joao correia

A rã na panela (que já está a ferver) – João Correia

Não tenhamos ilusões quanto ao facto de que travar as emissões de carbono para a atmosfera vai requerer sacrifícios pesados a um segmento da humanidade cuja maior dificuldade que enfrentou nos últimos anos foi prescindir dos sacos de plástico descartáveis e passar a usar palhinhas de papel.

Está quase a completar-se um ano desde a publicação do artigo “A rã na panela”, que me valeu o muito simpático convite para ser orador na Conferência de Natal Ciência Viva. Quase de 52 greves de Greta à sexta-feira depois, tivemos a (recente) Conferência dos Oceanos promovida pelas Nações Unidas em Lisboa, durante a qual quase sete mil delegados debateram formas de proteger os oceanos, que são o coração da máquina que regula o clima do planeta. Adorava dizer que foram feitos enormes progressos durante esta última volta ao Sol, mas todos sabemos que o nariz me iria crescer até derrubar o monitor de computador que tenho à frente.

Sou o primeiro a admitir que, nesta matéria, oscilo entre o optimismo moderado e o pessimismo exacerbado. Por um lado, vemos soluções tecnologicamente cada vez mais avançadas no domínio do hidrogénio, que se afirma progressivamente como a solução mais robusta no combate à nossa colossal pegada de carbono. Curiosamente, é a China que lidera esse processo, enquanto a América do Norte continua teimosamente agarrada à queima de combustíveis fósseis.

Por outro lado, à beira de chegarmos ao quarto deste século ainda temos um coro de vozes que clamam que nada disto merece a relevância que os “cientistas” lhe dão porque se tratam, afinal de contas, de fenómenos cíclicos e as últimas ondas de calor que assolaram o nosso continente não são, de forma alguma, as primeiras que enfrentámos. Mas muitas das metas recentemente ultrapassadas, como no Reino Unido, foram efectivamente inéditas, como os 40 graus que esta ilha – sem ares condicionados – saboreou pela primeira vez e múltiplos outros recordes.

Como explicar a estas almas que uma concentração de dióxido de carbono na atmosfera superior a 410 ppm (partes por milhão) é algo que nunca ocorreu nas dezenas de milhares de anos ao longo dos quais a nossa espécie tem percorrido os montes, vales e planícies deste planeta? Mas será assim tão difícil aceitar a correlação entre esse aumento de 47% no último século e o efeito acumulado da actividade industrial da espécie humana? Como pode uma mente com o mínimo de lucidez achar que as duas coisas são uma coincidência?

Proponho um teste simples: deixem um carro a trabalhar no interior da garagem do vosso prédio durante dez minutos e digam se o ambiente fica agradável. Agora imaginem mil e quinhentos milhões de carros, camiões, aviões, navios, fábricas e motores de combustão variados a trabalharem há 150 anos. Para onde foram esses gases?

E que dizer aos teimosos que pintam essa mesma actividade cíclica histórica como negligenciável, face à grandiosidade da natureza? Talvez os devamos lembrar que os clorofluorcarbonetos (CFC) que tínhamos nos sprays desodorizantes, lacas e afins abriram um buraco épico na camada de ozono em poucas décadas. Podíamos ainda lembrar que as frotas de pesca industrial do planeta provocaram reduções nos principais stocks de peixes em muitos casos na ordem dos 80% (ou mais), como é o caso dos atuns, espadarte, bacalhau e tubarões. E não esqueçamos a percentagem da imensa floresta amazónica que já foi perdida, particularmente no reinado bolsonarista, com relatos mais austeros a falarem em 17%.

Então tentemos raciocinar um pouco: se ninguém duvida dos efeitos perturbadores – à escala planetária – anteriores, que estão mais do que documentados e à vista da miopia mais traiçoeira, como é que alguém ainda tem coragem de afirmar que um século e meio a retirar carbono que esteve alojado na crosta terrestre e a mandá-lo para uma atmosfera finíssima não tem impacto nenhum num sistema tão delicado como o que regula o clima terrestre?

Proponho um teste simples: deixem um carro a trabalhar no interior da garagem […]

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