A Nova Farm Bill Americana – Arlindo Cunha

Desde o início das negociações da Ronda Uruguai do GATT[2] em 1986 que o debate em torno das políticas agrícolas e do comércio internacional agroalimentar tem sido polarizado pelas posições antagónicas dos Estados Unidos e seus aliados do Grupo de Cairns[3], por um lado e, por outro, pelas da União Europeia (UE) e seus aliados[4] defensores da agricultura multifuncional. Para os primeiros a agricultura é um sector económico como qualquer outro, devendo sujeitar-se às regras da livre concorrência e os subsídios (designadamente os que mais distorcem a concorrência internacional) ser desmantelados ou reduzidos substancialmente. Para os segundos, a agricultura é algo mais que um sector da economia, já que a sua presença no espaço rural é indispensável para a preservação do ambiente e das paisagens, para a fixação das populações e, em geral, para assegurar um correcto ordenamento do território. Por isso carece de protecções e apoios especiais que assegurem a sua continuidade, de forma equilibrada, em todo a território.

Foi neste contexto liberalizador que os Estados Unidos da América (EUA) aprovaram em 1996 uma nova política agrícola (o FAIR Act – Federal Agricultural Improvement and Reform Act) considerada unanimemente como revolucionária, por ser o prenúncio do fim dos subsídios à agricultura e, consequentemente, da especificidade do sector. Para além de medidas de natureza ambiental e de apoio ao desenvolvimento rural, sobressaíam dois tipos de medidas: Medidas de apoio ao mercado e ajudas directas. As primeiras aplicavam-se aos cereais, algodão, arroz, soja e outras oleaginosas, e incluíam designadamente: i) um preço de intervenção (loan rates); ii) crédito à comercialização – incluindo a exportação (marketing loans) e iii) o pagamento de um diferencial entre o preço de intervenção e o preço de mercado, no caso de este ser inferior àquele (loan deficiency payment – LDP). As ajudas directas designadas por AMTA[5] eram pagas aos produtores de cereais, algodão e arroz, com base em áreas e produtividades históricas, inalteráveis daí em diante. O montante inicialmente calculado dessas ajudas  era degressivo ao longo dos 6 anos do período de aplicação da nova lei agrícola e completamente desligado da produção. Ou seja, uma vez calculado com base nas áreas e culturas de referência, o agricultor podia a partir daí cultivar o que quisesse, ou não cultivar nada, sem que isso afectasse o montante do subsídio a receber em cada ano. Daí o ter-se designado esta política agrícola como “freedom to farm” (liberdade de produzir), até porque se acabou também o pousio obrigatório anteriormente existente.

FAIR Act era, afinal, a expressão visível da posição americana, sempre propagandeada como liberal, contra o amaldiçoado proteccionismo agrícola europeu.

Sucede, porém, que a partir de 1997/98 os preços agrícolas americanos começaram a baixar de forma bastante sensível. Para evitar uma queda brusca nos rendimentos, o Governo Americano começou a aprovar todos os anos desde então as designadas “ajudas de emergência”, que constituíam uma compensação especial aos agricultores pela queda dos preços no mercado. Nos quatro anos em que foram aplicadas totalizaram cerca de  30.000 milhões de dólares. Em consequência, dos 4.600 milhões de dólares para ajudas directas previstos no orçamento do FAIR Act em 1996, passou-se para 32.300 milhões no ano fiscal de 2001. Ou seja 7 vezes mais que o previsto.

Do coro de críticas que veio de todas as partes do mundo foi respondido que eram medidas excepcionais motivadas por situações de verdadeira emergência resultante da depressão dos preços.

Eis que chegamos ao momento em que uma nova política agrícola teve que ser aprovada, o que foi feito no dia 13 de Maio por assinatura do Presidente George W. Bush, após um longo período de negociações entre as duas Câmaras que integram o Congresso Americano: a Casa dos Representantes e o Senado.

Para além de um reforço razoável dos programas agro-ambientais e de desenvolvimento rural, a nova política agrícola (mais conhecida por Farm Bill, mas cuja designação precisa é de Farm Security and Rural Investment Act) vem reforçar substancialmente os subsídios à agricultura em mais de 80% prevendo um total de 180.000 milhões de dólares para 10 anos[6]. Para além disso, a nova política agrícola vem reforçar os apoios à política de preços e mercados e à exportação. Ou seja, vem fazer aquilo que os mesmos EUA até agora sempre criticaram à UE.

