Francisco Gomes da Silva

Agricultura e Covid-19: de uma prova de vida à fraqueza política

Vivemos hoje tempos de exceção, caraterizados por enorme incerteza e insegurança. Como em todas as crises, o mais importante na sua refrega é procurarmos extrair delas conhecimento que nos torne melhores e mais bem preparados como Homens, como Organizações e como Sociedade. E é isto, certamente, o que acontecerá.

No meio desta crise, fui desafiado, há dias, para uma conversa com o Miguel Freitas e o Pedro Santos moderada pelo Joaquim Pedro Torres (já divulgada na newsletter da Agroglobal). Essa conversa motivou-me a uma breve reflexão sobre a Agricultura, enquanto atividade económica, e sobre os seus atores (agricultores, seus fornecedores, clientes, parceiros e instituições) e o que esta crise pode, para todos eles, significar. É dessa reflexão, dispersa, sobre diferentes aspetos que então me vieram à cabeça, e cheio de dúvidas, que vos dou conta.

1. Os agricultores não param – porquê?

Se as nossas cidades, hoje fechadas em casa (e muito bem), conseguissem espreitar por cima do muro do medo para o que se passa no campo, não iam acreditar. Por estes dias, de norte a sul do país, a agricultura está a mexer “como se não houvesse amanhã”. Com cuidados redobrados por causa dos riscos de transmissão do vírus, com receios justificados pelos riscos em que incorrem… mas a mexer. Alguém, menos familiarizado com as lides do campo, me perguntava “porquê?”. Quem é agricultor sabe bem as duas respostas que saltam imediatamente.

Primeiro porque não podem parar. Para a maioria dos agricultores parar dois ou três meses nesta altura do ano, significaria um rombo económico de que dificilmente se recomporiam. Nas fileiras das frutas, das hortícolas e hortoindustriais, da carne, do leite, do olival, da vinha, dos cereais, do milho, do arroz, da cortiça…, em todas elas estes próximos 2 ou 3 meses são meses essenciais, e cada agricultor sabe-o bem. Assim como o sabe a esmagadora maioria dos trabalhadores agrícolas. Parar é um luxo a que não se podem dar.

Mas há uma segunda razão que escapa, em tempos normais, ao comum dos mortais: os agricultores sabem perfeitamente que são a base de toda a cadeia de abastecimento alimentar que abastece a nossa sociedade. Isso é assim em tempos de bonança (quando são olimpicamente ignorados ou maltratados por muita da opinião publicada), mas também é assim (ou ainda é mais assim) nos tempos de tempestade como aqueles que agora atravessamos. E sim, é com receio (por vezes mesmo com medo) que, diariamente, milhares de agricultores, de trabalhadores agrícolas e de técnicos continuam a sair de casa para mais um dia de trabalho, conscientes que deles depende haver comida para aqueles que estão (e muito bem, repito) fechados em casa para travar esta pandemia.

Não perdi ainda a esperança de ver a sociedade portuguesa ter uma palavra formal de agradecimento a estes homens e mulheres que contribuem para que seja verdadeira a afirmação, tantas vezes difundida, de que “as cadeias de abastecimento de alimentos estão asseguradas”. Tal como tem tido (e muito bem) para com os médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, polícias, motoristas e tantos outros. Aguardemos pois.

2. O renovado desafio da segurança alimentar (food availability)

Este era, até há poucas semanas, um problema dos países pobres, e não um problema do mundo ocidental dito civilizado. Agora é um problema de todos. Esta crise irá reabrir, em força, a discussão sobre a segurança alimentar em Portugal e na Europa. Contra o que sempre se admitiu como plausível, as fronteiras fecharam, total ou parcialmente, durante um período que ninguém sabe ao certo quanto tempo durará. A circulação de mercadorias, nomeadamente de alimentos ou matérias-primas alimentares, vai encontrar novas barreiras ao longo destes dias. Como reagirão, no final, os diversos países da Europa? E como reagirá a Europa face ao resto do mundo, e o resto do mundo face à Europa? Esta questão é, aliás, muito relevante em relação a outros produtos, como se viu com algum material e equipamento médico.

