Alerta vermelho: Os riscos, os desafios e as respostas possíveis sobre a crise do Clima por quatro cientistas

Quatro dos mais respeitados cientistas portugueses na área do clima escrevem, em exclusivo para a VISÃO, sobre o presente e o futuro do País e do mundo. Um retrato dos riscos, dos desafios e das respostas possíveis para enfrentarmos uma das maiores ameaças da História da Humanidade.

A importância da Ciência

É o conhecimento científico que nos mostra todo o impacto das alterações climáticas. E é esse conhecimento que nos pode também dar as soluções

Climatologista, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

A semana dos Nobel vem sempre acompanhada por discussões animadas acerca de quem serão os laureados nas diversas áreas e, este ano, o nome da ativista do clima Greta Thunberg voltou a ser badalado como favorito para o Prémio Nobel da Paz. O clima acabou por ser um dos temas escolhidos pelo comité Nobel, mas a distinção deu-se no campo da Física pura e dura, tendo os climatologistas, Syukuro Manabe e Klaus Hasselmann partilhado o prémio com o físico teórico Giorgio Parisi.

O comité do Nobel já havia selecionado o clima em 2007, quando o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) partilhou o prémio da Paz com o vice-presidente dos EUA, Al Gore, e, neste ano, uma repetição do prémio com Greta Thunberg teria tido, muito provavelmente, maior repercussão ao nível mediático. No entanto, a atribuição do Nobel da Física, inegavelmente por motivos científicos, dada a qualidade ímpar dos laureados, e, talvez também, por razões de pressão política, em vésperas da realização da 26ª Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas da ONU (COP26), vem dar relevo a um aspeto fundamental que tende a ser esquecido pelo cidadão comum: o de que o estudo do clima requer uma abordagem físico-matemática especializada, começando por se tratar de um problema científico e técnico, e só depois um problema socioeconómico, ambiental e ético.

A necessidade de integrar conceitos físico-matemáticos surge logo na definição de clima, na medida em que o termo se refere a uma coletividade de eventos meteorológicos que tiveram lugar numa dada região e num dado período de tempo, tomando-se um todo e sendo a sua individualidade esquecida. A caracterização do clima e da sua evolução requer, portanto, conhecimentos avançados de Física, de Estatística e de sistemas dinâmicos. Acresce que o próprio conceito é difícil de apreender pelo cidadão comum, na medida em que o clima não se vê, podendo apenas apreciar-se indiretamente os seus efeitos, seja nas características da vegetação natural, seja no tipo de habitação rural, seja na traça das cidades antigas. O facto de, com frequência, se ouvir dizer que determinado espetáculo foi interrompido devido às “condições climatéricas” é um indicador claro da confusão que ainda existe entre clima (coletividade) e estado do tempo (membro da coletividade).

São a Física e a Matemática que permitem explicar por que razão, não sendo o estado do tempo previsível para além de uma semana a dez dias, se pode, ainda assim, construir cenários confiáveis do clima a 30, 50 ou 100 anos. São a Física e a Matemática que permitem reconstituir o clima desde há meio milhão de anos, com base em informação precisa da temperatura, dióxido de carbono, metano e poeiras, obtida a partir da análise das camadas de gelo. São a Física e a Matemática que permitem discernir entre a variabilidade interna natural do clima, como o El Niño ou a Oscilação do Atlântico Norte (NAO), e as mudanças climáticas decorrentes de forçamentos externos, sejam estes naturais, como o vulcanismo e a atividade solar, sejam antropogénicos, como os decorrentes da emissão de gases com efeito de estufa. São a Física e a Matemática que permitem atribuir causa humana a um determinado evento meteorológico extremo e simular as não linearidades do clima, responsáveis por “efeitos borboleta” e por feedbacks que podem retardar ou acelerar a resposta a um dado forçamento.

