A PAC do pós 2013: contexto, debates, e expectativas – Arlindo Cunha

1. Relembrar o Contexto

A última reforma da Política Agrícola Comum, enigmaticamente designada por Exame à Saúde da PAC, aprovada pelo Conselho de Ministros da Agricultura da União Europeia (U.E.) em Novembro de 2008, resultou de uma decisão do Conselho Europeu1 de Dezembro de 2005 e de Maio de 2006 que aprovou o orçamento plurianual para 2007-2013. Nela se pedia à Comissão que até 2009 avaliasse a sua execução e apresentasse, se necessário fosse, medidas apropriadas, incluído as respeitantes à PAC e o cheque britânico2. Ou seja, essa reforma deveria ter resultado de uma derrapagem orçamental – se esta existisse e a PAC tivesse contribuído para isso. Sucede, porém, que não houve qualquer análise à execução do orçamento plurianual, que não tem havido derrapagens orçamentais e que a PAC até nem tem gasto todas as dotações previstas nos orçamentos anuais. Não obstante, a não menos enigmática Comissária responsável pela agricultura, a dinamarquesa Marian Fish Boel (MFB), que agora deixou a função para o romeno Dacian Ciolos, resolveu deixar a sua marca, com base em argumentos de simplificação, de resposta a novos desafios e de que era preciso preparar uma aterragem suave para o fim das quotas leiteiras…

Como 2009 foi ano de eleições europeias e a nova Comissão apenas iniciará funções em Janeiro de 2010, espera-se para o início do ano a tão citada análise às despesas e receitas comunitárias, que deverá integrar já algumas ideias para a reforma do orçamento, aplicáveis no período de 2014 a 2020.

Em síntese, é neste contexto que uma nova reforma da PAC voltará em breve à agenda política, não por haver uma qualquer orientação específica nesse sentido, mas em resultado do debate do orçamento da União, do qual decorrerão as discussões e decisões sobre as prioridades futuras.

2. Condicionar o Debate

Sabia-se desde há muito que as grandes decisões sobre o futuro da PAC seriam tomadas, não no âmbito da reforma do Exame à Saúde da PAC (que, em minha opinião, era desnecessária), mas no da reforma que iria ocorrer no contexto das decisões sobre o orçamento para 2014-2020. Por isso assistimos, ainda durante o processo de discussão da anterior reforma, a várias tentativas de condicionar esse debate, sobretudo por parte dos principais players, e que se poderão sintetizar em dois campos opostos. Um, liderado pela França, que inclui quer os países que mais beneficiam da PAC, quer os que têm maiores dificuldades orçamentais internas e que, consequentemente, muito teriam a perder com uma redução drástica do orçamento agrícola comunitário. Defendem que a agricultura continua a ser um sector estratégico na vida da U.E. e que, pela sua especificidade, deve continuar a merecer um nível de apoio próximo do actual. Questões como preços de garantia, apoios à exportação, preferência comunitária, instrumentos de gestão dos mercados e das crises e riscos, são alguns dos pontos focais desta estratégia. Outro, liderado pelo Reino Unido, que inclui em geral os países que menos beneficiam relativamente da PAC ou que se consideram estar a pagar uma factura desmesurada para o orçamento comunitário, de que a PAC absorve a parte de leão. É o chamado modelo nórdico-liberal, que propõe a supressão gradual do primeiro pilar da PAC e que esta se deveria limitar ao segundo pilar, incorporando quer ajudas estruturais, quer ajudas directas concedidas de forma objectivada para compensar os bens públicos/externalidades positivas decorrentes do exercício da actividade agrícola. Consequentemente, defende uma redução drástica do orçamento agrícola.

