Francisco Toscano Rico

Álcool e Saúde – “À chacun son métier, à chacun sa responsabilité” – Francisco Toscano Rico

A defesa de uma realidade cultural e económica não pode deixar de atender ao problema dos malefícios do consumo abusivo do álcool.

Motivação

Decidi no final de julho que tinha de escrever algo alusivo ao tema, logo após o final da corrida de abertura da praça do Campo Pequeno. Estava uma noite fantástica, com um ambiente na praça espetacular, onde todos sem exceção respeitavam de forma exemplar as melhores práticas da DGS, o que ajudou a eliminar os meus receios iniciais. O que se passava na arena era ainda melhor, os 3 cavaleiros brilhavam perante uns magníficos toiros Brito Paes (que foi chamado à arena), obrigando os forcados de Santarém e Lisboa a mostrar com brio toda a sua bravura e experiência. No intervalo, acompanhado por 3 amigos, dirigimo-nos para o bar, – “traga por favor uma garrafa bem fresca de vinho branco leve”. Do lado de lá do balcão vejo uma cabeça a acenar negativamente, – “aqui não vendemos disso”. Acabámos, desconsolados, a beber cerveja sem álcool em copos de cartão reciclado. Ao nosso lado, um casal da nossa idade olhava para nós com ar de gozo, e eis que um deles tira da algibeira uma pequena garrafa que foram partilhando entre os dois ao longo de toda a segunda parte. Pensei para comigo, se chegámos a um ponto em que nos temos de esconder é porque não fizemos bem o nosso trabalho de casa.

Vamos então ao assunto

Com esta celebre frase que empresta o titulo a este artigo, proferida pelo antigo Presidente francês Françóis Mitterrand, em que apelava à mobilização e organização dos produtores de Cognac em plena crise de 1983, fica o alerta e o repto ao setor do vinho para uma maior proatividade nesta temática e ao poder politico para que impere o bom senso, em especial numa altura em que o Orçamento de Estado volta a ser discutido.

O que está em causa – descrição da questão

  • O alcoolismo é um problema grave de saúde pública à escala planetária. Leva à degradação moral da pessoa humana e da sua saúde, é responsável pela desestruturação de muitas famílias, violência doméstica, absentismo no trabalho e acidentes rodoviários.
  • Ao longo dos últimos anos o setor vitivinícola tem mostrado trabalho, bem feito, na promoção do consumo moderado e responsável. Mas não chega, produzir um alimento ou uma droga lícita não é a mesma coisa e o setor tarda em reagir e decidir como se quer posicionar.

O olhar da Saúde

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e consequentemente todos os seus correligionários dos diferentes países, têm-se debruçado intensamente sobre o estudo das causas, consequências, padrões de consumo e, mais recentemente, sobre as opções de política pública em torno da temática do consumo do álcool.

Todo este trabalho conduziu à formulação de um conjunto de políticas públicas que os países aderentes devem colocar em prática, denominadas por “Best Buys” ou seja, aquelas que potencialmente poderão ser mais eficazes para o controlo, menorização do problema do alcoolismo.

Para lá chegarem, foram construindo uma argumentação sólida, sempre com a preocupação de serem acompanhados por evidências científicas:

  • O impacto do consumo do álcool em idade precoce tende a ser muito maior e mais permanente, com repercussões graves no desenvolvimento cerebral e cognitivo;
  • Existe uma predisposição genética de uma parte significativa da população mundial para a dependência do álcool;
  • O álcool provoca o cancro;
  • O problema do alcoolismo faz-se sentir com maior intensidade nas camadas da população com menos recursos (maior dificuldade no acesso aos cuidados de saúde).

Alicerçado nestas premissas, concluem que todo o álcool é mau, sendo deste modo necessário restringir o apelo ao consumo e dificultar o acesso ao mesmo (compra ou momentos de consumo).

Surgem então as “Best Buys”, que começam a ser paulatinamente adotadas um pouco por todo o mundo:

  • Aumento da idade mínima legal;
  • Restrições à publicidade e dificultar o momento de compra/consumo (redução dos pontos de venda autorizados e restrição de horários);
  • Aumento do custo de aquisição / preço de venda (preço mínimo de venda ou taxas): concorre para reduzir o consumo por parte daqueles que são mais impactados (menos recursos, ou seja, com menor poder aquisitivo): esta tem merecido a preferência dos políticos, pois tende a aumentar a receita pública.

A visão do setor do Vinho

Do lado do setor das bebidas, em especial do setor do vinho, vemos ser esgrimidos os seguintes argumentos:

  • Os jovens menores de idade não devem consumir;
  • O consumo moderado faz parte da nossa cultura e é compatível com a promoção de um estilo de vida saudável;
  • O consumo precoce e o Binge Drinking– expressão utilizada para descrever o consumo excessivo de álcool que corresponde à ingestão de cinco ou mais bebidas alcoólicas, estão em regra associados a outros tipos de bebidas;
  • O consumo moderado pode trazer benefícios para a saúde (convenhamos, recomendar o consumo de álcool por motivos de benefício para a saúde é insensato, ainda que possa ter alguma ponta de verdade).
  • As políticas restritivas, em especial as relacionadas com os preços, não têm mostrado ser eficazes e foram postas em prática em países com realidades de consumo muito diferentes de Portugal.
  • Não se afigura razoável impor restrições a um setor que tem mostrado ser responsável e ao mesmo tempo permitir-se a introdução no mercado de bebidas com substâncias psicoativas derivadas de drogas ilícitas (ex: canábis), como já acontece em alguns países.

