José Pimentel e Gonçalo Rodrigues

A importância decisiva da adoção de uma agricultura baseada em ciência – José Pimentel Coelho e Gonçalo Caleia Rodrigues

A produção agropecuária em Portugal iniciou, de há umas décadas para cá, uma transição de um sistema empírico quase que exclusivamente apoiado nos recursos naturais (clima, solo, água e energia) para um sistema fundamentado em ciência e tecnologia.

A verdade é que a conjugação do conhecimento profundo dos recursos naturais conjugado com a ciência e as tecnologias agropecuárias, proporciona grandes sinergias, onde o resultado final (o todo) supera a simples soma dos componentes. Na realidade do nosso país, essa transição tem uma clara componente regional, sendo mais acentuada em algumas áreas, particularmente no Ribatejo e no Alentejo, dada a escala e do tipo de explorações aí presentes.

As interfaces entre a produção agropecuária e o capital natural são inúmeras e complexas. Essa realidade exige conhecimentos técnicos e científicos mais aprofundados e linhas de financiamento, crédito e seguros mais abundantes e de longo prazo. Mas se, por um lado, um sistema mais baseado em ciência liberta a produção dos limites impostos pelo capital natural, por outro lado, impõe um novo conjunto de restrições a essa mesma produção. A especialização e intensificação da produção tem, nalguns casos, acelerado o processo de degradação do solo e de depleção e poluição dos recursos hídricos, assim como incrementado a resistência das pragas e das patogéneses aos métodos usuais de controlo.

No final do século passado, assistimos a uma crescente preocupação, quer com os impactes sobre o capital natural, fruto das externalidades negativas geradas pela produção agropecuária mais especializada e intensiva, quer com o crescimento da procura por amenidades ambientais rurais, derivado do aumento do rendimento per capita e da elevada elasticidade-rendimento da procura por serviços agroambientais.

A partir dos anos 90 do século passado tornou-se evidente que o redireccionamento do esforço produtivo, técnico e científico para um caminho induzido por um menor stresse ambiental, seria um elemento essencial para alcançar consistência entre procuras muitas vezes conflituantes por uma maior disponibilidade de alimentos e por mais serviços ambientais.

A eficácia ambiental pode ser ampliada por vários protocolos/regras de adesão voluntária ou obrigatória, baseados no estabelecimento de uma série de princípios e diretivas técnicas, de natureza ambiental, a serem observados pelos produtores (chamemos-lhe: “Certificado de Conformidade Agroambiental”). Entre essas diretrizes podemos destacar as relacionadas com: a Mobilização de Conservação do Solo (no limite, a Sementeira Direta); a Produção e Proteção Integradas (incluindo o uso de organismos geneticamente modificados); a Agricultura de Precisão (incluindo monitorização e controlos culturais, biológicos, mecânicos / físicos e químicos precisos); a Recuperação de Áreas Degradadas (via, por exemplo, sistemas de cobertura viva contínua do solo); a Biodiversidade (via, por exemplo, rotações culturais e instalação de margens/bordaduras dos campos multifuncionais); a Eficiência de uso da água, dos nutrientes e da energia; a Integração de atividades agrícolas, pecuárias e florestais; a fixação biológica de Azoto; o tratamento de resíduos animais, etc., etc.

A incorporação da sustentabilidade económica, social e ambiental nos critérios de escolha e no comportamento estratégico, tático e operacional do sector é relativamente recente, mas fundamental e decisiva. Isso, também exigirá que as comunidades de formuladores, decisores e implementadores de política pública e de cientistas tenham uma adequada compreensão das forças que determinam as causas, a velocidade e a direção das mudanças necessárias da atual realidade das atividades agropecuárias.

Entre as mudanças prováveis, uma parece-nos ser evidente: a insustentabilidade de um caminho dependente de materiais e energia derivados de recursos não renováveis e, por isso, finitos, que reflete a falha de desenhar e disponibilizar incentivos compatíveis com um caminho técnico alternativo de longo prazo.

