A negação do solo

O revestimento de grandes áreas territoriais do país com mega centrais fotovoltaicas, cobrindo o solo, é só a última consequência de um processo de destituição do solo, que começou muito antes. Práticas de extrativismo tornam-no cada vez menos capaz de reter água, com perda de minerais e nutrientes, até o esgotarem.

Solos exaustos tornam-se impermeáveis. Então, a retenção da água é deixada a barragens, esses grandes símbolos da impermeabilidade. A porosidade do solo é flagrantemente reprimida pela obsessão por isolar e compartimentar. O solo revestido por muitas centenas de hectares de painéis solares, ladrilhado com o impermeável reflector, é a sua suprema denegação. Já só se espera do solo que seja suporte de uma instalação industrial de milhares, centenas de milhar de painéis.

Estão presentemente em discussão pública vários projectos controversos. Um leva o nome de Sophia e é protagonizado por uma empresa britânica, líder no sector, e propriedade da BP, uma das maiores petrolíferas do mundo. Promete um investimento de 500 milhões em nome da transição energética, que fornecerá energia a 350 mil lares, e criará mil postos de trabalho por um período de três anos. Mas o que nos diz a Quercus é que a fauna perderá o seu ecossistema, que aves em risco de extinção deixarão de ser viáveis, a biovidersidade ainda mais ameaçada.

Além do Sophia, no mesmo distrito de Castelo Branco, está também em discussão pública o projecto Beira. Os municípios afectados são Castelo Branco, Fundão, Idanha-a-Nova, Penamacor, numa extensão agregada que ultrapassa o milhar de hectares. Amarfanha-se, na esquadria dos painéis a perder de vista, o solo por baixo, o ecossistema em volta e, não menos, a paisagem que, no fim de tudo, ainda resistia à indiferença dos meios. É uma escala anti-ecológica e desumana.

Outro projecto, ainda maior do que o Sophia, denominou-se Fernando Pessoa e é iniciativa de Iberdrola. Será no Alentejo, concelho de Santiago do Cacém, e é apresentado assim pelos próprios promotores: “Estamos construindo em Portugal a central fotovoltaica Fernando Pessoa, o maior projeto fotovoltaico da Europa e o quinto maior do mundo. Com 1.200 MW de capacidade instalada, será um exemplo de respeito ambiental e convivência e fornecerá energia renovável para 430.000 residências.”. Também promete muitos postos de trabalho, fala-se de poder chegar aos 2500 empregos. Esta retórica, contudo, não convence associações de protecção ambiental. Foram movidos processos judiciais contra o empreendimento e uma iniciática de impugnação da respectiva declaração de impacto ambiental.

O projeto precisa de uma linha de muito alta voltagem cuja construção também está a ser contestada. É apontado que a megacentral servirá outro projeto, o mega Data Center de Sines, com as suas exorbitantes necessidades de consumo energético. Se for assim, o que teremos é simplesmente o solo alentejano, a terra que o faz, a servir de sustentação à economia digital global, as suas clouds sem gota de água. Que pode ter esta desvitalização que ver com transição energética, respeito ambiental e convivência?

E não há como não reparar na evocação de dois grandes nomes da poesia portuguesa para baptizar estes projectos, a Sophia e o Fernando Pessoa. Não acho que seja coincidência. O que fica é mesmo a amargura de ver ser pedido à poesia e à sua humanidade que caucione esta desumanidade de uma indústria que retira ao solo, à paisagem, aos ecossistemas qualquer direito a ser.

Decerto, a transição energética importa muito, mas não como uma indústria em tudo igual à indústria agrícola intensiva. Um “painelal” sem fim, aos meios milhão de painéis, não é em nada melhor do que um olival intensivo no Alentejo, ou um eucaliptal de monocultura rápida, a ser cortado e replantado em sete anos, na Beira. Na verdade, é pior, pois nem sequer é vivo.

O que era preciso fazer? Obviamente, apostar numa economia de baixo consumo energético, mais baseada na proximidade espacial e temporal entre produção e consumo, o critério do menor impacto a regular cada escolha, como um assunto de comunidade, por quem nela habita. E era preciso investir em melhores habitações, mais bem preparadas termicamente, cada unidade habitacional desenhada procurando autossuficiência energética, eventualmente, dotada de painéis solares.

Não faltam iniciativas a chamar a atenção para o gigante problema que estes projectos de mega centrais representam. Ainda se vai a tempo de fazer diferente. Em nome de uma transição energética digna do que diz ser.

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