De um modo geral, advoga o setor que o caminho passa por mais educação e informação (vemos campanhas de TV, outdoors, imprensa escrita e online, incluindo ações de informação nas escolas) existindo mesmo um programa supranacional o “Wine Moderation” que, tendo nascido no seio do próprio setor, para já, vai mais à frente do que é ainda a práxis empresarial.

As opções dos privados e as decisões dos políticos

Para rematar o assunto de forma simplista, podemos considerar que existem 3 tipos de substâncias que podem ser introduzidas no consumo (legalmente):

  • Os medicamentos: sujeitos a controlo e aprovação rigorosa, de venda restrita em estabelecimentos autorizados e sempre acompanhados de uma bula interminável de informações, recomendações, contraindicações, advertências e efeitos secundários;
  • As drogas licitas (ex: tabaco), onde nada se pode dizer ou alegar, ostentando só a marca, o fabricante e advertências de saúde e de consumo e sempre acompanhado de uma estampilha fiscal, com proibição à publicidade e crescente restrição de lugares de consumo (ainda bem).
  • Os alimentos, onde se definiram um conjunto de regras mínimas obrigatórias de informação a constar na rotulagem, em que nada é escondido ou omitido, permitindo que os consumidores possam fazer escolhas informadas e conscientes no momento de exercer as suas opções de compra e consumo.

Ora, olhando para a rotulagem da grande maioria dos vinhos, ficamos na dúvida sobre em qual destas categorias os devemos enquadrar, sendo certo que não é um medicamento (é melhor não optarmos por seguir essa via).

A opção com que o setor se depara é assim muito clara:

Opção 1- O vinho é um produto muito específico e isso justifica um tratamento de exceção e por isso a sua rotulagem deve ter regras próprias, etc. …: pois bem, neste caso estamos na prática a catalogar o vinho como uma droga licita, assuma-se esse caminho e as suas consequências;

Opção 2- O vinho é um alimento que deve ser consumido com moderação: então temos de ser coerentes com este caminho, adotando as melhores práticas de informação ao consumidor, que de resto o próprio setor tão bem soube redigir e que já estão implementadas cá dentro por algumas empresas líderes de mercado: e é tão simples de o fazer, passando por incluir na rotulagem:

  • uma ou mais advertências de saúde ou ir alternando a sua inclusão entre as marcas e os anos (abstinência na gravidez, manuseamento de máquinas e idade legal);
  • apelo à moderação: “seja responsável, beba com moderação”;
  • e ainda, porque falamos de um alimento, a inclusão da informação nutricional, designadamente as calorias (mais do que isso confesso que acrescenta pouco ou nada ao consumidor).

Não venham os marketeers convencer-nos que o rotulo não tem espaço para tanta informação porque a rotulagem do vinho está hoje pejada de informação “inerte”, e a solução também já está encontrada e passa por remeter a informação adicional (nutricional e ingredientes) para o online.

Importa ter consciência de que esta clarificação irá sempre acontecer no curto prazo, seja por via da autorregulação e efetiva aplicação generalizada pelas empresas ou, se tal não ocorrer, certamente pela via disciplinar e regulamentar, com as regras a serem definidas por outros protagonistas. Do lado da saúde, os interlocutores são bem conhecidos, a agenda existe e é transparente e o diálogo acontece. Pois bem, em nome do vinho, entendamo-nos no que faz falta fazer, traçando uma agenda comum, com uma consciência social assente em valores de liberdade individual, mas de responsabilidade coletiva e procura ativa do bem comum.

Com a crise do Covid, certamente que este ano o vinho ficará a salvo de novas subidas de taxas e impostos, mas a ameaça continuará a pairar nos anos vindouros, por ocasião da discussão do Orçamento de Estado, podendo surgir de forma assumida ou disfarçada sob a forma de cativações sobre as taxas. Contudo, tendo em conta o desequilíbrio que já hoje existe entre o valor das taxas que o setor paga e o benefício que recebe de volta do Estado (o que parece ser um contrassenso entre a Lei e a sua aplicação, pois as taxas pressupõem obrigatoriamente que exista uma contrapartida, caso contrário são impostos encapotados), dificilmente o setor suportará e aceitará que o Estado lhes imponha novos ou renovados votos de pobreza coletiva, ainda que rotulados de forma ardilosa segundo as melhores práticas da legística (técnica de feitura das leis).

Francisco Toscano Rico

Eng.º Agrónomo e Presidente da Comissão Vitivinícola da Região de Lisboa

O Rei Vitis Vai Nu – Francisco Toscano Rico


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