Refira-se ainda que este grupo tem estado activo desde então, tendo sido reactivado em 2009 com o acentuar da crise no mercado do sector lácteo, e vindo progressivamente a engrossar os seus aliados, incluindo, aparentemente, Portugal3. Apesar de o pretexto imediato ter sido o sector leiteiro, e de o grupo (que já vai em 22 Estados Membros) ser excessivamente heterogéneo nas suas realidades e posições face à PAC, as suas ambições parecem estar centradas na construção de uma coligação política capaz de poder condicionar fortemente as negociações da próxima reforma da PAC4.

3. Factores Condicionantes e Focos da Reforma

Existem dois principais factores que irão condicionar os termos das negociações e em larga medida determinar que PAC teremos após 2013.

O primeiro é o facto de a sua negociação não ser um acto isolado, mas uma parte integrante de um pacote muito mais vasto, que desde logo integra a magna questão da reforma do orçamento e a da segunda política mais gastadora a seguir à PAC – a política de desenvolvimento regional e de coesão. Tratando-se de um pacote de reformas, as negociações tornam-se muito mais complexas e o seu desfecho mais imprevisível, visto nenhum dossier estar fechado até toda a negociação estar concluída, tal é a sua interdependência. Num tal contexto, a margem de manobra para as cedências e contrapartidas (trade-offs) negociais é muito maior, podendo acontecer alguns países cederem na PAC para obterem contrapartidas noutros dossiês, como sejam, a título de exemplo, na política de desenvolvimento regional ou nas contribuições para o orçamento.

O segundo factor determinante tem a ver com as pressões orçamentais. Estas têm a ver, antes do mais, com o limite máximo de despesa para as políticas da União, que actualmente se cifra teoricamente em 1,24% do PIB da U.E., mas que o Conselho Europeu limitou pragmaticamente a 1,045% para este orçamento plurianual de 2007-2013; mas também com a forma como o financiamento dessa despesa será repartido pelos Estados Membros e, em última instância, com os saldos líquidos (entre o que pagam e o que recebem da U.E.) da cada um.

Para se avaliar a interdependência entre o nível da despesa global e as políticas comunitárias, basta lembrar o clássico diálogo de surdos que ocorre entre as delegações do Reino Unido e da França cada vez que se discute a necessidade de reduzir as despesas comunitárias: a primeira aponta logo a inevitabilidade de uma reforma radical da PAC e a segunda a imoralidade do cheque britânico…

É neste enquadramento de factores determinantes que a próxima reforma da PAC irá estar focada em cinco principais temas: os seus custos de oportunidade5; os alargamentos da União; a repartição e desligamento das ajudas directas; o equilíbrio entre os dois pilares da PAC; e a compatibilidade com as negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC).

3.1. Os Custos de Oportunidade da PAC

Trata-se de uma questão que está, naturalmente, vinculada ao debate do orçamento e aos interesses divergentes dos Estados Membros. Existindo uma forte pressão para conter as despesas globais e havendo um relativo consenso sobre a necessidade de afectar mais recursos a outras prioridades da União (por exemplo o combate ao desemprego e à exclusão social, o reforço das políticas de inovação, tecnologia e competitividade, ou ainda o combate às alterações climáticas), as respostas tenderão a ser encontradas na redução dos custos das políticas comuns que actualmente absorvem mais recursos. Como a PAC e a Política de Desenvolvimento Regional e Coesão absorvem mais de 75% do orçamento comunitário, é bom de ver que serão os principais focos da pressão política. Ou seja, pela sua dimensão, estas políticas têm enormes custos de oportunidade, isto é, as outras medidas ou políticas que ficam por realizar por falta de dinheiro se este for afectado àquelas políticas. Isto é, estamos perante a velha teoria da manta, que para tapar uma parte do corpo deixa outra parte destapada…

Naturalmente que este debate tem a ver com a valoração política que for dada às actuais afectações orçamentais face às suas concorrentes. Como é bom de ver, os países que mais partido tiram da PAC tenderão a dar-lhe uma elevada prioridade política, sucedendo o contrário com os outros. Conforme referido acima, tudo dependerá da configuração das cedências e contrapartidas de cada país nos termos do compromisso final das negociações.

