Henrique Pereira dos Santos

A responsabilidade do jornalismo nos próximos grandes fogos – Henrique Pereira dos Santos

A propósito do meu post anterior, tive uma conversa agradável e muito civilizada com uma jornalista que o leu, tanto mais que habitualmente escreve sobre gestão florestal e afins.

Essa conversa é o ponto de partida para o desenvolvimento de um assunto que já estava no meu post anterior: a responsabilidade do jornalismo nos fogos.

O padrão geral de fogos que temos, isto é, fogos relativamente pouco frequentes, extensos, contínuos e intensos, é um padrão de fogo que causa impactos diferentes do padrão de fogo que tínhamos até à segunda metade do século XX, isto é, fogos muito frequentes, em mosaico e de baixa intensidade. Note-se que sempre houve grandes fogos, em situações meteorológicas excepcionais, mas, provavelmente, não com a mesma extensão e com tempos de retorno de doze a quinze anos como temos hoje.

Se o padrão de fogo dominante nas últimas centenas de anos, até à segunda metade do século XX, tinha um efeito de depauperamento dos solos das terras marginais e simplificação dos sistemas naturais, o padrão de fogo actualmente dominante, embora mais favorável para a regeneração dos solos e a recuperação dos sistemas naturais, tem custos muito elevados em perdas económicas (directas e indirectas), destruição de infraestruturas e vidas humanas.

Na base da alteração deste padrão de fogo estão razões sociais e económicas que se traduzem numa gestão das terras marginais muitíssimo menos intensa (em largas áreas, puro abandono de gestão), o que permite a acumulação e continuidade de combustíveis finos (ervas, folhas, raminhos, cascas, manta morta, tudo coisas com menos de 6mm de diâmetro, que é o que permite a progressão das chamas na frente de fogo, ou com menos de 2,5 cm de diâmetro, que é o que permite a irradiação de energia que vai alimentando o incêndio, com a ajuda de alguns combustiveis de maior calibre).

E porque é a estrutura e quantidade dos combustíveis que define o comportamento do fogo – o fogo é um produto do seu contexto, controlar o contexto é controlar o fogo, perder o controlo do contexto é perder o controlo do fogo -, sobretudo nas condições meteorológicas extremas em que ocorrem os grandes fogos, é essencialmente irrelevante a discussão sobre as espécies que temos no nosso território, sobre ignições, sobre estrutura de propriedade, sobre aviões, meios de combate, corporações de bombeiros, etc..

O que está escrito acima não são opiniões minhas, são factos demonstráveis e verificáveis, havendo dezenas de artigos científicos que o fundamentam.

Pois bem, qual tem sido a opção dominante do jornalismo (gostaria de deixar claro que não quero fazer generalizações injustas, o que vou escrever diz respeito ao que é dominante na paisagem jornalística, não inclui as excepções e os imensos tons de cinzento que existem entre o branco e o preto)?

Falar de fogo posto, com base em testemunhos da treta, como se não houvesse um registo diário de ignições que permite perceber que todos os dias há ignições, mas só em cerca de 12 dias num ano é que dão origem a fogos relevantes. E, nesses dias, a discussão sobre a ignição concreta que deu origem a um fogo de milhares de hectares é irrelevante, porque se não fosse essa, era outra mais ao lado.

Fazer reportagens na frente de fogo, falando com bombeiros e populações, como se fosse a frente de fogo o sítio mais adequado para pensar racionalmente sobre a gestão do fogo.

Ouvir uma quantidade inacreditável de alucinados, a maior parte dos quais sem qualquer curriculum profissional relacionado com ecologia do fogo e com gestão de fogo, sobre a relação entre eucaliptos e fogos (existe consenso científico sobre o assunto, mas é o que está acima: a estrutura e quantidade de combustíveis é o que interessa, a espécie dominante interessa pouco para a discussão sobre a gestão do fogo).

Dar espaço e publicidade a teorias conspirativas várias sobre o preço da madeira – sim, há uma discussão séria a fazer sobre a eficiência e a transparência do mercado das madeiras e, dentro deste, da rolaria de eucalipto, em que a existência de um duopsónio nos deve levar a ter alguma cautela na avaliação da existência, ou não, de posições dominantes que se traduzam na manipulação dos mercados – em vez de discutir seriamente o assunto investigando os factos.

Fascinar-se, permanentemente, com planos, estratégias, decisões futuras que um dia vão resolver problemas como a atomização da propriedade – francamente, o problema da propriedade é só um sintoma da ausência do seu valor, não é por uma coisa sem valor mudar de dono que passa a ter valor -, a falta de ordenamento – muito gosta o jornalismo português de metafísica – e outros problemas intangíveis e sem qualquer utilidade prática.

E, mais que tudo, o julgamento moral permanente dos malandros do proprietários que, estúpidos, têm minas de diamantes nas suas mãos mas insistem em ficar mais pobres que ricos.

Meus caros jornalistas, o país, a manter-se o rumo actual, vai ter fogos trágicos ali por 2030, mais ano, menos ano, mas escusam de fugir da vossa responsabilidade: a forma como olham para o assunto, as pessoas que escolhem ouvir, a verificação de factos que fazem, a ideologia que contrabandeiam disfarçada de conhecimento técnico, é um dos principais problemas da gestão florestal do país.

E dessa responsabilidade não podem fugir, é vossa e só vossa.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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