É neste contexto que a nova Farm Bill:

  • Reforça os subsídios já existentes no âmbito do FAIR Act, designadamente os LDP e os pagamentos fixos (os antigos AMTA), deixando estes de ser degressivos para passarem a constantes durante todo o período de aplicação.
  • Os LDP são alargados ao amendoim, grão-de-bico, ervilhas secas, lentilhas e lã, e os pagamentos fixos são alargados à soja, ao amendoim e a outras oleaginosas de menor expressão.
  • São criadas as ajudas “contra-cíclicas” (counter-cyclical payments), que são pagas no fim do ano agrícola quando o rendimento de cada agricultor[7] em cada cultura elegível (cereais, arroz, algodão, soja e amendoim) for inferior a um determinado “preço-objectivo” previamente fixado. A área utilizada para o cálculo da ajuda corresponde a  uma base histórica de referência, mas a partir daí o agricultor pode produzir o que entender. Se não produzir nada tem que aderir a um dos programas de conservação ambiental. Trata-se, afinal, da instituição permanente das ajudas de emergência aplicadas desde 1998 e de uma verdadeira rede de segurança para o rendimento agrícola.
  • São actualizadas as áreas de base e as produtividades de referência para o cálculo dos diferentes tipos de ajudas.
  • Aumenta o limite máximo de ajuda por agricultor de 230.000 dólares para 360.000 dólares.

É pois notório que a nova política agrícola americana constitui uma viragem sensacional face ao FAIR Act e à filosofia que tem prevalecido nas negociações da OMC e nas conferências da OCDE, no sentido de um aligeiramento das políticas de preços e mercados e da atribuição de apoios aos agricultores através de instrumentos o mais possível desligados da produção, a fim de não se criarem distorções de concorrência.

Ora, ao arrepio de tudo o que vinha de trás, a nova política agrícola americana aumenta os níveis de ajuda e reforça os mecanismos de gestão do mercado. Além disso cria claros efeitos distorçores da concorrência:

  • Ao garantir sempre um nível de rendimento determinado aos agricultores, retira a estes o vínculo com o funcionamento do mercado, especialmente quando os preços são baixos. Ora isto é contraditório com a lógica de competitividade.
  • Com garantia de rendimento assegurada, os agricultores americanos tenderão a expandir a sua produção, independentemente dos preços e do escoamento do mercado.
  • Com perspectivas de criação de excedentes estruturais no mercado os preços agrícolas americanos baixarão consideravelmente.

Estaria tudo bem se esta situação se confinasse ao mercado interno. Mas não é esse o caso, já que os Estados Unidos exportam cerca de 25% da sua produção agrícola e nalguns casos, como o trigo, as suas exportações chegam a representar 40% das exportações mundiais. O que acontece é que para se garantir a estabilidade interna do rendimento, criam-se preços artificialmente baixos e gera-se uma instabilidade externa. Por três razões. Primeiro, porque torna os preços americanos imbatíveis nos mercados internacionais. Segundo porque, os baixos preços internos desencorajam em princípio as exportações de países terceiros para o mercado americano. Terceiro, porque torna igualmente imbatíveis os preços de toda a fileira pecuária devido ao muito mais baixo custo das rações.

E se a este sistema inegavelmente perverso juntarmos diversos programas já existentes de apoio às exportações e o seu reforço orçamental (marketing loansMarket Access PromotionForeign Market Development), os que foram agora criados de novo (Technical Assistance for Special Crops e Biotechnology and Agriculture Trade Programe) e ainda o reforço da ajuda alimentar (food aid), que funciona como mais um subsídio à exportação[8] (só que em espécie), então poderemos concluir que a nova política americana vem aumentar consideravelmente os subsídios à exportação, contribuindo assim para deprimir artificialmente os preços no mercado mundial e desencorajar a produção noutras partes do mundo, especialmente nos países menos desenvolvidos (PVD).

Em resumo, estamos conversados. Confirmou-se o que já se sabia: o discurso liberal era só para consumo externo, já que a prática interna era o contrário, mesmo a fazer lembrar o velho ditado de Frei Tomás.

É cedo para ir mais longe nesta análise. É, porém, previsível que o tipo de garantias ilimitadas agora criadas venha a criar uma espiral de desequilíbrios semelhantes aos criados pela PAC das décadas de 70 e 80 (antes da reforma de 1992), estes também resultantes de uma política ilimitada de garantias de mercado aos agricultores europeus.

A terminar, afigura-se-me que três grandes questões serão objecto de particular debate.

A primeira refere-se à relação da nova política agrícola com as negociações da OMC. Se, como parece razoável, as novas ajudas forem classificadas na “caixa amarela”[9], isso poderá implicar uma ultrapassagem do limite anual de 19.200 milhões de dólares permitido aos Estados Unidos a título da AMS.

A segunda é que a União Europeia tem agora ainda mais razões para uma postura ofensiva nestas negociações, podendo capitalizar a seu favor a frustração do grupo de Cairns, aliados tradicionais dos EUA e dos PVD, claramente lesados com esta nova política.

A terceira grande questão a debater tem a ver com o futuro da PAC. Com estas novas medidas, os Estados Unidos passam a ter um nível global de apoio à agricultura, segundo os dados da OCDE[10] de 20.000 dólares por agricultor a tempo inteiro, enquanto que o valor equivalente da UE é de 14.000 dólares. A contra argumentação, em resultado da escassez do factor terra na UE, de que estes valores se invertem se medidos em função da terra, não atenua o argumento, já que o que em substância importa é o montante global de ajuda por agente económico, neste caso o agricultor.