3.2. Os Alargamentos

Trata-se de outra questão também intimamente ligada à problemática orçamental, visto que não é possível continuar a alargar a União sem que daí resulte um aumento da despesa, tanto mais que todos os países que se perfilam no horizonte da adesão são elegíveis para o Objectivo Convergência da Política de Desenvolvimento Regional e de Coesão e alguns têm sectores agrícolas com considerável peso relativo nas respectivas economias. Ou seja, países candidatos que, uma vez dentro da U.E., mesmo em período transitório, são clientes privilegiados das duas políticas mais gastadoras. Em particular, a decisão dos líderes europeus sobre a adesão da Turquia e o respectivo calendário terá impacto relevante na configuração final das políticas comunitárias a negociar e dos respectivos orçamentos.

3.3. Distribuição e Desligamento da Ajudas Directas

São duas questões distintas mas que o processo negocial vai juntar. Numa sociedade europeia a braços com graves problemas económicos e sociais, com aguçados apetites para utilizações alternativas do orçamento, os únicos argumentos social e politicamente relevantes para defender o orçamento da PAC na actualidade são os que decorrem da teoria dos bens públicos e das falhas de mercado. Ou seja, a sociedade precisa de um conjunto muito importante de bens que só a agricultura pode assegurar no território: a produção de bens alimentares, seguros, de qualidade e respeitadores das regras de sustentabilidade, que nos evitem uma excessiva dependência do abastecimento por parte de países terceiros; a ocupação e o ordenamento do território; a preservação do ambiente, das paisagens, da cultura património e tradições, etc. Como, o mercado não remunera algumas dessas funções (no limite só remunera a função produtiva, e mesmo essa parcialmente, devido à enormes exigências de eco-condicionalidade que são impostas aos agricultores e que os colocam em desvantagem competitiva face aos seus parceiros do resto do mundo), impõe-se que esta falha do mercado seja suprida pelas políticas públicas. Daí a razão de ser dos diversos tipos de subsídios à agricultura.

Sucede, porém, que a PAC incorre em duas contradições gigantescas: i) as actuais ajudas directas aos agricultores (que representam 78% do orçamento do primeiro pilar da PAC) são atribuídas em função das produtividades históricas que tinham à época em que foram criadas para compensar as baixas de preço de garantia operadas por sucessivas reformas desde 1992. A reforma de 2003 desligou a maior parte dessas ajudas da produção, mas congelou a base (e os critérios) da sua determinação e repartição; ii) apenas têm direito a tais ajudas os agricultores que à data das reformas tinham produções cujos preços de garantia foram reduzidos.

Três conclusões imediatas se evidenciam: i) não estamos a ajudar todos os agricultores, mas apenas alguns e dentre estes, o nível de apoio é tremendamente desigual, quer no interior de cada país, quer, especialmente, entre países; ii) estamos a pagar mais a quem menos precisa, já que os agricultores mais competitivos (por terem produtividades mais elevadas) são os que mais recebem; e iii) estamos a distribuir as ajudas com base em critérios que são contraditórios com as externalidades positivas acima referidas. Ou seja, temos um problema de dupla personalidade na PAC: uma para defender o orçamento agrícola face à opinião pública (a personalidade que faz o discurso político da multifuncionalidade e das externalidades positivas da agricultura); e outra, completamente oposta, para distribuir as ajudas pelos agricultores e territórios.

Face a tamanha contradição, seria eticamente de esperar uma correcção profunda de tais critérios. Sucede, porém, que as negociações na U.E. não se situam no plano do que seria justo, mas no da geometria dos interesses. E o que de imediato se evidencia é que os países que mais beneficiam do status quo distributivo da PAC são por regra os que mais pagam o orçamento comunitário…Daí o ser necessária prudência no tirar de conclusões sobre grandes progressos nesta matéria redistributiva, apesar de se ter a convicção de que, a longo prazo, será impossível sustentar políticas comunitárias sobre equívocos.

