A Previsível Evolução da PAC e os Interesses Nacionais – Armando Sevinate Pinto

O mercado mundial

Como todos sabemos, no que tem a ver especificamente com a previsível evolução da PAC, há essencialmente duas realidades sob a forma de dois mercados: o mercado europeu e o mercado mundial.

Entre esses dois mercados há muitas diferenças. A mais expressiva dessas diferenças consiste no facto dos preços dos produtos agrícolas mais importantes do ponto de vista comercial, serem mais elevados na Europa do que o são no mercado mundial.

Segundo a Comissão Europeia, na campanha 1999-2000, os preços na Europa ultrapassavam os do mercado mundial nas seguintes proporções:

Trigo:  13%  Carne de bovino: 57%
 Milho:  52% Carne de aves:  37%
 Arroz branqueado: 100% Carne de ovino: 126%
Açúcar:  160% Leite em pó:  88%
Tomate:   24% Manteiga: 126%
Queijo: 62%

Nota: isto é com o USD fortíssimo. O que seriam estas relações com o USD valendo menos 20 ou 30%!!!

Para clarificar melhor as minhas ideias, julgo ser conveniente dizer-vos resumidamente, desde já, o que penso do mercado mundial em matéria de produtos agrícolas:

Em primeiro lugar, é um mercado de saldos, no qual normalmente os produtos agrícolas atingem preços muito baixos, muitas vezes inferiores aos custos de produção, que não asseguram um nível de vida decente aos produtores e são profundamente instáveis, variando com frequência e com grande intensidade, de ano para ano.

Em segundo lugar, o mercado mundial serve essencialmente aos grandes países produtores excedentários e às empresas multinacionais, que têm capacidade para o influenciar e controlar;

Em terceiro lugar, os seus defensores contradizem-se, dizendo aos produtores que se todo o comércio for liberalizado eles ganham porque os preços sobem, enquanto que dizem aos consumidores que se o comércio for liberalizado eles também ganham porque os preços descem.

Em quarto lugar, o mercado mundial está longe de assegurar a regularização do seu funcionamento e é sempre desfavorável aos pequenos países que não têm nenhuma capacidade para o influenciar.

Em quinto lugar, o nível dos preços do mercado mundial depende muito mais de factores externos à agricultura, como por exemplo das flutuações monetárias, que têm um muito maior efeito perturbador sobre o comércio e sobre a economia mundial, do que os direitos alfandegários actuais ou os subsídios à exportação e as ajudas directas, que protegem a agricultura europeia,.

Segundo os últimos dados divulgados, no ano passado, o suporte dado à agricultura americana – 2 milhões de agricultores – foi de cerca de 120 mil milhões de Euros, enquanto que o suporte europeu a 7 milhões de agricultores ascendeu a 100 mil milhões de Euros!!

A evolução da Política Agrícola Comum

No mercado da União Europeia há, como todos sabemos, uma política agrícola. Até há muito pouco tempo, as regras do seu funcionamento visavam, quase que exclusivamente, proteger os rendimentos dos agricultores através dos preços, isto é, através da protecção aos preços formados no mercado europeu relativamente aos preços do mercado mundial.

Para o fazer, sem contudo interromper os fluxos comerciais, a Europa impunha taxas à importação e dava subsídios à exportação e, por essa via, se ligava aos mercados mundiais.

Já lá vão nove anos, em 1992 a UE fez uma primeira grande operação de reforma relativamente ao apoio aos agricultores.

Para alguns produtos, designadamente para algumas culturas arvenses e para os bovinos, a UE desdobrou o apoio aos rendimentos num sistema misto.

Baixou os preços aproximando-os do nível do mercado mundial, mas manteve-os com alguma protecção no âmbito do sistema antigo, isto é, através de taxas à importação e de subsídios à exportação.

Para compensar a redução dos preços foram introduzidas ajudas compensatórias baseadas na produção histórica de cada país e meio desligadas da produção, isto é, não têm a ver com a quantidade produzida mas apenas com os factores de produção utilizados.

Para alguns produtos, portanto, como já disse, a protecção aos rendimentos passou a fazer-se de uma forma mista: uma parte pelos preços e outra parte pelas ajudas compensatórias, que agora foram rebaptizadas com a designação de ajudas directas.

