçarra
Engenheiro Agrónomo
Assessor da IACA – Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos Compostos para Animais


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