Mesmo no plano interno de cada Estado Membro, sendo evidente que a única prática coerente com a justificação da PAC é a elegibilidade de todos os agricultores para as ajudas directas, não serão de subavaliar as dificuldades que surgirão, visto ninguém gostar de perder parte do que já tinha como garantido e os governos terem dificuldade em assumir rupturas.

A questão do desligamento situa-se num plano complementar, pois se se vier a demonstrar que a dissociação entre o acto de produzir e a recepção das ajudas está a criar desequilíbrios graves em importantes áreas dos territórios rurais, com abandono da função produtiva e consideráveis perdas de emprego, é de prever que a questão do re-ligamento seja coloca sobre a mesa das negociações e que tenha relevantes implicações nas negociações da próxima ronda da Organização Mundial do Comércio. Penso, convictamente, que a Comissão tem a obrigação moral e política de fazer um estudo exaustivo dos impactos do RPU. Não um estudo agregado por sectores, mas uma análise desagregada por tipologias regionais e sistemas agrários antes de fazer novas propostas de mudança. Pela simples razão de que não existe uma “agricultura europeia”, mas, muito pelo contrário, muitos e diversos sistemas agrários e modelos-tipo de exploração, uns que retiram farto partido da actual PAC, e outros que só marginalmente dela benificiam.

3.4. O Equilíbrio entre Pilares

Deste a reforma da Agenda 2000 que, sob a batuta do Comissário Franz Fishler, a PAC vem sendo estruturada em dois grandes capítulos ou pilares6: o primeiro incorporando os apoios à política de gestão de mercado e, principalmente, ao rendimento; e o segundo as medidas estruturais e as de efeito ambiental ou territorial. Em resultado do princípio da disciplina orçamental, aprovado no quadro da reforma de 2003, novas medidas de apoio à agricultura só podem ser financiadas por reafectação interna das dotações orçamentais. Consequentemente, como a dotação global da PAC não pode ser aumentada, a chamada modulação7 foi a solução encontrada para financiar o segundo pilar. Se no futuro esta regra continuar (o que será altamente previsível) e prevalecer a lógica dos apoios à agricultura serem pagos para compensar os bens públicos que fornece, inquestionavelmente que o segundo pilar experimentará um aumento considerável de dimensão. Porém, tal aumento será realizado na exacta medida em que se reduzirá o primeiro; isto é, estamos perante um princípio de vasos comunicantes entre eles.

Apesar a previsibilidade desta tendência de reforço do segundo pilar à custa do primeiro, essencialmente por responder melhor às críticas de que PAC está pouco voltada para o território e para as principais preocupações societais (ambiente, qualidade alimentar, coesão, bem estar animal, alterações climáticas, etc), convirá sublinhar que esta solução não resolve alguns problemas fundamentais da PAC e cria ou agrava outros. Em relação aos primeiros, não resolve os problemas da maior equidade na repartição das ajudas; isso só aconteceria se a fatia do orçamento para este fim fosse à partida calculada com base em critérios objectivos, como sejam, por exemplo, a superfície agrícola útil (SAU) de cada país ou o emprego agrícola; ou se todas as verbas libertadas pela modulação revertessem para um bolo comunitário, após o que seriam redistribuídas com base em critérios como os referidos. Em relação aos segundos, o facto de o segundo pilar ser apenas co-financiado pela U.E. (e não financiado a 100% como o primeiro pilar) pode criar distorções de concorrência entre Estado Membros, tendo em conta a diferente capacidade de financiamento dos orçamentos nacionais, perfilando-se os países mais pobres e com contas públicas menos consolidadas como os grandes perdedores.

