A maior zona de livre comércio do mundo

Escrevo este artigo, na sequência da visita ao Brasil de uma delegação do Parlamento Europeu, a qual integrei a convite da Comissão da Agricultura e do Desenvolvimento Rural. Para além das reuniões políticas com membros do governo federal brasileiro, tive, igualmente, a oportunidade de me encontrar com a Confederação Nacional da Agricultura e de visitar explorações agrícolas em vários locais do centro do país. Esta visita permitiu-me consolidar as minhas perceções sobre o Acordo de Parceria UE-Mercosul: cada dia que passa é mais um dia perdido na operacionalização deste importante acordo para a UE e para os países da América do Sul.

À medida que o tempo passa são oportunidades que se perdem. É tempo de passar das palavras aos atos.  A entrada em vigor não é o fim, será o início de uma parceria que beneficia ambas as partes e que prevê mecanismos para fazer eventuais ajustes que o tempo manifeste como oportunos. Paralelamente, para a UE é fundamental reforçar a sua capacidade de fiscalização, garantindo que os termos do acordo são cumpridos.

Será irónico dizer, mas a guerra na Ucrânia e as medidas protecionistas impostas por Donald Trump, ao aumentar unilateralmente as tarifas aduaneiras e desencadeando um clima de guerra comercial com a União Europeia (UE) e com outros parceiros comerciais, desencadearam um efeito positivo:  evidenciaram a urgência em concluir o acordo UE-Mercosul, dado o seu significado estratégico, económico e político. O aumento exponencial dos direitos aduaneiros, imposto pelos Estados Unidos da América (EUA), funcionou como catalisador político, permitindo desbloquear o impasse.

Embora a Europa tenha acordado tarde para a questão, a verdade é que a instabilidade provocada pela crise comercial com os Estados Unidos incentivou a UE a perceber a necessidade urgente para encontrar novos mercados alternativos, reforçar laços e parcerias comerciais e fortalecer relações internacionais.

Para que o acordo comercial entre em vigor rapidamente, a proposta da  Comissão Europeia para a conclusão e assinatura integra dois instrumentos jurídicos paralelos: o Acordo Comercial Provisório, que abrange apenas as partes que são de competência exclusiva da UE, cuja aprovação será feita pelo Conselho e pelo Parlamento Europeu; e o Acordo de Parceria UE-Mercosul que, após aprovação pelos colegisladores europeus, está sujeito à ratificação por todos os Estados-Membros, de acordo com as suas normas constitucionais. Em Portugal, o processo de ratificação compete à Assembleia da República.  Desta forma, a parte comercial entrará em vigor mais rapidamente, enquanto a implementação das restantes provisões poderá, ainda, demorar vários anos, até que seja concluído, em todos os Estados-Membros, o processo de ratificação do acordo.

Um acordo comercial com o bloco latino-americano – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – oferece oportunidades que a UE não se pode dar ao luxo de ignorar, num contexto de crescentes tensões comerciais globais, dada a deterioração das relações comerciais com os EUA, a complexidade do relacionamento com a China e o bloqueio às trocas comerciais com a Rússia. Quando estiver implementado, será estabelecida a maior zona de livre comércio do mundo, representando um mercado com mais de 700 milhões de pessoas e um quarto da economia mundial.

Estima-se que o acordo possa aumentar as exportações anuais da UE para o Mercosul até 39% (49 mil milhões de euros), apoiando mais de 440 mil postos de trabalho, em toda a Europa. A UE já é o maior bloco comercial do mundo, pelo que consolidará esta posição, mitigando, assim, o impacto das tarifas impostas pelos EUA e abrindo um caminho para reduzir as dependências da China, especialmente em termos de acesso a minerais essenciais e terras raras. O acesso a matérias-primas críticas reveste-se de particular relevância para a competitividade da economia europeia dado que a UE redirecionou para a dupla transição os seus programas de investimento. Neste caso concreto, o Brasil e a Argentina possuem importantes reservas de minerais raros, os quais são essenciais para o desenvolvimento das tecnologias necessárias para as transições verde e digital. .  O acordo representa uma vantagem competitiva dado que não serão aplicadas taxas, nem de importação nem de exportação, assegurando o comércio livre destas matérias-primas.