Para os outros produtos a protecção continuou sob a forma antiga, sobretudo através dos preços.

Depois da reforma de 1992 veio o GATT, em 1994, que abrangeu os produtos agrícolas pela primeira vez na sua história de várias décadas.

Com o acordo do GATT, aumentou a pressão liberalizadora e, de certo modo, deu-se mais uma facada na protecção dos rendimentos agrícolas, condenando-se a prazo, quer as protecções alfandegárias, quer os subsídios à exportação, quer até mesmo as ajudas directas.

Depois disso, veio, em 1999 a 2ª reforma da PAC no âmbito da Agenda 2000.

Nessa altura todas essas tendências se acentuaram, até porque no horizonte já estavam o alargamento da UE ao Leste e a renegociação do GATT, agora com o nome de OMC.

Alargou-se a orientação da reforma de 1992 a mais produtos, reduziram-se mais uma vez os preços desses produtos e aumentaram-se as ajudas directas, ainda que desta vez, menos do que aquilo que se reduziram os preços.

A única novidade nesta última reforma foi a especificidade portuguesa com o Governo a dizer-nos a todos, aos agricultores e à opinião pública, que havia um milagre e que os agricultores portugueses ganhavam perdendo ou, se quiserem, perdiam ganhando!! (teoria dos prejuízos benéficos)

Aliás, o Governo parece ter-se dado muito bem com essa operação de marketing porque, desde essa altura, e utilizando uma expressão popular, tem sido “sempre a aviar”.

Quero aliás lembrar-vos que quando participaram nas negociações da Agenda 2000 os responsáveis do Ministério já andavam embrulhados em hipotéticas soluções de raiz teórica que, do meu ponto de vista, tolheram completamente a sua acção negociadora.

A CAP fez nessa altura uma proposta detalhada de reforma que a meu ver continua muito válida. Como, por falta de tempo, não a posso descrever aqui com pormenor, aconselho vivamente os presentes a relembrá-la através da leitura do documento que então se apresentou publicamente.

No essencial, o Governo fez aquilo que todos sabemos: disse que sim a todos no plano interno e intimidou-se no plano externo, não se tendo sequer referido às grandes contradições da PAC que afectam especificamente a agricultura portuguesa, tratando-a de uma forma injusta relativamente aos outros parceiros europeus.

Dito isto, vejamos então de uma forma resumida quais são as teorias disponíveis no mercado em matéria de evolução futura da PAC.

As teorias existentes sobre o futuro da PAC

Há essencialmente 3 teorias:

Há, em 1º lugar, os que defendem que se deve acabar com as ajudas e com a PAC o mais depressa possível e liberalizar os mercados.

Entre estes há:

os que defendem que as poupanças daí decorrentes devem servir pura e simplesmente para aliviar o orçamento da UE e a respectiva contribuição dos Estados membros, sobretudo daqueles que mais contribuem;

e os que defendem que o produto dessas poupanças deve ser parcialmente empregue no desenvolvimento rural, querendo com isso significar em outras actividades não agrícolas em meio rural.

Há em 2º lugar, os que defendem, também a liberalização, mas por fases. Dentro destes, há várias facções:

a principal facção, é aquela que defende que a primeira operação a fazer é desligar as ajudas das produções. Isto é, hoje um agricultor recebe um x por cada vaca, por cada ovelha ou por cada ha de uma determinada cultura. No futuro, receberia uma ajuda global só por ser agricultor ou por qualquer outra razão relacionada com outro objectivo social e isto durante um certo número limitado de anos.

Para o cálculo dessa ajuda e para a sua distribuição há várias teorias, ainda que todas elas se pronunciem pelo carácter transitório dessas ajudas.

Entretanto, os agricultores fariam a agricultura que quisessem, sem quotas, desde que fossem competitivos aos preços do mercado mundial.

Finalmente, há uma 3ª família de ideias, à qual pertenço, que parte do princípio de que a agricultura europeia e, por maioria de razão também a portuguesa, tem que continuar a ser defendida do exterior, ou a ser apoiada por ajudas directas ligadas à produção.

Isto não quer dizer que estejamos de acordo com a PAC nem que sejamos conservacionistas e contra tudo o que mude o conteúdo da PAC actual.

Também defendemos como possível e desejável, que lhe sejam aplicados mecanismos correctores que conduzam a uma redistribuirão dos apoios da PAC, mais justa e mais favorável aos nossos interesses e aos interesses do Sul da Europa.