Não tenho nenhuma resposta, mas tenho sério receio que esta crise vá acentuar as tendências “nacionalistas” nestes diversos domínios, criando-se a falsa sensação de que se estivermos todos fechados no “nosso quintal”, num regime de pseudo-autossuficiência, estaremos mais protegidos. Mas as questões da “food availability” terão que ser seriamente reequacionadas: o que deverá ser a “reserva alimentar estratégica”, qual o papel dos ativos agrícolas localizados em solo nacional, como poderão ser mobilizados? E as respostas terão que ser inovadoras, para se fugir à tentação de um “planeamento centralizado” da produção de alimentos. E aí, uma vez mais, os agricultores portugueses serão uma peça chave para a solução.

3. A crise e os preços dos produtos agrícolas

Outros poderão responder melhor a esta questão. Mas partindo do princípio que o pós-crise se caraterizará, ao nível das relações e acordos de comércio internacional, pelo regresso à situação “normal”, os preços dos produtos agrícolas observarão um comportamento a vários tempos.

Um primeiro impacto, que já se faz sentir em casos muito concretos, é a enorme quebra nos preços dos produtos que eram diretamente escoados pelo canal HORECA. Com o encerramento de muitos restaurantes, a procura de certos produtos caiu estrondosamente. Veja-se o que se estará certamente a passar com os “leitões” que eram escoados para os restaurantes de zonas como a Bairrada e outras. Este fenómeno é já uma realidade em muitos produtos frescos, com escoamento quase exclusivo neste tipo de canal. De igual modo, alguns produtores que abasteciam diretamente pequenas indústrias artesanais que encerraram por estes dias (queijarias, etc…) viram, de um momento para o outro, o seu mercado desaparecer e o seu produto “valer zero”. Em ambos os exemplos dados, com uma agravante: sendo produtos de origem animal, todos os custos (de alimentação e maneio) permanecem e permanecerão ao longo do tempo.

Por outro lado, com um ligeiro desfasamento, e em resposta à quebra de rendimento que inevitavelmente existirá nas famílias a nível mundial (apesar de todos os esforços que os governos estão a fazer para apoiar famílias e empresas), e nas portuguesas em particular, é natural que se observe uma retração na procura maior do que a correspondente retração na oferta (esta porque algumas empresas agrícolas ou de transformação verão, também, seriamente afetado o seu potencial produtivo), o que tenderá a pressionar os preços das matérias-primas agrícolas para baixo. Esta quebra será, no entanto, amparada pela relativa rigidez da procura de alimentos, enquanto bens de primeira necessidade.

Num momento seguinte, a evolução poderá ser diferenciada de produto para produto. Se as fronteiras permanecerem pouco permeáveis durante muito tempo (porque a crise se prolonga ou porque os países se fecham), tenderá a assistir-se a uma subida dos preços dos produtos para os quais Portugal é país importador (em que a oferta interna é insuficiente para satisfazer o consumo), e a uma quebra de preços dos produtos para os quais Portugal é um país exportador.
A médio-prazo, tudo dependerá muito da “nova normalidade” que venha a ser criada em matéria de relações comerciais, nacionais e internacionais, ao longo das cadeias de abastecimento alimentar. E nesse domínio, como noutros, certamente que muitas coisas irão mudar. Assumirão mais peso as chamadas “cadeias curtas de distribuição”? Não poderá ser isso também uma arma que alguns utilizarão para tentar “fechar” as economias? Saberemos resistir à tentação das soluções simplistas de curto-prazo que se mostrarão impotentes para lidar com estas realidades complexas?
Uma última nota sobre os preços de produtos agrícolas neste contexto. Poderá assistir-se, no curtíssimo prazo, a movimentos especulativos com impactos nos preços de alguns produtos alimentares, provocados por cenários de pânico e ansiedade que levam a picos irracionais de procura. Quando tal acontece, esses aumentos de preço raramente estão associados a aumentos nos preços dos produtos agrícolas, ocorrendo normalmente junto da distribuição final.