Com a ratificação do acordo, os países do Mercosul eliminarão tributos fiscais sobre 91% das exportações da UE, ao longo de 15 anos, enquanto a União Europeia eliminará os tributos fiscais sobre 92% das exportações do Mercosul até 10 anos. Segundo a Comissão Europeia, o acordo deverá gerar uma poupança de mais de 4 mil milhões de euros, por ano, em direitos aduaneiros, para as empresas da UE.

Sabemos que, de ambos os lados do Oceano Atlântico, existem críticos e defensores deste acordo, mas o texto apresentado tentou equilibrar os interesses, propondo abertura comercial, proteção do sector agrícola europeu e maior exigência ambiental nas cadeias de produção.

Do lado europeu, são os agricultores quem mais protesta, alegando que o acordo abrirá as portas a importações baratas sul-americanas, sobretudo de carne bovina, que podem não cumprir a 100% os padrões de segurança alimentar e ambiental da UE. Porém, tal possibilidade é mais mito do que realidade, dado que o acordo estabelece garantias robustas para o setor agrícola, para a proteção ambiental e na segurança alimentar.

O acordo inclui um pacote de salvaguardas agrícolas, com a definição de quotas de importação de carne bovina e de aves, um “travão de emergência” que permite suspender benefícios, em caso de desequilíbrio de mercado, e o aumento dos apoios financeiros aos agricultores europeus.

É garantido que este acordo protege a maioria das sensibilidades da UE, no sector agrícola. Aliás, este é o único sector onde foram definidas quotas, com a limitação das importações agroalimentares preferenciais do Mercosul, a uma fração da produção da UE (por exemplo, 1,5% para a carne de bovino e 1,3% para as aves de capoeira).

Mais recentemente, foi aditada uma lista de 23 produtos considerados “sensíveis”, como carne bovina, suína, aves, ovos, milho, açúcar, etanol, alho, mel, arroz, biodiesel e queijos. Estes produtos estarão sujeitos a um sistema de monitorização reforçado. A cada seis meses, técnicos da UE irão avaliar a evolução destes produtos no mercado europeu, produzindo relatórios sobre o impacto das importações do Mercosul que serão analisados pela Comissão Europeia. Caso seja identificado algum impacto negativo — como produtos importados do Mercosul com preços 10% mais baixos em relação aos europeus, aumento de 10% nas importações de um produto do Mercosul, em relação ao ano anterior, ou queda de 10% no preço de importação de um produto do Mercosul, em relação ao ano anterior — a Comissão Europeia irá proceder a uma investigação sobre o produto ou produtos em causa.  Se a Comissão concluir que existe prejuízo grave ou ameaça de prejuízo para os produtores europeus, serão suspensos, temporariamente, os benefícios aduaneiros para os produtos em causa.

Este sistema de monitorização é uma forma da UE satisfazer a França e outros países do centro da europa que, desde sempre, se têm oposto ao acordo, e de defender os agricultores europeus.

Por outro lado, o setor agrícola irá obter ganhos inequívocos, prevendo-se que as exportações agroalimentares da UE para o Mercosul cresçam quase 50%, com a redução dos direitos aduaneiros sobre importantes produtos agroalimentares da UE, como o vinho e as bebidas espirituosas (até 35 %), o chocolate (20%) e o azeite (10%), ampliando a sua vantagem competitiva face a competidores de outras latitudes.

Adicionalmente, o acordo incluí garantias adicionais para a defesa da agricultura europeia, com a designação de 344 Indicações Geográficas Protegidas (IGP) da UE, protegendo os melhores produtos alimentares e bebidas da UE, de forma a evitar a concorrência desleal dos produtos do Mercosul que imitam produtos autênticos da União. Estas garantias ajudam a tornar esses produtos mais distintos, permitindo que os produtores fortaleçam as suas posições de mercado nos países do Mercosul e comercializem os seus produtos a um preço superior.

Contrariamente aos argumentos de contestação por parte dos agricultores europeus, em termos de segurança alimentar, o acordo está dotado de salvaguardas robustas que garantem que todos os produtos que sejam produzidos ou importados para o mercado europeu, têm de cumprir e ser conformes às normas e padrões europeus de saúde pública e de segurança alimentar. Só temos de fiscalizar e se os produtos não cumprirem os padrões fitossanitários da UE, são devolvidos à proveniência!