Sempre considerei, antes e durante as últimas negociações da Agenda 2000, que haveria fórmulas de negociação com essa orientação que Portugal deveria ter abordado.

Essas fórmulas, para serem válidas, teriam que ser suportadas, por um lado pelos actuais princípios de base da PAC (unicidade de mercado, preferência comunitária e solidariedade financeira) e, por outro lado, por princípios fundamentais de equilíbrio redistributivo, sem custos adicionais para o orçamento europeu.

Refiro-me essencialmente ao co-financiamento das ajudas directas, modulado em função da prosperidade relativa dos estados membros, sem qualquer prejuízo para os agricultores.

Note-se que estamos a falar de verbas que poderiam facilmente exceder os 10.000 milhões de Euros, isto é a bagatela de cerca de 2000 milhões de contos por ano.

Refiro-me também à utilização do muito dinheiro assim poupado para o apoio aos pequenos agricultores e às culturas mediterrâneas que dispõem de menores protecções.

Refiro-me igualmente à alteração do conceito de região desfavorecida, cujo padrão médio, se fosse europeu com deveria ser, conduziria a uma importante poupança de muitas centenas de milhões de Euros, que poderia ser utilizada em beneficio das regiões com desfavorecimentos estruturais mais acentuados.

Refiro-me também à diferenciação dos prémios de forma a proteger os pequenos agricultores e as produções mais extensivas e mais favoráveis ao ambiente.

Refiro-me finalmente ao imoral, injusto e injustificado, sistema de quotas e de limitações produtivas, que deveria obviamente ser variável em função do grau de desenvolvimento agrícola de cada Estado membro e do seu nível de produção face ao seu consumo interno.

Enfim haveria nesta linha muitas propostas que nos poderiam favorecer significativamente e reequilibrar os apoios da PAC de uma forma mais equitativa.

As propostas de reforma do Senhor Ministro da Agricultura

Há meia dúzia de dias, o Senhor Ministro da Agricultura, à semelhança do que já tinham feito alguns dos seus colegas europeus, também resolveu manifestar a sua simpatia por um destes tipos de reforma e sob a forma de uma proposta, submetê-la à consideração pública.

A proposta agora apresentada é uma reposição da proposta apadrinhada em 1997 pelo então Ministro Gomes da Silva e que, como todos sabemos, não foi apresentada pelo Governo português nas negociações da Agenda 2000. Porquê? Não sei. Ou melhor, julgo saber, mas não digo.

Sempre critiquei, com alguma veemência, a crónica inacção do Governo português em matéria de propostas e iniciativas negociais. Nessas circunstancias não poderia agora deixar de saudar o Senhor Ministro pela iniciativa tomada, ou pelo menos anunciada.

Infelizmente só o posso felicitar pela iniciativa porque pelo conteúdo não posso deixar de o lamentar, como aliás já tinha feito anos atrás quando ela foi apresentada em Vila da Feira.

Nessa altura, lembro-me de ter dito, o que agora repito: “a proposta feita pelo Senhor Ministro, tem ideias boas e ideias realizáveis. O problema é que as boas não são realizáveis e as realizáveis não são boas”.

Continuo de facto a ter fortíssimas objecções, quer quanto à sua praticabilidade, quer sobretudo quanto ao interesse que ela possa ter, para os agricultores portugueses e para o nosso país.

Desde essa altura até agora houve contudo uma coisa que mudou e essa parece-me relevante.

Aumentou o coro e o tom daqueles que se opõem à actual PAC como também aumentou a especulação, o exagero e até, em alguns casos, a manipulação pública, para que essa oposição tenha progressivamente ganho os meios de comunicação social, a opinião pública e, em consequência disso, os políticos e os seus discursos.

Assim, tudo o que de mau se passa na Europa é hoje em dia por culpa da PAC, sem que simultaneamente se ouçam, do outro lado, argumentos sólidos e persistentes em sua defesa.

O que eu penso é que a PAC já tem suficientes coisas más, a necessitar de correcção, para que se tenha que lhe inventar coisas de que ela não tem a culpa e, sobretudo para que se tenha que omitir muitas das coisas boas que ela tem.

