Henrique Pereira dos Santos

A natureza e nós – Henrique Pereira dos Santos

O artigo para que liguei no meu post anterior é muito típico de uma visão ideológica (haverá alguma que não o seja?) da natureza e da relação do homem com a natureza que tem uma contradição insanável: pretende evitar o especismo, isto é, considerar todas as espécies ao mesmo nível moral, mas depois, rapidamente, desenvolve o assunto como se o homem não fosse, ele mesmo, uma espécie como as outras e estivesse fora da influência das leis da natureza (no fundo, como se o nosso cérebro não fosse um produto da evolução darwinista que nos deu a oponência do polegar).

O que define esse artigo é esta frase deliciosa: “Atravessam estradas e por vezes dão-se acidentes com vítimas mortais: os javalis quase sempre e, por vezes, pessoas.”.

Para qualificar o texto como profundamente desonesto basta também reparar numa outra frase: “A sua alimentação é feita sobretudo de frutos, raízes, fungos e pequenos invertebrados que encontram na floresta natural, o seu habitat por excelência.”.

Sendo o artigo escrito por três biólogos, não há como admitir a hipótese da ignorância de qualificar a floresta natural como o habitat por excelência das populações de javali em Portugal, dada a exiguidade desse tipo de habitat em Portugal e a mais que conhecida ocupação de habitats de matos e mosaico de matos e campos agrícolas por varas de javali.

Ou seja, é mesmo má-fé.

Acho normal que haja leitores do Corta-fitas a perguntar por que razão a defesa da introdução de linces ou a proibição da caça à raposa, isto é, favorecer predadores potenciais do javali, é uma patetice, visto que ninguém é obrigado a saber que os linces são fortemente dependentes da população de coelho sendo muito improvável que cacem javalis, mesmo que sejam crias, ou que a população de raposa (que mais facilmente pilham galinhas que se metem com javalis) é mais que abundante, não havendo nenhuma restrição relevante à dinâmica da espécie provocada pela caça (por isso as pessoas ideologicamente alinhadas com este texto de militantes do PAN, frequentemente, dizem, com razão, que não vale grandemente a pena fazer controlo de predadores em zonas de caça, eles voltam rapidamente a ocupar o espaço deixado vago pelos que foram mortos antes).

Os autores do texto sabem que existe essa ignorância e tentam explorá-la a favor da sua agenda política, o que é especialmente fácil na área da conservação da natureza, uma área em que a emoção se sobrepõe à razão, facilmente.

O mundo de Walt Disney, aliás mal interpretado porque Walt Disney nunca quis retratar o mundo animal, que aliás conhecia bem, mas sim fazer uma metáfora do mundo das pessoas através dos animais, é incomparavelmente mais bonito e satisfatório que o mundo difícil de compreender, amoral e cruel, que é o da natureza.

Recentemente eu próprio demonstrei a minha arrogância na interpretação da natureza com uma história que passo a contar.

Elsa Salzedas, que não conheço, publicou neste Domingo uma fotografia sua com o texto “O lugar da Quinta da Taberna. Hoje. E as marcas que perdurarão no tempo do grande incêndio. no Parque Natural da Estrela …”

Olhei para a fotografia, li o texto de enquadramento a falar de marcas de incêndio que perduram, e duvidei da data da fotografia, razão pela qual perguntei se alguém poderia confirmar a data da fotografia.

Duvidei porque me parecia que a erva que se vê era muito pouca para o tempo que passou desde o fogo, e não via nenhuma rebentação no pé de alguns arbustos que ali estão, e isso não batia certo com a minha ideia da dinâmica dos sistemas.

Por um lado não olhei com suficiente atenção para o que está no canto inferior direito, em que se vê alguma erva, por outro desvalorizei o facto da fotografia não ter vistas alinhadas com vales e zonas de acumulação de solo e, por último, não me lembrei do efeito potencial da herbivoria em grandes fogos (já agora, José Manuel Fernandes, anteontem, neste programa em que participei, contava a história do cheiro a carne queimada depois de um incêndio. Um amigo caçador disse-me que lá na aldeia dele ouve frequentemente essa história, mas lhe parece muito pouco provável, não só porque ninguém mostra factos concretos, como fotografias ou videos, ele não encontra esqueletos, como, sobretudo, não acredita que a generalidade dos animais se deixem apanhar pelo fogo, porque se deslocam a velocidades muito maiores que a frente de fogo, o que ele via, sim, porque a área ardida era mesmo muito grande, era javalis e veados magríssimos nos meses seguintes).

Paulo Fernandes lá me chamou à terra, lembrou-me que ainda não passou a Primavera, que ainda se está no período de dormência das plantas (será maior a maiores altitudes, acrescento eu) e que teríamos de esperar por isso para avaliar a recuperação dos sistemas, dizendo, entretanto, que os americanos que andaram por aí a avaliar o fogo da Estrela estavam muito pouco preocupados, mesmo em zonas onde a severidade do fogo foi grande, sendo muito poucas as situações em que achavam que poderia haver vantagem em adoptar medidas de emergência pós-fogo, o resto vai recuperar sem problema.

E aqui está como os meus preconceitos sobre a evolução de sistemas, a falta de atenção aos pormenores e a vontade, ideológica, de estar sempre a contestar a ideia, errada, de que os efeitos dos fogos se prolongam muito no tempo, me levou a duvidar de factos que eram reais e estavam bem à frente do meu nariz.

A natureza não existe para que a estudemos, nós é que insistimos em estudá-la, dizia Jorge Palmeirim, com acerto, talvez ter isso mais presente nos evitasse muita discussão estéril sobre caça, eucaliptos, fogos, agricultura intensiva, arrendamento compulsivo de propriedades, obrigação legal de fazer isto e aquilo em matéria florestal, obrigação legal de não fazer aqueloutro também em matéria florestal, e por aí fora.

Acho que um dia destes escrevo um post sobre a oportunidade de ser caçador profissional de javalis em Portugal e como preferimos liquidar essa fonte de riqueza e emprego no mundo rural em benefício de contos de fadas sobre javalis que morrem inocentemente na estrada porque alguém os obriga a atravessá-las.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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