É óbvio que face a uma tal situação, as organizações agrícolas europeias irão tentar refrear a Comissão Europeia quanto às suas intenções reformadoras para a PAC, no âmbito da designada Reforma Intercalar de 2003. E a tal facto não será alheio o adiamento em quase um mês na apresentação das propostas da Comissão, com o argumento de que precisava de estudar em maior detalhe as consequências para a UE e a PAC da nova Farm Bill americana.

Até agora esperava-se que a reforma intercalar não deveria passar de um mero ajustamento, visando essencialmente reforçar a componente de desenvolvimento rural (ou segundo pilar da PAC) onde se encontram os mecanismos de apoio à multifuncionalidade agrícola. Esta constitui a tese central da argumentação da UE na OMC para justificar a necessidade de continuar a conceder determinados tipos de apoio à sua agricultura. A questão que agora se coloca, depois de conhecido o conteúdo do Farm Bill, é saber até que ponto a UE tem necessidade de ir mais longe e baixar os seus preços de garantia nalguns pontos chave. É que, se os preços mundiais se reduzirem sensivelmente, ficaremos na UE com um sério risco de exportar menos devido ao maior montante unitário das restituições às exportações e aos limites globais impostos pela OMC. De qualquer forma, será prudente aguardar por previsões mais sólidas sobre a evolução do mercado mundial nos próximos anos, antes de se tomar uma decisão a este respeito.

Coisa diferente será a reforma que terá necessariamente lugar em 2006, altura em que chega ao fim a actual política e o consequente quadro orçamental, baseados no Acordo de Berlim da Agenda 2000. Nessa altura teremos de avaliar o resultado da experiência americana e actualizar as previsões do mercado internacional. Mas, mais importante do que a experiência dos outros, é a nossa própria experiência e a solução dos nossos próprios problemas. E é nesse âmbito que a enorme inequidade distributiva da PAC a respeito dos agricultores europeus e dos diferentes tipos de agricultura e produtos, o reforço efectivo do 2º pilar para responder melhor às exigências da multifuncionalidade, da qualidade e da segurança alimentar, e a integração dos agricultores dos novos países do leste europeu, terão que encontrar as respostas de que necessitamos. Mas é também nesse mesmo âmbito que teremos de tomar decisões sobre novas reduções de preços de garantia se a situação interna e externa a isso obrigarem.

Arlindo Cunha
Eurodeputado, antigo Ministro da Agricultura dos Governos do Prof. Cavaco Silva.

Referências

  • Agra-Europe (2002) EU attacks new US farm subsidies,(edição de 27 de Maio);
  • Ayer, Harry and Swinbank, Alan (2002) The US Farm Bill: help or harm for CAP and WTO Reform?, Agra-Europe de 27 de Maio;
  • Berthelot, Jacques (2002) Questions and Answers – US Farm Bill, Brussels
  • Comissão Europeia (2002) Special Issue on the US Farm Bill, Policy News de 17 de Maio;
  • Fischler, Franz (2001) EU and US Farm Policy – where do they differ and where do they converge?, Congressional dinner speech, Washington.

[1] Eurodeputado, antigo Ministro da Agricultura dos Governos do Prof. Cavaco Silva.

[2] General Agreement on Tarifs and Trade – um acordo multilateral para a liberalização do comércio, que a partir de 1994 (data em que se passou a chamar-se Organização Mundial do Comércio – OMC) passou a incorporar também os produtos agroalimentares. Integra actualmente 140 países.

[3] Coligação de 14 países grandes exportadores de produtos agroalimentares que inclui designadamente: Austrália, Brasil, Argentina, Canadá, Nova Zelândia e Indonésia.

[4] Esta coligação de países aliados da UE no seio das negociações da OMC inclui designadamente os países do leste europeu candidatos à Adesão à UE, o Japão e a Noruega.

[5] AMTA – Agricultural Market Transition Act – que fixou estas ajudas a atribuir no quadro da liberdade de produzir (freedom to farm) decorrente dos Production Flexibility Contracts (PFC).

[6] Trata-se de uma estimativa considerada a muitos títulos conservadora, designadamente porque a previsível degressão dos preços decorrente do modelo de política agrícola adoptado implicará um aumento das ajudas directas para assegurar o objectivo de estabilizar os rendimentos.

[7] O que recebem da venda dos produtos, mais os pagamentos fixos, e mais ainda os LDP.

[8] A Comissão Europeia demonstrou que existe uma correlação de 90% entre os níveis dos preços internos nos EUA e as quantidades de produtos exportados a título de ajuda alimentar (AGRA Europe de 27 de Maio 2002).

[9] Forma de classificar no âmbito da OMC aquele tipo de apoios à agricultura considerando mais distorçor da concorrência. Estes subsídios constituem a chamada Medida Global de Apoio ou AMS – Aggregate Measure of Support.

[10] A unidade utilizada é o Producer Subsidy Equivalent (PSE), que em termos globais era de 49.000 milhões de dólares nos EUA (para 2 milhões de agricultores) e de 90 000 milhões de dólares na UE (para 7,4 milhões de agricultores).


Publicado

em

por

Etiquetas: