Henrique Pereira dos Santos

A percepção pública e o fogo – Henrique Pereira dos Santos

Nota prévia importante. Depois de escrito o post, corrige-se uma informação muito relevante: o polígono amarelo diz respeito à Área Protegida da Serra do Açor, que inclui a Mata da Margaraça, mas não à Mata da Margaraça ela mesma

Este post começou numa sessão pública oficial em que, mais um vez, o Senhor Ministro do Ambiente (que conheço e trato por tu, embora falemos raramente, fica feita a primeira declarações de interesses deste post) estabeleceu uma relação directa entre a presença de eucaliptos e os fogos de 2017.

Mas não é sobre isso o post, é sobre a percepção sobre o fogo que transpareceu em algumas equipas técnicas que têm a responsabilidade de desenhar paisagens mais resilientes ao fogo.

Esse é o objectivo do Programa de Transformação da Paisagem, um equívoco tremendo em que estão envolvidos vários colegas meus, que conheço e prezo.

Numa dessas apresentações, e não foi a primeira vez, a responsável por uma dessas equipas (que conheço e prezo, mas não tem trabalho científico reconhecido na matéria, o que diz mais sobre os critérios de decisão na Administração Pública na execução deste programa que sobre os meus colegas envolvidos), insistiu na sua tese, já desmentida noutras ocasiões, de que a Mata da Margaraça não ardeu em 2017, porque é constituída maioritariamente por folhosas autóctones.

Fogo Outubro2017 Margaraça (003).jpeg

O boneco acima é de José Miguel Cardoso Pereira e João Neves Silva e foi feito depois dessa sessão pública procurando dados verificáveis sobre o tal fogo que não terá ardido mas terá sido visto, ao contrário do costume.

A Mata da Margaraça é o que está dentro do contorno amarelo e é intuitivo perceber o que ardeu  e não ardeu (“A imagem … é do satélite Sentinel-2 e foi recolhida poucos dias após 15 de Outubro de 2017, onde o polígono amarelo demarca a Mata da Margaraça. As áreas a verde mostram a vegetação intacta, ou onde o fogo apenas queimou ligeiramente à superfície, sob copado arbóreo que permaneceu verde. As áreas a vermelho são aquelas onde a vegetação foi consumida, ou fortemente chamuscada pelo fogo, No caso de arvoredo, serão copas consumidas ou completamente chamuscadas”).

Tem uma dificuldade que é  ponta Leste (à direita) em que a sombra topográfica não permite perceber se ardeu ou não, e de que forma.

Em qualquer caso, há um mosaico de áreas mais ardidas e menos ardidas que é essencialmente o mesmo da zona envolvente, com ou sem carvalhos, isto é, o mosaico de severidade do fogo depende de outros factores que não da espécie dominante no povoamento (existem resmas de estudos a dizer o mesmo).

“Tudo isto é conhecimento estabilizado e consensual para quem analisa dados, investiga o assunto e conhece a literatura especializada. Para além disso, é por demais evidente que a espécie, ou o género arbóreo não é o determinante único, frequentemente nem sequer o principal, da severidade dos efeitos do fogo. A abundância de sub-bosque, a exposição das encostas e a sua orientação relativamente à propagação do fogo, a hora do dia e a velocidade do vento no momento em que o fogo passou por determinado local são tão ou mais importantes que a espécie/ género”.

Como a conversa sobre este fogo continuou (eu, essencialmente como espectador, que esta não é a minha área profissional, José Miguel Cardoso Pereira, Paulo Fernandes e Nuno Guiomar, qual deles mais qualificado em matérias relacionadas com comportamento do fogo e ecologia do fogo e João Baeta Henriques, intermitentemente), foi possível ter bastante mais informação sobre o fogo na Margaraça.

“Até tenho foto com fogo de copas tirados durante o 1º incêndio (1-2 semanas antes de 15 de Outubro) e que se propagou do topo para o vale, creio que coincide com as manchas vermelhas. E tenho muitas fotos que documentam a variação da severidade do fogo dentro da mata, numa visita que fiz 1 semana após 15 de Outubro. Todo o sombreado a leste ardeu e a única área que realmente não ardeu foi aquela ilha central verde, incluindo um pedaço acima da estrada e junto à casa do ICNF mas principalmente abaixo da estrada no que constitui a porção mais húmida e abrigada da mata”.

A talho de foice, a relação causa/ efeito de aparecerem manchas não ardidas de folhosas no meio de áreas quase totalmente ardidas (também há dezenas de exemplos com talhões nas ardidos de eucalipto, por exemplo, neste caso, muito provavelmente, relacionando-se com a intensidade de gestão desse povoamento em concreto) não é intuitiva: é porque há umas bolsas em que o fogo  tem dificuldade em chegar, de maneira geral relacionando-se com factores topográficos e exposição aos ventos que dominantemente ocorrem nos dias mais favoráveis ao fogo (o que no parágrafo acima é descrito como “porção mais húmida e abrigada da mata”), que resistem aí retalhos reliquiais de matas de folhosas, não é por haver aí matas de folhosas que não arde.

“Esta insistência na inviolável Margaraça não tem sentido nenhum, é um facto facilmente comprovável, até porque esta mata não foi afectada uma, mas sim duas vezes nesse ano. Aliás, o fogo de Esculca-Côja-Arganil do 15/10 resulta de dois reacendimentos, um deles aqui. Mas, já agora, e para diversificar nas “provas do crime” envio anexo um artigo (“Macrofungi of Mata da Margaraça (Portugal), a relic from the Tertiary Age”) que é parte de uma tese de mestrado elaborada aqui na Universidade de Évora (um dos três alunos que incentivei a realizarem as suas teses na área ardida da Margaraça, embora não tenha orientado nenhum por indisponibilidade de tempo). E esta tese até tem alguns pontos de interesse particulares: “The recent fires that occurred in the area have provided the opportunity to study the post-fire communities. The surveys were carried out in 2004 and later in 2018-2019. A total of 271 species were registered as belonging to Basidiomycota (≈ 80%) and Ascomycota (≈ 20%). The most represented Basidiomycota families were Russulaceae, Mycenaceae and Agaricaceae and the most represented Ascomycota families were Pyronemataceae and Pezizaceae. The new records to Portugal add up to a total of 88 species and another 116 species are new records to the province of Beira Litoral. Post-fire fungi account for 17 of the total of 271 species registered in these studies and most of these species are new to Portugal.”

“um mapa (reconstrução e simulação) que mostra que o fogo da Margaraça, o de 15 de Out, entrou já em condições facilitadas, porque entrou de flanco e não de cabeça. O incêndio anterior evitou que o de 15 entrasse de cabeça margaraça abaixo”.

“Esta atitude negacionista em relação à Margaraça, já a encontrei várias vezes em relação ao Caldeirão (onde na falta de argumentos, vale tudo, até colocar o que lá não está). E não basta provares com factos ou demonstrares analiticamente uma vez. Eu pensava que bastava e vê o que aconteceu em Monchique, um relatório inacabado migra para uma Resolução do Conselho de Ministros com um mini-capitulo que demonstra que o que estão a publicar não terá o efeito que se diz ter ou pelo menos querer ter. Temos que repetir e repetir e repetir, tal como nos nossos primeiros momentos de aprendizagem pós-nascimento, e mesmo assim não é garantido que alguma coisa mude a narrativa ficcional de alguns actores da nossa praça”.

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“um boneco que mostra os focos de calor detectados pelos sensores VIIRS, TERRA e AQUA em 7 e 8 de Outubro de 2017. A cor azul indica que as observações foram todas feitas durante a noite, entre as 22:30 e as 2:30”.

“Isto é ainda mais interessante, porque mostra que apenas o lado mais ocidental da mata ardeu em 15 de Outubro. Portanto o gradiente de severidades que se observa no terreno resulta de condições de fogo bem menos extremas do que aquelas que se verificaram a 15 Out”.

“a encosta Leste deve ter sido percorrida pelo fogo durante a noite e contra o declive”.

Resumindo estas longas citações, cujos autores de cada uma omito, mas são os três acima citados numa amena cavaqueira suscitada pela negação de um facto evidente e verificável, feito numa conferência de elevado nível técnico e administrativo (dois membros do governos, vários directores gerais, vários coordenadores de extensas equipas técnicas, etc., etc., etc..) e que não belisca minimamente a credibilidade do processo de “transformação da paisagem” em curso.

E não belisca porquê?

Porque na verdade a percepção pública sobre fogos se reduz, essencialmente, a incendiários e eucaliptos (por vezes estende-se aos pinheiros, portanto, em rigor, à produção florestal comercial), ignorando totalmente a brutal quantidade de informação acumulada sobre o assunto e princípios fundamentais da ecologia do fogo e da evolução das paisagens (é aqui que acabo por estar metido nisto, é neste bocadinho que tenho algum conhecimento).

É compreensível a ideia de que o fogo é todo igual, embora seja uma ideia errada, é compreensível a ideia de que todos os fogos grandes começam por ser pequenos, portanto é preciso é apagá-los logo nessa altura, embora seja uma ideia não só errada, como impossível de aplicar totalmente, potenciando o desastre das vezes em que não se consegue aplicar, é compreensível a estranheza perante a ideia contra-intuitiva de que o fogo se gere com fogo, embora seja uma ideia certa (que é largamente potenciada pela introdução do pastoreio na equação).

O que é incompreensível é que a niveis que devem ser tecnicamente exigentes, corramos atrás da percepção pública errada, desenhando políticas erradas, com resultados catastróficos, quer do ponto de vista da economia, quer, mais importante, do ponto de vista social.

Aparentemente, só com a morte de toda a minha geração é que uma nova geração de técnicos, que tenham crescido habituados à ideia de gestão do fogo, familiarizados com a ecologia do fogo e libertos das fantasias sobre o comportamento das folhosas nativas em fogos que ocorrem em condições meteorológicas extremas, poderão gerir paisagens mais resilientes ao fogo.

Não há que desanimar, já nos restam poucos anos a fazer e dizer asneiras.


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