A agricultura é feita de dois mundos, o da terra e o da água, misturados pelo homem e pela sua cultura. Poderemos densificar mais ou menos a inter-relação entre os três, mas teremos sempre o Homem, a Terra e a Água. E do homem depende a acção transformadora que produz a agricultura: a terra e a água, por si só, na natureza, geram uma infinidade de ciclos e permitem a multiplicação de animais, plantas, produtos, fibras, frutos, essências, …, mas é a acção do homem que ordena, que organiza, quem dá sentido e faz corresponder a capacidade produtora da terra às necessidades.
Nem todos os homens, contudo. Olhar para um pedaço de terra, seja uma nesga entre muros seja uma campina estendida para lá do horizonte, seja uma encosta de tojos e matos, imaginar-se nelas uma ramada e couves, um campo de tomate ou um prado com ovelhas, uma vinha em patamares ou um olival ondulante, não é para todos. Alguns têm essa capacidade: entrever a alma agrícola de Portugal em terras nem sempre pródigas. Realizar o prodígio de as pôr a produzir, é para muitos menos, os que nos conseguem o pão, a carne, o leite, os ovos, o arroz, a fruta, o vinho, os doces, o que ao longo do dia nos acompanha por necessidade e prazer e bebemos, comemos, cheiramos ou afagamos, feitos por esses raros homens e mulheres, rapazes e raparigas, persistentemente e com uma vocação quase heróica e abnegada de tanta coisa, todos os dias trabalhando no nobre labor de transformar a terra e a água. Esses raros homens, mulheres, rapazes e raparigas podem ser produto da academia, ciência infusa nos ISA, nas UTAD, nos Politécnicos, nas Escolas Profissionais ou podem ser produto da sua própria história, tendo aprendido em família o nome de cada vaca, a orientação dos regos da charrua para que a chuva não leve a terra, a prática de plantar o cebolo com a raiz à vista, afinar pelo cheiro a maturação dos queijos na tábua pendurada ao ar na varanda. Muitos, cada vez mais, são as duas coisas. Lidando com tecnologia e conhecimentos complexos, agindo em operações aparentemente simples de fazer com que algo, como uma ideia ou uma semente, nasça, cresça, se reproduza, frutifique. Quando, num almoço num restaurante ou tasca de cidade ou numa merenda em casa de lavrador, levamos à boca uma garfada ou damos um golo num vinho a embeber um rolo de presunto e queijo com pão, a nossa atitude deve ser, antes de mais nada, de profundo respeito.
Profundo respeito que devemos sentir quando estamos perante um agricultor. Quando há dias, na companhia insubstituível do meu amigo Mário (meu Director Regional Adjunto quando estivemos mais de sete anos na Direcção Regional), percorria as ruas integrado na marcha de milhares de pessoas e tractores promovida pela CAP, pensava para mim mesmo quais os motivos que me levavam a estar ali. Políticos? Sem ambições neste campo. Económicos? Não sou um agricultor nem recebo subsídios. Profissionais? Não trabalho para nenhuma das organizações da CAP. Sócio-Profissionais? A associação em que estou integrado não me mandatou nem deliberou para eu estar ali. Solidariedade? Até certo ponto, talvez. Alguns manifestantes foram conversando connosco, uns, anónimos, outros, conhecidos, a todos fomos ouvindo. Com a mesma atenção e solicitude com que o fazíamos quando em funções oficiais. Com o mesmo respeito. Eram, na nossa actividade, a razão de ser. Eram os inspiradores da nossa atitude de profundo respeito, o que devemos sentir quando estamos perante um agricultor.
Há uns anos foi publicado um ensaio-memórias pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, da autoria de José Navarro de Andrade, intitulado Terra Firme. Deveria fazer parte do plano nacional de leitura e ser obrigatório estudar-se o recheio de geografia, de história, de política, de ciências aplicadas e de humanidade que contém. É um livro de agricultura numa visão personalista, actual e antigo, focado nos arranques e no esforço “contra o inimigo invisível da inércia”, a chamada de atenção para o perigo de que o “adormecer para a História tem consequências fatais”. Li algures uma referência que lhe foi feita chamando-lhe testemunho. É mais do que isso. É um apelo à reflexão, ao respeito e ao denodo com que a agricultura deve ser exercida. É um dos livros mais importantes publicados neste século em Portugal.
Ao longo da minha vida participei em várias, bastantes, manifestações de agricultores. Dum lado e doutro, pelas circunstâncias. De todas conservo na memória a audácia, a força e a determinação dos manifestantes. Hoje, os tempos exigem tal audácia, força e determinação. No fundo, as qualidades dum agricultor, por mais humilde que seja. Pratica-as todos os dias para produzir e viver do seu produto. Ao ver a multidão avançando pelas ruas em direcção à sede da Direcção Regional compreendi bem, naquele quadro intenso em que se juntava a chuva, o som dos altifalantes, a vozearia e os apitos, os cartazes no ar, os funcionários do Estado a espreitar, os lavradores na sua atitude de dizer presente!, os dirigentes a formular as suas reivindicações incisivas e sintéticas, os jornalistas em frenesi, os acordes do Hino Nacional, compreendi bem que ali estava a vida de cada um e o esforço da agricultura; que ali estava Portugal. E todos nós com o dever de estar também. Por respeito. Um profundo respeito.
Consultor e escritor, ex Director Regional de Agricultura e Pescas do Norte, 2011-2018; ex Vice-Presidente do IVV, 2019-2021.