
Talvez se possa interpretar, desta frase, “se é que se pode chamar historiografia a alguma da actividade associada à exposição, a julgar pelos resultados”, que eu teria dúvidas sobre a qualidade do trabalho de Isabel Castro Henriques.
Gostava de esclarecer este ponto.
Não tenho opinião própria sobre o trabalho de Isabel Castro Henriques, não o conheço o suficiente e o que ouço, de terceiros, é que é um trabalho sólido, quando escrevi o que cito acima estava, na verdade, a pensar mais em historiadores que conheço melhor, como Fernando Rosas, que também escreveram alguns dos textos da exposição.
Acho natural que um mané como eu se pergunte por que razão alguém pede a Fernando Rosas para escrever textos científicos ou, no mínimo, académicos, sobre colonialismo, quando sabe perfeitamente que Fernando Rosas tem da política uma concepção que o impede de admitir que alguns pontos de vista devam ser considerados como hipóteses legítimas de interpretação.
Como várias vezes esta questão me surgiu, fui pensando no assunto e parece-me, sublinho este parece-me, que a discussão sobre o colonialismo está de tal maneira inquinada que quem quer que queira trabalhar sobre o assunto, do ponto de vista académico, tem de saber caminhar pelo campo ideologicamente minado que domina, de forma esmagadora, o trabalho da academia sobre este assunto, ou é ostracizado (o que equivale a um suicídio académico).
Isabel Castro Henriques é, intelectualmente falando, uma filha do Maio de 68, como é evidente logo no arranque desta entrevista.
Já tinha lido uma corruptela desta história algures, e é uma boa ilustração do que quero dizer “Mas vi também, na cidade do Huambo, uma realidade colonial diferente daquela que eu tinha aprendido aqui. Havia discriminação? Havia. Havia, por exemplo, cinema para os pretos e cinema para os brancos. Não havia nenhuma placa que dissesse “este é cinema de brancos, este é cinema de pretos”, mas havia uma prática que instalava os brancos (e alguns assimilados) no cinema Ruacaná, enquanto os pretos iam para o cinema São João, onde havia um ecrã que se via dos dois lados”.
Comecemos pela corruptela, porque também ilustra bem como a discussão sobre o colonialismo passa rapidamente de uma realidade razoavelmente objectiva, com uma interpretação racionalmente discutível, para uma realidade paralela que encaixa melhor no discurso dominante mas é impossível de discutir porque não tem relação com a realidade.
Na corruptela que eu conhecia, Isabel Castro Henriques teria dito que tinha visto em Nova Lisboa, em 1966, um cinema para brancos e outro para pretos. Estranhei, mas era muito miúdo quando saí de Nova Lisboa (onde nasci), teria dois anos e qualquer coisa, talvez, e por isso fui perguntando a quem lá tinha vivido e que poderia ter mais memória, sem que alguém confirmasse a existência de qualquer cinema, ou coisa parecida, para brancos e outro para pretos.
Ao ver agora a história tal como é contada por Isabel Castro Henriques, a coisa explica-se facilmente: tratava-se, afinal, da distinção social que existe em relação a muita coisa, incluindo a frequência dos espaços públicos.
Para mim, confundir isso com segregação racial é um erro grande, mas compreendo que havendo, como de facto havia, uma forte sobreposição entre distinção social e cor da pele, haja muita gente que confunda as duas coisas, havendo mesmo quem considere isso racismo estrutural.
É uma discussão racional que pode ser feita, é possível que os dois pontos de vista retratem partes distintas da realidade, mas não se pode dizer que o eventual racismo descrito na história que citei pode, de alguma maneira, ser confundido com a lógica da África do Sul ou do Sul dos Estados Unidos na mesma altura.
Dizer que as duas realidades são semelhantes é simplesmente um disparate.
Na história que citei, Isabel Castro Henriques socorre-se de um argumento implícito frequente (que eu acho profundamente racista, diga-se) e lhe permite sugerir a existência de uma espécie de apartheid: consiste em reconhecer que no cinema dos brancos há “não brancos”, mas ao mesmo tempo torná-los invisíveis através do uso de um termo do estatuto do indigenato (que nessa altura até já tinha sido revogado): eram “assimilados”.
É mesmo muito frequente a desvalorização da elite não branca que se estava a formar, considerando-os como “assimilados”, de uma forma que os aproxima do conceito de colaboracionista da resistência ao nazismo, ou de traidor de classe, dos regimes comunistas, o que os torna invisíveis como evidência de que o racismo talvez não fosse igual em todos os sistemas de colonização.
Não só ninguém diz que o engenheiro agrónomo Luís Cabral, casado com uma colega bem branquelas (trabalhou no gabinete ao lado do meu, portanto sei bem disso) e, inicialmente, funcionário dos serviços agrícolas portugueses é um assimilado, como o meu chefe dos escuteiros na paróquia mais branca e burguesa de Moçambique, a da Polana, na então Lourenço Marques, era preto retinto (o que seria impossível na África do Sul, na Rodésia, penso eu, e no Sul dos Estados Unidos) e não me lembro de alguém levantar alguma questão com isso ou de o arrumar numa classe de “assimilados” de que nunca ouvi falar, a não ser quando comecei a ler a historiografia moderna que me obrigou a conhecer o estatuto do indigenato.
Nunca ouvi invocar esse estatuto (naturalmente, estava revogado antes de eu nascer) em momento nenhum, por ninguém. Com certeza teria repercussões na sociedade colonial em algumas circunstâncias, mesmo depois de revogado, mas estava longe de fazer parte do dia a dia de uma família da pequena burguesia do funcionalismo público colonial.
O relevante é que quer o que agora escrevi, quer a dissimulação da emergência de uma elite não branca sob a designação de “assimilados”, não podem entrar na discussão académica sobre o colonialismo porque não cabem no esquema colonizadores/ colonizados, assente numa ideologia racista, a que tem de obedecer grande parte do trabalho historiográfico sobre essa época.
Curiosamente, Isabel Castro Henriques até tem um discurso desalinhado nesta matéria porque se reconhece a si mesma como historiadora de África e não historiadora da relação de África com a Europa e América, isto é, historiadora da evolução africana motivada por factores endógenos e não externos.
Tenho pena, muita pena, que essa não seja a ideia central da exposição, a de uma historiografia africana de África que, claro, que não pode esquecer os factores externos, incluindo a influência europeia e americana, nomeadamente o colonialismo.
A mim, parecer-me-ia muito mais interessante que andar a lutar contra moinhos de vento, como frequentemente acontece, quando se pretende estudar o colonialismo em África (que está muito longe de ter sido igual em toda a África e menos ainda em todo o mundo) e, parece-me, é excessivamente visível nesta exposição.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.