Aumento de 52% da área ardida
Devido à sua natureza complexa, o clima apresenta, pois, um comportamento que se afasta de raciocínios simplificados baseados em modelos lineares em que, tal como numa mola elástica, a resposta climática seria proporcional ao forçamento e a supressão da causa forçadora levaria ao retorno ao estado anterior ao forçamento. Os cenários de clima futuro, produto de simulações efetuadas por modelos físico-matemáticos altamente sofisticados que correm nos mais poderosos supercomputadores existentes, são, assim, difíceis de assimilar pelo cidadão não especializado, avesso a tudo o que se afaste do senso comum, e as medidas de mitigação dos impactos das alterações climáticas, que implicam sacrifícios de toda a ordem, acabam por sofrer rejeições pelas comunidades, no todo ou em parte. Cite-se, a título de exemplo, a dificuldade em explicar a necessidade presente de se limitar o aumento da temperatura média global em 1,5 ºC acima dos níveis pré-industriais, em vez de se manter a meta de 2 ºC estabelecida, em 2015, no Acordo de Paris. A razão está no comportamento não linear dos extremos climáticos, cujo aumento não é proporcional a uma pequena variação de meio grau na temperatura, tendo ainda em conta que os grandes desastres meteorológicos se ficam a dever, na sua esmagadora maioria, à ocorrência de fenómenos extremos, tais como os episódios de seca, as ondas de calor, as tempestades e as cheias.

O comportamento não linear do clima explica também o pronunciado aumento em frequência que, nos últimos anos, tem vindo a observar-se em determinados eventos climáticos extremos e desastres a eles associados. Por exemplo, quando se contabilizam as secas, com duração da ordem de um ano, que assolaram a Península Ibérica no período 1901-2016, observa-se que os cinco episódios mais intensos tiveram lugar no século XXI, em 2005, 2012, 2009, 2015 e 2016. E, quando se compara, para Portugal, o total anual de área queimada em incêndios rurais, verifica-se que a média para o período 1980-2000 é de 91 mil hectares, enquanto para o período 2001-2019 é de 139 mil hectares, o que representa um aumento de 52%, tendo-se em conta ainda que os três anos com maior área ardida, 2017, 2003 e 2005, se situam no período mais recente.

O aumento de área queimada não se deve, contudo, apenas a uma maior frequência de extremos meteorológicos, sejam ondas de calor sejam ventos intensos, não podendo ignorar-se fatores ligados à atividade humana, como as mudanças drásticas da paisagem, com mais terrenos abandonados, mais área de mato e mais zonas florestadas, ou à diminuição e envelhecimento da população rural. Com efeito, os fatores antropogénicos do forçamento do clima são de tal forma cruciais que se acrescentou a antroposfera às cinco “esferas” com que tradicionalmente se estruturavam o sistema climático: a atmosfera, a hidrosfera, a criosfera, a litosfera e a biosfera.

Aquecimento: uma resposta natural do sistema climático
A Humanidade tem, portanto, responsabilidades acrescidas em tudo o que respeita as alterações climáticas, não só porque o comportamento humano tem um papel determinante no forçamento do clima mas, sobretudo, porque é o único fator que pode ser modificado mediante um processo de consciencialização coletiva que leve a uma mudança drástica de comportamentos à escala global. Tal mudança é, no entanto, extremamente difícil de levar a cabo por diversas razões. Em primeiro lugar, porque o pessimismo do presente século tem levado frações da população a pôr em causa o método científico e a seriedade dos cientistas, preferindo seguir, de forma acrítica, teorias da conspiração sem qualquer base de sustentação, tal como recentemente sucedeu quando diversas vozes puseram em causa a vacinação contra a Covid-19. Em segundo lugar, porque os resultados de uma mudança de comportamento irão demorar muitas dezenas de anos a ter efeitos palpáveis, entrando, assim, em conflito com a mentalidade dominante que visa o lucro imediato e que tem como horizonte temporal a duração de uma legislatura. Em terceiro lugar, porque o esforço económico requerido é de difícil aceitação, quer pelos países mais ricos, que não estão dispostos a sacrificar o nível de vida que têm, quer pelos mais pobres, que se sentem no direito de vir a ter o que os outros já alcançaram.

Mostram a Física e a Matemática que as alterações climáticas que já vivenciamos não são mais do que a resposta do sistema climático com vista a alcançar o equilíbrio dinâmico que garante a continuidade do seu funcionamento em harmonia com os forçamentos impostos pela atividade humana. Ao invés do que muitos pensam, não se trata de uma “vingança da Natureza”, mas tão-somente de uma resposta natural do sistema aos novos condicionalismos externos, tal como o corpo humano aumenta o batimento cardíaco após um esforço ou transpira quando a temperatura ambiente se eleva.

Só a Ciência e a técnica são capazes de produzir cenários credíveis de clima futuro, estabelecer metas de comportamento da Humanidade que permitam mitigar, dentro do possível, os impactos das alterações climáticas e delinear estratégias de adaptação que possam limitar os danos. Não me parece que haja muito espaço de manobra nem lugar para muitas ilusões. Se não formos nós a cuidar do clima, será o clima que cuidará de nós.

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