Para a correção dessa falha, é essencial a definição de um novo percurso tecnológico, suportado por um investimento em infraestruturas e capital humano, que nos ajudem a desenvolver e estruturar um mercado de crescente valor de bens e serviços derivados do capital natural. Só assim, seremos capazes de gerar compatibilidade entre políticas ambientais explícitas e políticas setoriais que implicitamente afetam o uso e a conservação do capital natural. O setor continua a ser maioritariamente reativo às determinações e ações de órgãos ambientais do que proactivo, raramente se antecipando às exigências ambientais legais. O sistema atual, incentiva um envolvimento excessivo de canais políticos e influências de grupos de “lobbying”, que perseguem interesses particulares em detrimento do interesse comum.

O que se observa, são conjuntos de medidas isoladas, ora de estímulo à agricultura ora de defesa do meio ambiente, tomadas sob pressão, seja de grupos de interesse ou das circunstâncias. Em alguns momentos, há o “esverdear” de políticas agrícolas; noutros, a incorporação/incrustação de ações/compromissos ambientais. Conjuntos coerentes de medidas são a exceção, e não a regra. A coerência é construída ao longo do tempo, à medida que as falhas ficam tão gritantes que o ónus político de não fazer nada supera o das medidas corretivas.

A proteção do capital natural é (ou deveria ser) de interesse coletivo. A pressão é, portanto, difusa. É investimento de longo prazo. O valor descontado dos benefícios pode ser pequeno, se a taxa de desconto social for pouco maior do que zero. As maiores interessadas, as gerações futuras, estão claramente sub-representadas nas decisões presentes.

Em contraposição, o crescimento de um setor particular da economia, como o agropecuário, é de interesse específico de um determinado grupo. A pressão é direta, bem focada e eficaz. Os benefícios do crescimento são imediatos.

Se os objetivos de proteção ambiental e crescimento agrícola têm dimensões temporais distintas, os impactos fiscais dos dois conjuntos de políticas também são opostos. No curto prazo, enquanto a política de crescimento é fonte de emprego e receita tributária, a proteção do meio ambiente produz despesas para o erário e custos para o setor privado.

Assim, embora, teoricamente, o “trade-off” entre o crescimento e a preservação seja nítido, no jogo das pressões políticas o espaço para a discussão séria, informada e consequente é quase inexistente. É como se os contendores operassem em arenas, ou falassem línguas, distintas. Nessas circunstâncias, a proteção do meio ambiente vagueia e impregna todas as políticas, mas não tem proeminência em nenhuma delas.

Na melhor das hipóteses, a proteção do meio ambiente, é vista como uma restrição adicional a limitar a expansão da economia. E essa perceção, por mais reducionista que possa ser, acaba refletindo-se em diversos componentes de políticas públicas. É exatamente isso que tem de ser mudado nos próximos anos.

Internalizar a conservação do capital natural nas decisões e nas escolhas é o próximo degrau a ser escalado, logo após de termos alcançado o degrau da internalização das externalidades negativas do atual caminho.

Uma promoção eficaz do desenvolvimento agrícola sustentável envolverá a adequação das tecnologias agrícolas às restrições ambientais. O primeiro passo nessa direção seria o melhor conhecimento de tais restrições. Os “zoneamentos agroecológicos”, apesar de não deverem ser eficazes como meios de controlo burocrático, podem ser, todavia, fontes de informações importantes para os produtores.

O segundo passo, seria a identificação e a divulgação de atividades e tecnologias recomendadas para cada ambiente natural. Partindo do pressuposto de que os agricultores têm interesse em proteger os seus próprios recursos naturais, informações sobre tecnologias e culturas recomendadas para cada região terão impacto salutar sobre o meio ambiente. Não pode esquecer-se, no entanto, que as decisões dos agricultores são mais influenciadas pelos incentivos de mercado do que pela aptidão agronómica de uma região. É o clássico conflito entre “ótimo técnico”, “ótimo financeiro” e “ótimo económico”, tão presente tanto na literatura técnica quanto na científica.

Os conflitos reais, ou potenciais, entre o crescimento económico e a conservação do capital natural, só terão solução favorável através da adoção massiva de tecnologias ambientalmente benignas. Na precisa medida, em que o retorno económico dessas tecnologias superar o retorno de opções menos favoráveis à natureza, a sustentabilidade do crescimento será assegurada, pois, o lucro privado e os ganhos sociais caminharão na mesma direção. O papel fundamental da ciência é descobrir essas tecnologias ambientalmente benignas.