Por estas razões, aqueles que em Portugal, ou noutros países como problemas semelhantes, defendem a continuação do reforço do segundo pilar, deverão ter em conta estas precauções, sob pena de ficarmos ainda pior do que estamos.

3.5. A PAC e a Organização Mundial do Comércio (OMC)

Muita gente se interroga do porquê do actual modelo da PAC, seguindo um aprofundamento evolutivo consistente desde a primeira grande reforma de 1992. É obvio que existiam à época fortes pressões orçamentais que motivaram as reformas, para além dos excedentes estruturais, também motivados por níveis de preços de garantia elevados. Porém, é matéria consensual que todas estas reformas da PAC foram em larga medida feitas para a compatibilizar com as regras da OMC. Da reforma de 1992 dependeu o desbloqueamento das negociações da Ronda do Uruguai que, desde a Conferência Ministerial de Heysel de Dezembro de 1990, estavam presas pelo dossiê agrícola; e o desligamento das ajudas operado na reforma de 2003 visou colocá-las ao abrigo dos cortes em perspectiva para o horizonte da Ronda de Doha8, visto que as ajudas criadas nas anteriores reformas iriam deixar de poder ser classificadas na Caixa Verde9 . Também no mesmo sentido deve ser interpretada a insistência da Comissão Europeia na decisão de acabar com as quotas leiteiras, porquanto configurarem um controlo indirecto dos preços através do controle da produção e, consequentemente, uma forma de subsídio.

Numa altura em que é evidente que a globalização não traz só coisas positivas, em que são mais visíveis do que nunca os riscos da oscilação abrupta dos rendimentos devido à muito maior volatilidade dos preços, que produzir barato não é necessariamente uma boa notícia para a sociedade, torna-se evidente a necessidade de dotar a agricultura europeia com alguns instrumentos que lhe permitam fazer face a tais situações, sob pena de desaparecer pura e simplesmente na maior parte do território. Neste sentido, medidas como a intervenção selectiva como rede de segurança, um sistema de ajudas públicas que permitam tornar atractivas os sistemas de cobertura de riscos, incluindo os do mercado e rendimento, não são normalmente classificadas na Caixa Verde da OMC, o que significa a obrigação de serem reduzidas nos termos do próximo acordo.

Impõe-se referir que a Europa não está sozinha, nem nas dificuldades competitivas face às grandes potências exportadoras do Novo Mundo, nem na prioridade política que a dá à protecção da sua agricultura. Daí que a classificação das ajudas possa também estar em causa. Exemplos do que poderia ser renegociado no próximo acordo, e que a U.E. deveria pôr em cima da mesa das negociações, seriam: isentar da obrigação de redução as ajudas pagas aos agricultores das regiões objectivamente desfavorecidas, mesmo que vinculadas à obrigação de produzir; considerar o desligamento como um acto relativo apenas à desvinculação da obrigação de produzir produtos específicos, mas não da obrigação geral de produzir; ainda aumentar a chamada cláusula de minimis10; ou ainda ser possível aplicar algum mecanismo de protecção do mercado quando os produtos importados não respeitem regras mínimas de segurança alimentar e de sustentabilidade ambiental.

4. Em Conclusão

Quando se perspectiva um cenário de reformas desta vastidão e envergadura, em que todos os grandes vectores da vida da União Europeia estão em jogo, é sabido que os principais players, como políticos, funcionários e lóbis altamente tarimbados nas negociações comunitárias, se encarregam, em devido tempo, de preparar bem as estratégias e coligações negociais que mais convêm aos seus interesses. Para conseguirem concretizar com sucesso os objectivos desejados, estas estratégias (que, algumas vezes, são verdadeiras encenações), exageram sempre na mensagem, com a finalidade de ganhar espaço negocial. Por isso, alguns observadores ou actores menos prevenidos se convencem por vezes de que estaríamos perante um cenário propício a uma reforma radical, tendo muito especialmente presente o difícil momento económico que vivemos. Outros, mais teóricos, advogam mesmo a inevitabilidade de termos em perspectiva uma tempestade perfeita11, pois estaríamos em presença de uma conjugação de factores (orçamentais, ambientais, sociais e crise económica) tal que seria inevitável a ocorrência de uma alteração radical da PAC.