O ambiente chega a ser intelectualmente intimidatório. Qualquer mortal que se limite a por em causa a opinião dominante, como tem sido o meu caso, é logo acusado de perigoso retrógrado ao serviço de inconfessáveis interesses.

Sendo assim, cada um fará a sua leitura, a minha é a de que a orientação actual da PAC foi condenada e está a ser diariamente crucificada. É certo que com muita demagogia e oportunismo mas também é certo que a situação não permite a ninguém consciente augurar-lhe uma vida longa.

Os recentes acontecimentos da BSE e da febre aftosa funcionam aliás como potentes aceleradores para o encurtamento da vida da PAC.

Ora, se nos colocarmos nessa perspectiva, qualquer proposta do tipo daquela que o Senhor Ministro agora faz, poderia ser encarada como uma espécie de negócio em que, na eminência de uma falência, um comerciante trespassa a loja por um quarto, ou por um quinto, do seu valor.

O que acontece é que não é nessa perspectiva que o Ministro coloca as coisas. O que é dito no documento que o Senhor Ministro teve a gentileza de me enviar, e que eu agradeço, é uma coisa muito diferente:

Por um lado, é dito que a PAC actual é a origem de todos os males.

Por outro lado, é dito que a proposta só trás benefícios para os agricultores, para o país e para a Europa.

É aliás uma proposta em que se fala dezenas de vezes em ambiente e nunca em rendimentos dos agricultores.

Bem, mas comecemos pela justificação da proposta. Não falo dos objectivos porque esses são sempre óptimos, para os consumidores, para os produtores, pequenos, médios ou grandes. Enfim, o costume.

Na justificação da proposta, é dito que a PAC actual é má para o ambiente e para a qualidade dos produtos e que impede uma racional e eficaz afectação dos recursos.

Quanto a ser má para o ambiente e má para a qualidade, gostava de lembrar várias coisas:

A primeira, é o facto da reforma da PAC de 1992 ter tido uma acção extensificadora que aliás é criticada por muita gente ( até houve muito antes disso um regulamento que premiava a extensificação em geral e que era gerido pelo serviço que eu chefiava em Bruxelas e que Portugal pediu para não aplicar);

A segunda, é que actualmente se consagram à defesa do ambiente agro-rural e à promoção da qualidade dos produtos, somas avultadissimas que aparentemente os Governos não conseguem transformar em instrumentos eficazes;

A terceira, é que a ecocondicionalidade das ajudas europeias já está ao alcance dos Estados membros que aparentemente nada fazem para a aplicar com eficácia;

A quarta, é a circunstancia indesmentivel de que só poderá haver uma agricultura sã do ponto de vista do ambiente com base em explorações economicamente viáveis e não com base em explorações falidas.

A meu ver, ainda que os incentivos públicos sejam importantes, os problemas do ambiente só se podem resolver, com educação, com civismo, com formação e com demonstração e só depois com acções punitivas exemplares.

Por outro lado, gostava de saber como é que um agricultor que hoje vende os seus produtos por um determinado montante, poderá amanhã vendê-los por metade, ao mesmo tempo que extensifica a sua produção.

Para mim, é óbvio que ele, para sobreviver, só poderá intensificar a sua produção, prejudicando assim o ambiente.

Quanto à circunstancia da PAC impedir uma racional e eficaz afectação dos recursos, o documento utiliza dois exemplos.

O primeiro diz textualmente “que um agricultor em vez de tomar uma decisão no sentido de orientar a sua exploração para a produção horto-frutícola, mais vantajosa, quer do ponto de vista das condições existentes, quer do ponto de vista dos preços de mercado, poderá decidir continuar a fazer cereais porque só assim terá acesso à ajuda por ha de culturas arvenses. Deste modo, produz-se um uso ineficiente dos recursos existentes face à procura dos consumidores”.

Trata-se a meu ver de um raciocínio completamente teórico e errado pelas seguintes razões:

Em primeiro lugar, pressupõe que os agricultores são irracionais uma vez que podendo ganhar mais dinheiro não o fazem voluntariamente. Ora os agricultores, apesar de manifestarem evidentes dificuldades em muitos domínios, se há uma coisa que não são é irracionais.

Em segundo lugar, pressupõe que nos sítios e nas condições em que se fazem cereais se poderiam fazer culturas hortícolas e frutícolas, o que, de uma forma geral, não acontece.