Complementarmente, para apoiar os agricultores que sejam afetados negativamente pelas importações do Mercosul será constituído um fundo de emergência dotado de 6,3 mil milhões de euros.

Finalmente, também em matéria de proteção ambiental e salvaguarda dos direitos sociais o acordo introduz salvaguardas robustas. A implementação do acordo toma em consideração as condições sociais e laborais dos trabalhadores do Mercosul, sendo implementado um mecanismo de avaliação e monitorização que verificará o cumprimento pelos produtores sul-americanos das obrigações ambientais e sociais, de forma a garantir que o acordo beneficie não apenas os interesses económicos, mas também o bem-estar das populações e a preservação do planeta.

Por outro lado, o impulso derradeiro para a conclusão do Acordo UE-Mercosul parece vir da Cimeira do Clima (Belém Climate Summit), que se realizou de 5 a 7 de novembro, em Belém, no Brasil, onde o Presidente do Brasil, Lula da Silva, recebeu os principais líderes mundiais para debater a transição energética, fazer um balanço dos 10 anos do Acordo de Paris e, dessa forma, preparar a COP30, que está a decorrer no mesmo local, entre os dias 10 e 21 do corrente mês.

Simultaneamente, Lula da Silva, nos encontros bilaterais que manteve à margem desta cimeira com Ursula von der Leyen e com outros chefes de estado e de governo europeus, introduziu a questão da conclusão e assinatura do acordo UE-Mercosul, em jeito de ultimato, dado que o Brasil está na presidência do Mercosul, até ao final deste ano, e pretende finalizar a questão durante a sua presidência. Neste momento, é evidente que Lula da Silva e Ursula von der Leyen querem concluir o processo de assinatura do acordo até ao final do corrente ano, mais precisamente até dia 20 de dezembro.

O primeiro-ministro de Portugal, Luís Montenegro, no encontro bilateral com Lula da Silva, foi dos primeiros chefes de governo europeus a assumir que a UE e o Mercosul poderão contar com o voto nacional para a aprovação e entrada em vigor do Acordo. Para que tal aconteça, é necessário que o Conselho da União Europeia, atualmente sob Presidência da Dinamarca, e o Parlamento Europeu aprovem a proposta de regulamento sobre o Acordo Comercial Provisório. Quer no Conselho quer no Parlamento, para a aprovação é suficiente a obtenção de uma maioria, dado que este acordo provisório, apenas contempla a parte comercial e o investimento, que são competências da UE.

Ainda que os prazos sejam muito curtos, a questão maior, neste momento, não será a aprovação pelo Conselho, pois, parece estar garantida, mas sim, a aprovação pelo Parlamento Europeu, que está dividido quanto a esta temática. Se excluirmos os eurodeputados indecisos, menos de 100 em 720, no Parlamento existe uma maioria de deputados favorável à aprovação do acordo, mas por escassa margem. Portanto, não é de estranhar que as enormes pressões exercidas, tanto pelos que são a favor do acordo como pelos que são contra e por grupos de interesses, de ambos os lados, junto dos eurodeputados. Dado que a diferença de votos é diminuta, a persuasão dos indecisos será tarefa prioritária nos próximos dias.

Enquanto eurodeputado, e estando convicto que a aprovação deste acordo é crucial para a prosperidade e sustentabilidade da União Europeia, irei empenhar-me na sensibilização dos indecisos sobre as vantagens do acordo UE-Mercosul. Esta não é apenas uma questão de números e de estatísticas, é sobretudo uma oportunidade de enfrentarmos as incertezas económicas e os desafios geopolíticos, introduzindo um elemento de previsibilidade, e de construirmos um mundo mais justo e sustentável.

Face à crescente incerteza e aos desafios geoestratégicos, políticos e económicos que a UE enfrenta, o Acordo de Parceria UE-Mercosul é uma oportunidade que a Europa não pode perder, se pretende reforçar a sua competitividade e manter a sua capacidade de influência num mundo cada vez mais polarizado.

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