É verdade que não existe, no contexto temporal em que vão decorrer as negociações, nenhum indicador que sustente o argumento de que a actual PAC possa vir a ser reforçada, nos termos do chamado modelo francês. Nem em termos orçamentais, nem em termos de mudanças relevantes nos instrumentos de gestão dos mercados, com a ressalva de que, em razão das dificuldades políticas criadas pela desastrosa estratégia da aterragem suave, poderemos assistir à decisão de um novo deslizamento do fim das quotas para 2020 ou 2025.

Tal não significa, porém, que existam condições para o cenário oposto, o de uma reforma radical, no sentido do modelo britânico-nórdico pois, por mais forte que fosse a conjugação de pressões nesse sentido, haveria sempre uma minoria da bloqueio no Conselho para a evitar.

Importa ainda considerar que os países que actualmente mais ganham com a PAC preferem aceitar alguma redução global do orçamento agrícola (de, por exemplo, 5 a 10% em termos reais) do que aceitar uma alteração dos critérios de distribuição das ajudas directas, que previsivelmente os penalizaria mais. E que tal comportamento encaixaria bem na estratégia dos países que se sentem prejudicados por ela, que, assim, obteriam contrapartidas por outra via: ou através de outras políticas comuns ou da redução da sua contribuição para o orçamento comunitário.

Uma negociação desta natureza só chega ao seu termo, isto é, só resulta em decisão, quando todas as partes consideram que, atentas as restrições existentes, conseguiram pelo menos um mínimo dos resultados que se propunham alcançar; e, não menos importante, quando os responsáveis políticos dos vários países acham que isso lhes basta para poderem regressar a casa a cantar vitória… É o que se chama alcançar um compromisso político, instrumento central do método comunitário de negociação consensual. Ora, tratando-se de uma negociação em pacote alargado, é mais fácil aos líderes políticos encontrarem argumentos para explicar nos seus países o sucesso negocial que, alegadamente, tiveram, mesmo não conseguindo o que pretendiam na PAC.

Em resumo, estamos perante uma difícil e complexa negociação, em que, pelas razões expostas é de esperar mais uma evolução, ainda que com alguma contracção orçamental, do que uma revolução que reduza drasticamente o envelope financeiro da PAC ou que altere de forma radical a sua estrutura.

5. Interesses Portugueses

No meio de tanta complexidade e jogo táctico, qual será a melhor estratégia negocial para Portugal?

Mostra a evidência que, em geral, o modelo de PAC que se formou na sequência das reformas desde 1992 foi no geral positivo, se tivermos em conta designadamente a evolução dos rendimentos em série longa. Na verdade, sendo grandemente deficitário, Portugal só marginalmente beneficiava da política de preços e mercados, que à época absorvia a quase totalidade do orçamento da PAC. Com as reformas, os agricultores começaram a receber um apoio visível, apesar de ser consideravelmente mais baixo do que o da maioria dos seus congéneres da antiga U.E.15 devido ao critério das produtividades históricas12 . Consequentemente, como não é de prever um aumento global do orçamento da PAC, convinha-lhe uma negociação que conduzisse a uma alteração dos critérios de atribuição das ajudas, assim como o deslizamento por mais 10 ou 15 anos da decisão de acabar com as quotas leiteiras, já que a sua revogação pura e simples se afigura politicamente mais difícil.

