A última gota

A sul do Tejo, há duas barragens em risco de secar até 2024. Campilhas, em Santiago do Cacém, é uma desgraça iminente, alertam os produtores de arroz da região. Uns falam em desistir, outros em ir buscar água ao Alqueva. Ana Gonçalves, autarca de São Domingos, diz que é preciso pensar “noutras culturas que não sejam de regadio”. No Algarve, a albufeira Bravura vive também dias de escassez. Há pomares a secar e falhas no abastecimento. Em Odiáxere, algumas famílias que dependem de garrafões para ter água em casa. São necessárias mudanças políticas – mas também de mentalidade. O tempo da abundância evaporou.

Joaquim Sobral tinha sete anos quando a barragem de Campilhas foi inaugurada. “Foi no ano em que entrei para a escola”, recorda, com um sorriso sarcástico no canto da boca. O produtor de arroz do Vale do Sado – na época, uma criança – não esteve presente na cerimónia. Lembra-se, em todo o caso, de ouvir à noite “na telefonia” o discurso do então Presidente da República, Francisco Craveiro Lopes.

Corria o ano de 1954, e Salazar tinha em curso um plano de expansão da reserva hidrográfica (e, por corolário, da rede energética) no país – cujas marcas são visíveis ainda em 2022. Das 263 barragens que existem em Portugal, a maioria foi construída no período do Estado Novo; desde o ano de 2000, foram erigidas apenas 65 barragens, de acordo com dados da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).

O reservatório de Campilhas, com mais de 26 milhões de metros cúbicos de capacidade útil, plantado no concelho de Santiago do Cacém, iria ter como propósito o abastecimento de água para consumo e rega. E assim foi durante quase sete décadas.

Graças à (nova) abundância de água, as culturas agrícolas na região mudaram: trocou-se o comum trigo – favorável ao sequeiro alentejano – pelo bem mais valioso arroz. A barragem tornou-se um local de veraneio; nos dias mais quentes de verão, muitas pessoas passaram a fazer piqueniques nas margens, dar mergulhos.

Agora, o cenário mudou. Campilhas é uma tragédia iminente; o espelho de água minguou e assemelha-se a uma banheira praticamente vazia, cujo ralo alguém se esqueceu de tapar; dá a impressão que, sem grande esforço, pode ser atravessado a pé. Os antigos volumes que a barragem costumava abarcar estão bem delineados, visíveis a olho nu, no perímetro da albufeira.

De acordo com o Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos, a Campilhas está a 3% da capacidade – o pior registo ao nível nacional. E se pouco ou nada chover e se nada for feito para combater a seca, será mesmo uma das quatro albufeiras que podem ficar sem água, até 2024, tendo em conta um modelo matemático elaborado pela Renascença.

Também a sul do Tejo, a barragem de Bravura, no concelho de Lagos, está a 9% da capacidade. Já a norte, a albufeira do Alto-Lindoso – uma das sete maiores ao nível nacional – encontra-se a 19%, enquanto a de Alto Rabagão, na localidade de Pisões, a 20%.

O prognóstico para Campilhas não surpreende Joaquim, que desde 1974 se dedica à plantação de arroz. “É tal e qual o senhor ir a conduzir uma motorizada e entrar na reserva. Já sabe que vai andar 50 quilómetros e depois vai acabar. Com a água da barragem é o mesmo”, diz.

Luís Guerreiro, 62 anos, também produtor de arroz da região, segue a conversa. E consegue ser ainda menos otimista: “Não é daqui a dois anos, é já.”

À sua volta, os dois homens têm hectares de provas de que não estão a ser catastrofistas. Basta olhar: a maioria dos campos de arroz não foram cultivados este ano.

A “estupidez” do Alqueva

Os arrozais de Campilhas fazem parte da conhecida Rota Vicentina; são um marco turístico de quem circula rumo ao Algarve. Poucas pessoas imaginam, no entanto, que se este ano ainda há alguns campos verdes naquele lugar, tal se deve a uma albufeira situada a mais de 130 quilómetros de distância, não muito longe da fronteira com Espanha: o Alqueva. “Vê-se logo que é uma estupidez muito grande, não é?”, atira Joaquim.

Em 2018, o agricultor ainda conseguiu cultivar os mais de 400 hectares de arroz que administra. Campilhas tinha já pouca água, mas ainda dava para os agricultores da região. A pequena barragem de Fonte Serne – com uma capacidade de pouco mais de 5 milhões de metros cúbicos -, também situada no concelho de Santiago do Cacém e inaugurada em 1976, ajudou.

Nos últimos dois anos, todavia, a escassez de água agravou-se. Continuar a plantar implicou um esforço financeiro. “Isto é só para ir passeando. Regar cada hectare [com água do Alqueva] custa uma média de 600 euros. Onde antes pagava 27, 28 mil euros por água, agora é muito mais. Em 2021, foram 73 mil euros”, revela.

Este ano, Joaquim apenas conseguiu plantar cerca de 135 hectares, dos quais “70% estão a ser regados com água vinda do Alqueva” – adquirida por intermédio da Associação de Regantes de Campilhas e Alto Sado (ARBCAS).

Não por acaso, a ARBCAS tem vindo defender a criação de uma ligação do Alqueva a Campilhas para fins de abastecimento, algo que já acontece com a barragem de Fonte Serne. Em agosto, em declarações ao “Público”, Álvaro Beijinha, autarca de Santiago do Cacém, admitiu que tal solução era uma “possibilidade”. (Vários municípios do Alentejo e Algarve estão a explorar ideias semelhantes; desde março de 2022, parte da água consumida na zona industrial de Sines vem do Alqueva.)

Há poucos meses, a associação de regantes fez saber que a Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva, S.A. (EDIA), entidade responsável pela gestão da maior albufeira do país, está a desenvolver para o Ministério da Agricultura um estudo de âmbito nacional, “tendo em vista o levantamento das necessidades de investimento e do potencial de desenvolvimento do regadio coletivo eficiente”, para a região do Vale do Sado.

Desistir de mudar

A boa-nova da ARBCAS demorará a chegar. Porventura, chegará até já demasiado tarde para Joaquim Sobral. “Vou sair do mercado este ano. Estou pronto a desistir”, diz o homem, a contragosto, como se as palavras lhe custassem a sair da boca.

O produtor de arroz afirma em voz alta aquilo de que parece querer mentalizar-se: não há alternativa. “Já tenho uma idade avançada. E os industriais do arroz todos os anos lutam para ficarem com o nosso produto pelo menor preço. A nós ninguém nos dá nada. Fico com animais”, explica. […]

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