
Na discussão de políticas públicas há assim uma espécie de santo e senha que se tem de aceitar, para que a coisa siga normalmente em relação a alguns assuntos.
Um dos bons exemplos é o que hoje trata João Miguel Tavares, é-se obrigado a aceitar, sem contestação, que não há vida para lá da defesa da escola pública, liquidando, mediaticamente, qualquer político que resolva dizer que é o acesso público que importa discutir, não o dono das paredes da escola.
O mesmo se poderá dizer da dificuldade que terá um político que resolva dizer, com razão, que a saúde é um negócio, independentemente das nossas opiniões sobre o negócio e o acesso universal aos cuidados de saúde.
O mais curioso é que a saúde já foi um negócio muito mais pequeno do que é hoje, não porque houvesse menos doentes, claro, mas porque havia menos médicos, enfermeiros e tudo o resto.
Naquele tempo, os muito ricos poderiam recorrer aos poucos médicos existentes e a esmagadora maioria dos que precisavam de cuidados de saúde recorriam ao que podiam, fossem feiticeiros, bruxos, vizinhos ou, o que era mais frequente, às instituições filantrópicas ou de caridade (apesar do mau nome que foi sendo criado à custa da crítica à “caridadezinha”, para um cristão “a caridade passa sempre pelo respeito do próximo e da sua consciência”, sendo essa a base da extensão da acção social de muitas igrejas, no nosso caso, a católica).
As razões pelas quais havia poucos médicos é simples de explicar: o conhecimento sobre nós e o nosso corpo era, em muitos aspectos limitado e o mercado, isto é, o conjunto de pessoas com vontade e recursos para pagar serviços de saúde de elevada diferenciação, era igualmente limitado.
O resultado deste modelo de saúde, que não pretende ser um negócio, é a existência de poucos recursos para o desenvolvimento dos cuidados de saúde, e uma legião de cuidadores de primeira linha (de parteiras a simples apoio logístico) assente esmagadoramente em religiososos que dedicam a sua vida ao cuidado dos outros.
Se a profissão de médico tem a sua origem muito atrás no tempo, o reconhecimento da enfermagem como uma profissão especializada é relativamente recente: só em 1860 Florence Nightingale funda a primeira escola não religiosa de enfermagem.
De resto, em Portugal, no princípio do século XX, terá havido uma discussão interessante entre os jacobinos que queriam afastar as religiosas do trabalho de enfermagem, profissionalizando-o, e os que defendiam que o carácter voluntário dos cuidados a prestar os tornava mais humanos (é Pedro Almeida Vieira que me chama a atenção para a similitude entre esta discussão e a discussão sobre o voluntariado e profissionalização no combate ao fogo florestal).
Quando a sociedade assume que a filantropia não é suficiente para garantir um acesso universal a cuidados de saúde, entrega ao Estado a responsabilidade de assegurar que todos os que precisam têm acesso a cuidados de saúde, alargando enormemente o mercado de cuidados de saúde ao determinar que o Estado deve assumir os custos desses cuidados, quando as pessoas não têm recursos para isso.
Claro que nisto tudo há uma imensa evolução de conhecimento e tecnologia que altera toda a relação que temos com a medicina, às vezes até por caminhos muito estranhos: hoje temos uma quantidade enorme de gente a defender o direito absoluto do indivíduo sobre o corpo de cada um, a propósito do aborto ou da mudança de sexo, ao mesmo tempo que temos muita gente, os mesmos ou outros, a dizer que é inaceitável que sejam as mulheres a decidir livremente se preferem fazer cesarianas ou ter partos como sempre se fizeram.
Os partos sempre foram um momento de risco elevado para as mães e os bebés (para estes, o risco elevado mantinha-se durante um ano ou dois), lembrando-nos de que a civilização é a luta constante que travamos contra a natureza.
Neste caso, travamos uma guerra sem quartel contra a mortalidade relacionada com os partos e a primeira infância, para a qual convocamos a profissionalização dos que assistem os partos e acompanham as crianças, a artificialização através da medicalização e hospitalização de um processo natural e a panóplia tecnológica, incluindo farmacêutica, que hoje rodeiam o nascimento de crianças.
Pretender que tudo isto se faz melhor voltando ao voluntariado e ausência de mercado, apenas substituindo a filantropia pelo Estado, não faz qualquer sentido para mim, o mercado, isto é, o ponto de encontro entre quem procura e quem oferece, é incomparavelmente mais eficiente a produzir soluções para os problemas de cada um.
O que cabe ao Estado é, o que já não é pouco, assegurar que esse mercado funciona tão bem quanto possível, e que ninguém fica para trás por falta de recursos.
Sim, a saúde é um negócio, um negócio crescente, e ainda bem.
As políticas públicas de saúde deveriam partir desta ideia base, e não da tolice, nunca demonstrada, de que a saúde não pode ser um negócio para que seja possível garantir cuidados de saúde adequados para todos.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.