Portugal deverá, assim, aliar-se ao grupo dos Estados Membros que defendem um modelo evolucionista para a PAC, que não implique grandes cortes orçamentais, mas ao mesmo tempo deve carregar nas tintas das contradições da PAC, defendendo que os critérios de repartição das ajudas directas que melhor reflectem a lógica da multifuncionalidade e dos bens públicos são os de uma ponderação equilibrada da superfície e do emprego agrícolas. Como aprovar estes critérios ao nível da U.E. é quase uma impossibilidade política (já que os países que pagam o orçamento da União seriam os grandes perdedores), não deveremos descurar a ideia de alinhar também na coligação de países que pensam ser possível obter tal resultado por via do reforço considerável do segundo pilar. Todavia, atendendo ao referido em 3.4, esta estratégia deveria ser acompanhada de duas condições fundamentais: i) o aumento da taxa de co-financiamento comunitário para 90% ou 95%, ou mesmo para 100% para alguns propósitos, como por exemplo o da manutenção da actividade agrícola nas zonas desfavorecidas e determinados valores ambientais de manifesta dimensão europeia; e ii) o retorno ao orçamento comunitário das verbas geradas pela modulação, para serem redistribuídas pelos Estados Membros em função dos tais critérios acima referidos. Como é sabido, na reforma de 2003 a Comissão tinha proposto exactamente isto. Só que, para poder ter o apoio de países como a França e a Alemanha, teve que ceder neste ponto; e o que se salvou na negociação final foi o retorno de apenas uns modestos 20% das verbas assim geradas (e apenas 10% no caso da Alemanha).

Em síntese, o importante seria conseguir alguma alteração nos critérios de atribuição das ajudas directas, o que implicaria uma alteração, em muitos casos relevante, da chave de repartição dos apoios da PAC entre agricultores, regiões e Estados Membros. Se, como parece, for menos difícil conseguir alguma redistribuição por via do sistema dos vasos comunicantes entre pilares com redistribuição entre países, poderíamos então apoiar uma estratégia negocial neste sentido.

Como nota final importa sublinhar que esta é uma análise centrada na defesa da agricultura e da PAC. Convém, porém, relembrar que estamos perante uma negociação em que estão em cima da mesa todas as políticas comunitárias e que Portugal tem enormes interesses na outra principal política gastadora – a de desenvolvimento regional e de coesão. Daí que esta próxima reforma seja também um teste para avaliar o grau de importância que o nosso Governo atribui à agricultura e ao mundo rural.

Arlindo Cunha
Economista, Professor Convidado da Universidade Católica, ex-Ministro da Agricultura e ex-Eurodeputado

 

(*) Adaptação do artigo “PAC do pós-2013: evolução ou revolução” publicado pelo Autor na Revista Espaço Rural, nº 72, Nov/Dez 2009”

(1) Órgão que integra os Chefes de Governo da U.E. e que é responsável pelas grandes decisões e orientações estratégicas.

(2) Trata-se de um mecanismo negociado pela ex-Primeira Ministra Margareth Tatcher na Cimeira de Fontainebleau de 1984, mediante o qual, para repor o grande desequilíbrio à época existente na situação contributiva do Reino Unido para a U.E., esta passou a devolver-lhe cerca de dois terços da sua contribuição líquida anual. Consoante os anos, este montante tem-se situado entre os 4.000 e os 5.000 milhões de euros. A situação que este desconto no financiamento britânico do orçamento da União visava corrigir está hoje completamente ultrapassada, sendo consensual (fora do Reino Unido) que não se justifica a sua manutenção. Refira-se, a propósito, que a maior pressão contributiva recai hoje essencialmente sobre a Alemanha e, num segundo plano, em termos relativos, sobre a Holanda e a Suécia.

(3) Este grupo, inicialmente de 16 países, apresentou um memorando ao Conselho Agricultura de 7 de Setembro de 2009 (Documento 13035/09 do Conselho) no qual defendia, designadamente, uma maior regulação da PAC para o mercado do sector, assim como um aumento das ajudas de minimis. Posteriormente, um subgrupo destes países (Alemanha, Áustria, Eslováquia, França, Hungria e Portugal) apresentaram uma adenda àquele documento no sentido de o Conselho suspender temporariamente o aumento das quotas leiteiras em 2010 e 211 decidido na reforma de 2008.