Em terceiro lugar pressupõe que a cultura dos cereais tem aumentado ou mantido a sua área quando é exactamente o contrário que se tem passado.

Em quarto lugar, pressupõe que as culturas que deveriam aparentemente ser feitas em substituição dos cereais, seriam mais favoráveis à conservação do ambiente o que é tudo menos verdadeiro.

Finalmente, pressupõe que os consumidores não querem cereais mas a verdade é que são os produtos agrícolas que Portugal mais importa, quer em volume, quer em valor.

O segundo exemplo é, a meu ver, igualmente infeliz. Utiliza o caso de um agricultor que produz carne de bovino com base num sistema intensivo de engorda.

O documento diz textualmente “que o mercado, bem como a preservação do ambiente e da qualidade do produto, poderiam aconselhar esse agricultor a reduzir o número de animais por ha, a reduzir a componente de alimentos concentrados comprados e a aumentar a componente de pastoreio. No entanto, diz ainda o documento do Ministro, o facto desse agricultor receber a ajuda por cabeça de gado induzi-lo-á a tomar a decisão oposta”.

Aqui, parece-me haver, mais uma vez, uma grande confusão. O Ministério da Agricultura tem obviamente obrigação de saber que os prémios aos bovinos de carne estão directamente relacionados com a área forrageira disponível e, consequentemente, com o encabeçamento das explorações.

O encabeçamento máximo é de 2 cabeças par ha forrageiro e, acima desse encabeçamento, as explorações intensivas não poderão receber esse prémio.

Por outro lado, o Ministério também sabe que existe um suplemento de extensificação aos prémios para as explorações consideradas extensivas com encabeçamento inferiores a 1,4 cabeças por ha. Nunca tive conhecimento que o Ministro tivesse defendido em negociações qualquer número inferior a esta densidade.

Finalmente, o Ministério também sabe, até porque o apresentou como uma vitória para a protecção às explorações minifundiárias, que as pequenas explorações, até 15 CN estão isentas destas obrigações ligadas ao factor densidade.

Estes dois exemplos, que são aliás os únicos apresentados pelo Ministério como paradigmáticos da irracionalidade da PAC, são de facto exemplares de como as coisas são sistematicamente apresentadas de uma forma distorcida à opinião pública que, nestas condições, fica obrigada a detestar a PAC.

Já falámos das justificações, vamos agora ao conteúdo da proposta.

Antes de mais uma precisão importante, que eu aliás considero central para a compreensão dos efeitos da proposta do Sr. Ministro: o conceito de ajuda utilizado na proposta é o diferencial entre os preços europeus e os mundiais, sejam eles cobertos pelas chamadas ajudas directas suportadas pelo Orçamento da UE, sejam eles relativos às protecções aos preços europeus, alfandegárias ou outras, suportadas pelos consumidores.

A proposta diz exactamente o seguinte:

Em 1º lugar, acaba o sistema de ajudas actual, quer das ajudas directas, quer das ajudas através da protecção aos preços. Isto quer objectivamente dizer que acabam as ajudas aos bovinos, aos cereais, às oleaginosas, ao azeite, ao tomate, etc., que são directas, mas que também acabam as ajudas ao leite, à beterraba e a outros produtos em que as ajudas são indirectas;

Em 2º lugar, os preços agrícolas passam a ser aqueles que vigorarem no mercado mundial, ao qual ficamos ligados, sem protecções, sem taxas, sem subsídios e sem quotas;

Em 3º lugar, fala-se vagamente de um sistema de estabilização dos preços para proteger os agricultores de um eventual aviltamento excessivo em caso de um grande instabilidade no mercado mundial;

Em 4º lugar, o sistema de ajudas é substituído por um novo em que as ajudas são desligadas da produção e dos produtos (isto é, não terão nada a ver nem com as quantidades produzidas, nem com nenhum tipo específico de produção).

Essas ajudas, como já disse, passam a ser atribuídas segundo três critérios: um critério ambiental; outro de qualidade e outro de emprego;

Em 5º lugar, estabelece-se um sistema de transição, de sete anos (de 2003 a 2011), durante o qual:

No que diz respeito às ajudas directas:

Durante 3 anos, de 2003 a 2006, os agricultores actuais recebem um montante de ajuda igual à média das ajudas directas recebidas entre 1999 e 2001 mas, essas ajudas são moduladas, isto é , são reduzidas, ou penalizadas, segundo regras a definir.

