
De entre as poucas coisas em que discordo do que vai dizendo Carlos Guimarães Pinto, a mais importante será, provavelmente, a forma como os dois olhamos para a corrupção.
Cito um amigo que fez uma síntese bem melhor do que eu conseguiria, quando eu disse que a força da incompetência era muito mais poderosa que a da corrupção:
“É quase uma Lei da Física. Para que ocorram problemas devidos a incompetência é preciso fazer muito pouco, frequentemente até resultam da inação. Isso torna a sua ocorrência muito mais fácil e frequente, a incompetência é aparentada com a entropia.
Já a corrupção exige reflexão, organização, intencionalidade, agência, eficácia. Não é que não ocorra, mas ao ser muito mais complexa, é menos provável.
Quando vejo casos de crime organizado em Portugal, vem-me uma restiazinha de esperança. Não seria a minha primeira escolha, mas revela que não somos completamente desprovidos da capacidade de organização”.
Lembrei-me disto a propósito do comentário de António Nunes, o presidente da CIP dos bombeiros, cujo nome oficial é Liga dos Bombeiros Portugueses, apesar de não representar nenhum bombeiro, mas os patrões dos bombeiros, sobre a operação Torre de Controlo, uma operação judicial que investiga a cartelização das empresas de helicópteros que prestam serviços no combate aos fogos.
Diz António Nunes que “meios aéreos do Estado evitam situações pouco claras com privados“.
Bem sei que António Nunes é presidente da Liga dos Bombeiros por razões que desconheço, tal como desconheço a sua ligação ao sector anterior ao exercício deste cargo, mas esta ideia de que o Estado é intrinsecamente melhor que os privados a prestar serviços é especialmente estranha neste domínio, e tudo isto me parece uma metáfora tão boa da administração pública que vou tentar descrevê-la.
O país tem, como tem qualquer outro país, questões de protecção civil a tratar.
Há muitos anos, por circunstâncias históricas fortuitas, a gestão dos fogos florestais passou a ser uma das grandes questões que o país trata no contexto da protecção civil (em vez de ser, como devia, uma questão de gestão florestal), na qual têm um peso esmagador umas associações humanitárias, que não são financiadas pelas comunidades mas pelos contribuintes, e que não têm, na sua génese, competências de ecologia do fogo (estão, portanto, na posição do indivíduo que todos os dias come, e por isso tem uma relação profunda com a comida, mas nunca aprendeu a cozinhar).
Apesar de todos os anos este modelo absorver mais recursos dos contribuintes, os mecanismos de avaliação e controlo na gestão desses recursos são frágeis, quando existentes, e muito pouco relacionados com os resultados que se pretendem obter, o que, naturalmente, não contribui para que se aumente a eficiência no uso dos recursos, e se redesenhe permanentemente o modelo, em função do que funciona, e deve ser mantido, e do que não funciona, e deve ser abandonado.
É assim que um indivíduo sem especial qualificação na matéria é escolhido por um jornalista para se pronunciar sobre uma investigação judicial, acabando a sugerir soluções que só um extra-terrestre poderá ignorar que foram adoptadas anteriormente, com resultados inacreditáveis: a compra de helicópterps KAMOV e a invenção do SIRESP.
Foi exactamente com a tineta de que os meios próprios do Estado evitam situações menos claras, que um responsável político (por acaso, António Costa, a que alguns chamam o melhor político da sua geração, apesar de não se conseguir perceber bem a ideia, a partir dos resultados para as pessoas comuns que foi obtendo ao longo da sua longa carreira política) comprou helicópteros e criou o SIRESP, que não pouparam dinheiro, não deram transparência ao uso dos recursos disponibilizados pelos contribuintes, não resolveram nenhum dos problemas que pretendiam resolver e acabaram envolvidos em investigações judiciais e processos manhosos de gestão de recursos.
Por que razão, com este histórico, António Nunes pode continuar a propor coisas do mesmo tipo?
Porque pode, como podem todos os agentes do sector.
Sapadores florestais? São caros e não servem para o que foram criados, mas quem avalia seriamente o retorno dos recursos que os contribuintes gastam nisso?
Faixas de gestão de combustível? Caras, frequentemente inexequíveis, limitadoras da livre iniciativa das pessoas e sem resultados relevantes para os fins para que foram criadas, mas quem avalia seriamente?
Legislação de defesa contra fogos? Tecnicamente absurda, resultando num poder claramente abusivo, cara e ineficaz, mas quem avalia seriamente?
Planos de transformação da paisagem? Tecnicamente frágeis, inexequíveis, caros e sem qualquer utilidade para o que se pretende, mas quem avalia seriamente?
Etc., etc., etc..
Não, o post não é sobre a gestão do fogo em Portugal, o que está descrito acima é aplicável ao SNS, ao sistema educativo (o ministro ainda anda às voltas para tentar ter informação de base séria para gerir alguma coisa) e a grande parte da administração pública.
A corrupção é um problema sério que deve ser levado a sério, e ter mecanismos de limitação dos seus efeitos negativos sérios, mas comparada com a ineficiência que a incompetência cria na máquina do Estado, a corrupção não passa de um problemazinho sem grande relevância.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.