Mas, tecnologia ambientalmente benigna não é uma dádiva do Céu, pois, ela exige recursos humanos, físicos e financeiros avultados para o seu desenvolvimento, divulgação e adoção, sendo que o livre funcionamento das forças de mercado não parece ser capaz de criar uma dinâmica suficientemente acelerada para a sua difusão.

Espera-se, assim, que no futuro estaremos numa nova dependência tecnológica, num caminho criado pela inovação de técnicas agropecuárias altamente produtivas, rentáveis e, em especial, ambientalmente benignas.

Destaque-se, também, o papel crucial desempenhado pelo setor financeiro, através das suas políticas e práticas de crédito e de cobertura de riscos, na determinação do ritmo de inovação e difusão dessas novas tecnologias. Um Banco Nacional de Fomento pode e deve ter um papel fundamental neste sentido.

A este propósito, permitam-nos, ainda, destacar que a diversificação de culturas sempre foi e será considerada como o primeiro instrumento de gestão do risco à disposição de um agricultor. Todavia, a evolução tecnológica e as cotações do mercado, têm levado a que esta prática seja cada vez menos utilizada.

Isto é perigoso, tanto mais quanto os atuais programas de gestão do risco de rendimento causarem um efeito de exclusão da diversificação, como medida de gestão do risco. Se, por um lado, a especialização providencia receitas médias mais elevadas, embora com maiores variâncias, os programas atuais europeus de gestão do risco (sobretudo relacionados com os apoios desligados da produção) criam incentivos para a opção pela especialização, ao reduzir as consequências negativas da maior variabilidade nos rendimentos.

A maioria dos agricultores especializam-se de modo a aproveitar economias de escala. A especialização permite ao agricultor orientar o seu conhecimento e “know-how”, bem como focar a maquinaria e o equipamento para uma só cultura, reduzindo os custos unitários de produção e maximizando a sua margem bruta.

Cadeias verticais fortemente integradas, geradoras de uma procura muito concentrada num número pequeno de grandes “players”, atuando muitas vezes em cartel e, por isso, praticando preços baixos, criam pressões adicionais para a especialização da produção primária. Indústrias a jusante que, por exemplo, requerem produtos em largas quantidades e de elevada uniformidade e qualidade, estabelecem condições que geralmente só são obtidas em sistemas de produção altamente especializados.

A escolha de uma estratégia em particular – entre diversificação ou especialização – dependerá das características individuais do negócio de cada exploração e da aversão ao risco do agricultor. No entanto, essas escolhas seriam melhor fundamentadas se suportadas por análises empíricas mais latas dos “trade-offs” entre as duas estratégias.

É verdade que com a implementação da diversificação de culturas, o custo médio unitário pode ser aumentado, reduzindo mais, teoricamente, a margem bruta para empresas/explorações diversificadas do que para as especializadas. Todavia, esta diferença na margem bruta pode e deve ser considerada como um prémio de risco.

Parece-nos muito claro, que a combinação de políticas públicas e privadas de investimento, financiamento, cobertura de risco, investigação e inovação (particularmente de tecnologias benignas de produção agropecuária) será a única que nos possibilitará criar um sistema agropecuário baseado em ciência, e aumentar a produção de alimentos, fibras e bioenergias com redução significativa das externalidades ambientais negativas.

Se assim procedermos, acreditamos que teremos conseguido uma mudança fundamental: a proteção do meio ambiente não mais será tratada como um apêndice; pelo contrário, ela estará presente em todas as políticas, e com proeminência em muitas delas. Não será mais vista como uma restrição adicional a limitar a expansão da economia, mas sim como um dos instrumentos fundamentais para acelerar a expansão da mesma.

As abordagens atuais prevalecentes dão pouca atenção à construção de resiliência a longo prazo, cingindo-se, em grande parte, à volatilidade, de produção ou de preço, no curto-prazo. Em suma, precisamos de políticas mais eficazes e eficientes na assistência aos agricultores para que estes enfrentem com sucesso os novos riscos, já bem identificados, nomeadamente das alterações climáticas, a que estarão sujeitos.

José Pimentel de Castro Coelho, Professor Associado com Agregação do Instituto Superior de Agronomia

Gonçalo Caleia Rodrigues, Professor Auxiliar do Instituto Superior de Agronomia

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