4. Dificuldades para os meses que se avizinham

As dificuldades para os agricultores, ao longo dos próximos meses, vão ser inúmeras. Se é verdade que, como acima referia, os agricultores não pararam, não é menos verdade que, para não virem a parar mais à frente dependem daquela que vier a ser a circunstância dos seus fornecedores (sementes, plantas, adubos, agroquímicos, material de rega, prestadores de serviços diversos, etc…) e dos seus clientes.

Esta dependência absoluta introduz uma enorme incerteza: um agricultor que esteja hoje a preparar terra para plantar, por exemplo, tomate está a contar (ou pelo menos a esperar) poder, ao longo do ciclo, adquirir tudo aquilo de que necessita para a condução da cultura. E conta igualmente que, mais à frente, as indústrias com quem contratou a produção esteja aberta, a laborar e, consequentemente, a receber tomate.

E se assim não for? Esta garantia ninguém a pode dar ao agricultor. Não tenho dúvida que todos os agentes envolvidos nas cadeias alimentares tudo farão para manter o seu “normal” funcionamento, mas os agricultores estão bem conscientes de que nem tudo depende da vontade individual. Esta é, para mim, a maior dificuldade para os próximos meses: avançar dia-a-dia sem ter a certeza do que é que se vai encontrar no dia seguinte.

Note-se que, como seria de esperar, existem já hoje óbvias dificuldades na circulação de mercadorias vindas de fora, havendo a tentação de apenas deixar circular os bens “ditos essenciais”. Pergunto: será que as autoridades competentes têm (ou virão a ter) a noção de que um cardan pode ser uma peça essencial para que uma exploração agrícola não pare?

Para tudo isto, necessitaríamos de um Ministério da Agricultura forte, muito informado e atuante que liderasse o acautelar de diversas situações que, sem dúvida, se colocarão a cada dia que passa. Não se avizinham tempos nada fáceis.

5. Que medidas, para além das que já foram anunciadas?

Foram já anunciadas diversas medidas pelo Governo que visam apoiar as empresas (e as famílias) a atravessar esta crise minimizando os danos. Algumas dessas medidas dirigem-se especificamente ao setor agrícola, tais como a dilação de prazos (execução de projetos PDR, número e prazos para pedidos de pagamento, candidatura ao PU, etc…) e a antecipação de pagamentos oriundos da PAC. Tudo medidas positivas e, a seu tempo se verá, se suficientes ou não.

Há, no entanto, uma medida que estranho que não seja tomada de imediato: a derrogação de todos os compromissos assumidos pelos agricultores em matéria de condicionalidade, de Greening e de medidas agroambientais, sem penalização nos valores a receber por cada agricultor. Poderão dizer-me que este tipo de medidas introduzem um grau de facilitismo que pode gerar oportunismo. E então? É esse o maior problema com que nos confrontamos hoje?

Só quem tenha a mínima noção do que é a vida dos agricultores é que conseguirá perceber o enorme conjunto de constrangimentos que estes compromissos causam no seu dia-a-dia. Em tempos normais, esses constrangimentos são ultrapassados, graças à disponibilidade física, mental e financeira que carateriza essa normalidade.

No meio da situação que vivemos hoje, seria do mais elementar bom senso libertar os agricultores destas amarras, e deixar que cada um se concentre naquilo que é verdadeiramente essencial: manter as suas explorações em funcionamento, concentrar-se nas produções essenciais, relegando ao acessório (como por exemplo, a regra da diversificação de culturas para cumprimento do Greening, a burocracia associada ao modo de produção integrada, etc…). Dir-me-ão que tal medida depende de autorização de Bruxelas. Certo. E então? Já foi pedida essa autorização? E alguém acredita que Bruxelas não autorizará?