Depois de 2006, a esses agricultores já existentes é-lhes aplicado o novo sistema.

Para os novos agricultores é-lhes desde logo aplicado o novo sistema

No que diz respeito às ajudas implícitas nos preços decorrentes das taxas à importação, dos subsídios à exportação e das quotas;

Elas são mantidas até 2006;

Depois de 2006, elas são eliminadas progressivamente, até 2010.

É preciso dizer que o chamado desligamento das ajudas relativamente à produção é um assunto já com barbas e que tem sido muito discutido na Europa e no mundo.

É um sistema defendido por uns e contestado por outros, designadamente pelos produtores, mas há sobre ele uma conclusão quase unânime: trata-se de um passo de gigante para o desaparecimento total das ajudas.

As consequências das propostas para a agricultura portuguesa

Eu acho que perante esta proposta qualquer agricultor português perceberá o que lhe estaria reservado se a mesma fosse aprovada:

Do meu ponto de vista, os agricultores seriam despedidos a prazo, sem apelo nem agravo, em alguns casos com uma indemnização, noutros casos sem indemnização nenhuma.

Para se ter uma ideia mais precisa, o melhor é dar-vos um exemplo com valores concretos.

Suponhamos um agricultor a quem pomos o nome de Zé para seguir a prática adoptada pelos partidos políticos.

O Zé dispõe de 100 ha, onde faz um terço de trigo, um terço de oleaginosas e um terço de milho e que, para além disso, tem vinte vacas de carne.

Contas redondas, o Zé recebe hoje cerca de 6.500 contos de ajudas directas e vende no mercado, aos preços europeus, cerca de 14.500 contos de produtos. Tem portanto uma receita bruta anual de 21.000 contos.

Se tudo isto fosse feito sem ajudas e ao preço do mercado mundial, a receita bruta do Zé seria menos de metade, mais exactamente, 10.500 contos.

Bem, mas a proposta do Ministro da Agricultura não diz que vai acabar com as ajudas. O que diz é que propõe a sua substituição por outras, desligadas da produção, com base em critérios ambientais, de emprego e de qualidade.

É preciso sublinhar-se, com toda a clareza, que qualquer substituição do actual sistema de ajudas por outro de montante global equivalente, ainda que distribuído de qualquer outra maneira, é impossível. É que o problema não é o modo de distribuição mas sim o montante a distribuir.

Porquê? Porque jamais a União Europeia teria orçamento para lhe fazer face.

É que as chamadas ajudas indirectas, actualmente suportadas pelos consumidores sem passarem pelo orçamento, são muito superiores às ajudas directas, ascendendo a um montante superior ao actual orçamento da PAC (100 biliões de Euros / 40 biliões de Euros).

Sendo assim, há desde logo uma evidencia que ninguém poderá contestar: para se não gastar mais dinheiro do que a PAC já gasta, coisa que certamente não estará nos propósitos do Senhor Ministro, o montante total das ajudas que beneficiam os agricultores europeus actualmente seria de qualquer modo reduzido a pouco mais de um terço, na medida em que quase dois terços desse montante são suportados directamente pelos consumidores.

A supressão proposta das ajudas faria desaparecer o suporte de 100 mil milhões de Euros enquanto que a sua reintrodução, sob outra forma, faria reaparecer apenas 40 mil milhões de Euros!!!

Bem, mas mesmo com essa brutal redução de ajudas, que poria de pantanas a agricultura europeia, não sabemos, nem nós nem aparentemente o Ministro, como seriam aplicadas os critérios de distribuição propostos.

Contudo, tendo em conta o critério emprego, pode deduzir-se que o Zé do meu exemplo não receberia nada uma vez que as suas actividades utilizam pouca mão de obra.

Como os sistemas de cálculo e de distribuição de ajudas na base do emprego são sempre apresentados como uma grande vantagem para Portugal vale a pena termos também em consideração o seguinte:

Em primeiro lugar, esse sistema iria evidentemente favorecer certas actividades mas prejudicar outras, designadamente aquelas que são exercidas pelos agricultores isolados e pela expressiva agricultura a tempo parcial ;

Em segundo lugar vale a pena lembrarmo-nos que, com o alargamento ao Leste, a Europa passará de cerca de 7 milhões de empregos agrícolas para cerca de 17 milhões e que Portugal, que actualmente participa com cerca de 8% para o volume de emprego europeu, verá reduzida essa participação percentual a cerca de 3%.