(4) A França tem vindo a liderar este grupo, com uma reunião de trabalho marcada para 10 de Dezembro, em Paris (ver http://agriculture.gouv.fr/). Apenas 5 Estados Membros não estão integrados neste Grupo: Reino Unido, Holanda, Dinamarca, Suécia e Malta. Sendo extremamente cedo para avaliar a sua consistência e coerência interna, importa, porém sublinhar que os 22, em maior ou menor grau, perfilham da ideia que o modelo liberal que tem configurado a PAC desde a reforma de 1992 não serve os interesses da agricultura europeia no actual quadro de globalização e de novos desafios e que, consequentemente, muitas das decisões tomadas desde então terão que ser rediscutidas.

(5) Conceito da teoria económica que consiste em medir o custo de um bem não apenas pelo montante dos recursos que foram mobilizados para o produzir, mas também pela consideração dos outros bens cuja produção foi sacrificada em resultado daquela decisão de afectação de recursos. Pressupõe-se, assim, que os recursos disponíveis numa dada economia são sempre limitados e que a decisão de os afectar a umas utilizações implica necessariamente o sacrifício de outras.

(6) A repartição das dotações da PAC é de, aproximadamente, 85% para o 1º pilar e 15% para o segundo. Estes números terão, porém que ser olhados com cautela, devido a factores como as receitas geradas pela modulação que ficam em cada Estado Membro ou as diferentes taxas de co-financiamento nacional.

(7) Redução linear das ajudas directas dos beneficiários que receberem mais de 5.000 euros por anos. Na reforma der 2003 a taxa de redução foi de 5%; na de 2008 foi decidido um aumento progressivo até atingir 10% em 2013, com um adicional de 4% para os que receberem mais de 300.000 euros.

(8) Designação da actual ronda de negociações com vista a um novo acordo de liberalização do comércio, iniciada em Novembro de 2001, na capital do Qatar.

(9) Trata-se de uma das modalidades de classificação das ajudas à agricultura, que integra as que são consideradas como não tendo grandes efeitos distorçores da concorrência (por exemplo as ajudas directas desligadas da produção, ou os apoios à formação, investigação, ambiente, etc.). Por tal razão, não estão sujeitas às reduções de subsídios determinadas pelos acordo da OMC.

(10) Designação dada a uma espécie de reserva discricionária de subsídios ligados à produção que os países membros da OMC podem dar, sob a forma que melhor entenderem, sem estarem sujeitos redução, desde que os mesmos não excedam o correspondente a 5% do valor bruto de produção (de um produto, no caso de serem sectoriais, ou da produção agrícola agregada, no caso de serem transversais).

(11) O título do conhecido filme americano de Wolfgang Petersen foi, curiosamente, adoptado para título de um livro sobre a reforma da PAC de 2003 (Johan F.M.Swinnen (ed.) (2008) The Perfect Storm – the Political Economy of the Fischler Reforms of the Common Agricultural Policy, Centre for European Policy Studies, Brussels). Trata-se, em minha opinião, de um adjectivo excessivo para descrever esta reforma, pois não se alterarou o que seria essencial: os critérios de repartição dos apoios e a forma de garantir a presença da agricultura em todo o território da U.E., especialmente onde existe maior risco de abandono.

(12) Mesmo assim, este critério foi consideravelmente atenuado na Reforma de 1992, quando negociámos uma produtividade política de referência de 2,9 toneladas por hectare para as culturas aráveis, quando a produtividade estatística era de 1,6 toneladas; tal permitiu a Portugal um ganho negocial estimado em cerca de 11 milhões de contos (aproximadamente 55 milhões de euros) por ano.

A Nova Farm Bill Americana – Arlindo Cunha


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