Se quem decide não conseguir entender o quanto esta carga burocrática consome recursos numa exploração agrícola, estamos todos muito mal governados. Haja esperança que tal seja possível.

6. O (não) peso político do Ministério da Agricultura e das suas instituições

A Agricultura é, neste Governo, um peso-pluma. Para quem tivesse alguma dúvida, basta ler o texto da Resolução do Conselho de Ministros do passado dia 19 de Março (pós-declaração de estado de emergência). Sim, porque é no Conselho de Ministros que melhor se mede a relação de forças que existe entre os diversos Ministros que o compõem. Nesta RCM nem uma palavra sobre a Agricultura (apenas uma referência ao comércio a retalho de flores, sementes e adubos), apesar de muitos outros setores de atividade merecerem referências específicas e repetidas no mesmo texto. Nem uma remissão para a responsabilidade da Ministra da Agricultura em matéria de definições futuras, enquanto diversos dos seus colegas (por exemplo, o Ministro da Economia) receberam (e bem) incumbências dignas de realce.

O grave de tudo isto, e sem prejuízo das medidas que foram e que venham a ser tomadas em apoio do tecido empresarial agrícola, é que a Ministra, se teve a noção da importância da agricultura naquele momento, não teve força nem peso político para gravar nessa RCM a especificidade de tratamento que terá forçosamente que ser dada a um setor vital para a segurança alimentar das populações, em tempos de crise como os que vivemos. Veja-se, por oposição, o texto “homólogo” que foi aprovado pelo Conselho de Ministros em França.

Dir-me-ão que, dois dias depois, a mão foi emendada, e que na legislação aprovada (Decreto do Governo) já há uma referência à necessidade de se manter a atividade de produção de alimentos. Pois…não faltaria que alguém não desse pela coisa. Porventura até foi a própria Ministra. Mas depois, não na primeira linha de decisão. E, sim, a garantia de alimentos é uma necessidade “de primeira linha”.

Um mal, nesta matéria, nunca vem só. Em qualquer crise, seja ela de saúde pública ou de outra natureza qualquer, aquilo que os cidadãos esperam é que as Instituições Públicas funcionem, tenham lideranças fortes e estratégias seguras e definidas. Nesta crise, nós cidadãos, não necessitamos apenas que o SNS e a DGS funcione bem e se superem (embora precisemos muito disso). Precisamos que TODAS as instituições públicas o façam naquilo que são as suas competências, apesar das limitações que possam ter. No Ministério da Agricultura, mais do que nunca, precisamos de um IFAP afinado a pagar e a decidir, de uma AG-PDR que se supere na capacidade de resposta, bem como das outras Direções Gerais a fazer melhor do que aquilo que se achariam capazes. Todas elas superando-se a si próprias, lado a lado com os agricultores. Mas é isso que vemos e sentimos? Não, não é. Sem prejuízo da boa vontade dos dirigentes e funcionários, como pode o IFAP ser uma referência de solidez nestes tempos conturbados, quando tem dois Presidentes em simultâneo no Conselho Diretivo (um de facto, o outro indigitado)? Como pode a Autoridade de Gestão do PDR superar-se na capacidade de resposta (essencial para libertar dinheiro para as empresas agrícolas) quando a sua Presidente sabe (não porque alguém lho tenha dito previamente e em 1ª mão) que vai ser substituída por outra Presidente (já indigitada)? Não, nada disto contribui para um Ministério sólido, de liderança forte e organismos articulados, no sentido de tudo fazerem para minimizar impactos desta crise sobre os agricultores. Antes pelo contrário!

A única reação que obtive sobre este assunto foi lapidar e reveladora: estes assuntos não são urgentes, pois urgente é combater o Coronavírus. Quem assim pensa, bem pode ir para casa.


Francisco Gomes da Silva – DIRETOR GERAL DA AGROGES


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