Tendo em conta o critério ambiente e uma vez que a proposta diz que esse critério tem em vista a dimensão da superfície agrícola nacional de cada Estado membro com particular interesse para a conservação da natureza e da biodiversidade, pressupomos que, no nosso caso, se trata da Rede Natura, no âmbito da qual as reconversões agrícolas são aliás limitadíssimas e os custos de produção serão a prazo muito mais elevados que nas outras zonas.

Suponhamos que o nosso Zé tem a sorte de não fazer agricultura num sitio ambientalmente classificado, nesse caso não receberia nada.

Quanto ao critério qualidade, aí é que entramos mesmo no domínio do desconhecido e eu não me atrevo sequer a imaginar um critério, tal como acontece aliás no documento do senhor Ministro.

Em resumo, o que está reservado ao Zé, são essencialmente duas opções:

Ou ele consegue ser competitivo no âmbito do mercado mundial;

Ou ele abandona a actividade.

Como ele não conseguirá ser competitivo só lhe restará abandonar a actividade e esperar que lhe façam um campo de golfe em cima ou um espaço para desportos radicais, se for numa zona com potencial turístico.

Em suma, o Zé está lixado para não dizer outra coisa que a feliz presença de senhoras me impede de dizer.

E tudo isto por uma razão simples. É que, infelizmente, nós não somos agricolamente competitivos em mercado aberto e sem protecções.

Aliás, para aqueles que duvidam, basta pensarem como é que nós com a agricultura menos desenvolvida da Europa poderíamos ser competitivos.

Como é que nós poderíamos ser competitivos, com os solos e com o clima que temos e com as desvantagens enormes que continuamos a ter:

quer com a nossa estrutura fundiária,

com a nossa investigação praticamente inexistente,

com o nosso sistema de ensino,

com a nossa formação profissional,

com o nosso aparelho de estado,

com os custos dos factores entre os mais caros da Europa??

Se repararmos bem, tudo isto está parado há anos, enquanto que os outros, os nossos concorrentes mais directos, estão permanentemente a progredir e a afastar-se de nós.

Ora o sistema que o senhor Ministro nos propõe só nos seria favorável se daqui a 7 anos nós fossemos capazes de ser competitivos. Do meu ponto de vista, isso não passa de um sonho cor de rosa do senhor Ministro.

Devo esclarecer que eu se fosse inglês ou holandês ou dinamarquês, ou belga, aplaudiria a proposta do senhor Ministro, com ambas as mãos, como eles irão certamente fazer.

Aliás basta ver os países que propõem reformas semelhantes para se perceber a quem essas reformas servem. São exactamente os países com capacidades exportadoras, mais eficazes e agricolamente mais desenvolvidos que propõem reformas idênticas às do senhor Ministro.

Já viram os espanhóis ou os gregos, ou os italianos, propor uma reforma semelhante? Porquê? Não sei. Devem ser parvos!!

Meus amigos, podem crer que o que vai ficar desta proposta é a concordância portuguesa às ajudas desligadas da produção e destinadas a acabar. Tudo o resto é conversa a que os outros países pouco ligarão e, nessa medida, vamos ser seus aliados ainda que com outros propósitos.

É também interessante que a proposta do Ministro sublinhe a dificuldade de se administrar a PAC actual. Pressupondo eu que existe da sua parte o convencimento que a sua proposta seria de muito mais fácil administração tendo em conta que a distribuição de subsídios se faria com base em critérios de ambiente emprego e qualidade. Basta pensarmos um pouco nisso para se perceber que se trata de outro sonho.

Outra questão que eu acho interessante é que a proposta é acompanhada de umas projecções que quantificam o que Portugal e os agricultores poderiam receber se os critérios utilizados fossem os propostos.

Os resultados apresentados fariam aumentar os montantes globais transferidos para Portugal entre 130 e 330% e o rendimento por unidade de trabalho entre 22% e 54%!!

Ora é aqui que os mestres da apresentação dão largas á sua imaginação. Porque das duas uma, ou a proposta se destina exclusivamente para consumo interno, e essa é a minha opinião, ou destina-se a uma negociação verdadeira com os nossos parceiros comunitários.

Na segunda hipótese, que eu acho que é a única que seria séria, não é coragem mas sim uma aventura ridícula apresentar-se uma proposta que reduziria as receitas dos agricultores do país que paga quase tudo, a Alemanha, a pouco mais de 10% do que actualmente recebem (100 x 0,4 x 1/3) e que reduziria as receitas da França e dos agricultores franceses a menos de 20% do que actualmente recebem!!!

Uma coisa é certa e todos nós devemos estar disso conscientes.

A proposta do senhor Ministro é apresentada com muita mestria e vai fazer as delicias dos meios mais inteligentes, mais intelectuais e mais mediáticos da sociedade portuguesa, para além de poder até contar com alguns meios agrícolas mais distraídos e mais permeáveis às aparências do que à realidade.

Haverá evidentemente muitos agricultores que julgam que não recebem ajudas, ou não as recebem mesmo e que vão pensar que as irão receber no futuro.

A proposta até já foi entusiasticamente apoiada pelas autoridades dos Açores que, na minha opinião não perceberam muito bem o que é que poderá acontecer ao leite açoreano se acabarem as ajudas implícitas nos preços e, ainda por cima, se derem conta que os encabeçamentos nos Açores são, em muitos casos, superiores a 2 cabeças por ha.

A proposta vai ser, já está a ser, apoiada pelos média e até pela opinião pública, cansada que está de ouvir dizer que a PAC provoca BSE e febre aftosa.

Ainda que por outras palavras, o Senhor Ministro garante que a sua proposta é contra a BSE e contra a febre aftosa.

Para concluir, eu penso que se trata de uma proposta bem embrulhada num bonito papel colorido, com fitinhas e lacinhos de todas as cores e para todos os gostos. Contudo, lá dentro tem uma granada com a cavilha tirada e de explosão retardada.

Para vos ser sincero até ao fim, o que eu penso é que aquilo que muitos Estados membros e correntes de opinião nos propõem, invocando as mesmas razões do Senhor Ministro, mas também o GATT e o alargamento, é a mesma granada mas sem retardador e nem sequer embrulhada em papel colorido.

A grande questão será então a de se fazer uma escolha. E essa escolha é entre uma antecipação de uma coisa que alguns consideram uma inevitabilidade, com o objectivo de se poderem corrigir alguns dos seus efeitos, e a esperança de se fazer andar para trás o que agora nos parece ser uma inevitabilidade face ao poder da corrente dominante da qual discordamos.

No que me respeita, ainda que reconhecendo os riscos de uma tal opção, a minha percepção da agricultura portuguesa impede-me de aceitar a teoria do mal menor e obriga-me a acreditar na possibilidade de se reencontrar uma sensatez que faça andar para trás a tendência actual, cuja força sou também obrigado a reconhecer.

Para que tudo não pareça uma amálgama de contradições, devo acrescentar, no entanto, que uma coisa é acreditarmos numa solução e batermo-nos para que ela prevaleça, outra coisa é reconhecermos as dificuldades para que tal venha a acontecer, e outra coisa ainda é a obrigação que temos de trabalhar num cenário que não nos agrada, para, por um lado, revelarmos as suas previsíveis contradições enquanto ele se não concretiza e, por outro lado, contribuirmos para a minimização dessas consequências, no caso do mesmo se concretizar.

Meus amigos, pensem no assunto. Se acharem que eu não tenho razão chamem-me, agora ou noutra altura, os nomes todos que vos apetecer. Contudo, se acharem que eu tenho razão, só têm uma saída que é aliás muito estreita: mobilizem-se; organizem-se; pronunciem-se; manifestem a vossa discordância.

Se não o fizermos e continuarmos egoístas, a olhar para os nossos umbigos, tornar-nos-emos objectivamente co-responsáveis de tudo o que vier a acontecer à agricultura portuguesa no futuro.

Armando Sevinate Pinto
(Eng.º Agrónomo)

(*) – Comunicação apresentada pelo autor, em17 de Maio de 2001, no
V CONGRESSO NACIONAL DE AGRICULTURA – “ O Agricultor na Sociedade do III Milénio”
PAINEL III – A Previsível Evolução da PAC e os Interesses Nacionais.


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