Aposta?

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por henrique pereira dos santos, em 16.09.24

“Não percebi o tom de aposta. Não percebi porque alguém haveria de duvidar da probabilidade de haver mais incêndios estes dias.”, comenta alguém, no Domingo, o facto de eu, na Quarta-feira anterior, ter começado a dizer que a partir da Sexta-feira passada, mas especialmente hoje e amanhã, os noticiários passarem a ser dominados por notícias sobre fogos.

Depois dessa Quarta-feira (em que os comentários iam mais no sentido da esperança de se demonstrar que a previsão falhasse e com isso eu me calasse), já expliquei que uso estas previsões relativamente temporãs, mesmo sendo um risco fazê-las, como forma de validação da minha interpretação do fenómeno  do fogo rural em Portugal.

O que faço é contrapor uma tese – a presença de um determinado padrão de fogo depende essencialmente da disponibilidade de combustível e das condições meteorológicas – a todas as outras teses variadas que existem no espaço público e que influenciam a política profundamente errada de gestão do fogo que, transversalmente a todos os partidos, é esmagadoramente dominante.

Os erros fundamentais dessa política assentam em duas ideias, qualquer delas falsa.

1) o padrão de fogo decorre de problemas estruturais como a composição do coberto florestal, a estrutura fundiária, o número de ignições, o ordenamento do território, etc.;

2) a resposta adequada ao contexto rural e de fogo que existe em Portugal é ter um dispositivo que responda rapidamente à detecção através de um ataque inicial ultra-eficaz, justificando sistematicamente o desfasamento entre a realidade e os objectivos pretendidos com a imprevisibilidade de evolução do fogo, com a dificuldade de acessos, com o meteorologia, com o número elevado de ignições, com os reacendimentos (tenho um amigo que defende que qualquer reacendimento de um fogo deveria dar origem a um inquérito para perceber como era possível um incêndio controlado dar origem a um reacendimento), as projecções, as diculdades operacionais dos meios aéreos, os conflitos institucoinais relacionados com o comando e mais cem mil justificações para evitar dizer uma coisa simples: a partir de uma energia libertada de 5000 kW/ m, que corresponde aproximadamente a uma chama de altura de três metros e meio (tudo isto são aproximações), o combate directo à cabeça do incêndio é impossível.

Como com disponibilidade de combustíveis e condições meteorológicas extremas estas condições se atingem rapidamente, até porque a progressão inicial do fogo é muito rápida em condições extremas, e 30% a 40% das ignições são nocturnas, impedindo o uso de meios aéreos no ataque inicial, é claro que essa doutrina vai falhar, mais tarde ou mais cedo.

Não se trata de uma aposta, isto não são jogos de azar, trata-se do uso de circunstâncias que se podem prever e que eu não posso controlar, para demonstrar que seja o dispositivo o que for (pode ser melhor ou pior), ou gerimos combustíveis de forma extensa, o que implica discutir a economia da operação (e não a sua regulamentação), ou estamos à mercê do fogo, como o dia de hoje parece demonstrar (durante o tempo em que escrevia o post, telefonaram-me a falar de autoestradas cortadas por causa dos fogos e ainda agora está a manhã a começar).

A situação apenas não vai descontrolar-se ao ponto de se tornar um problema político relevante porque estas condições durarão um dia ou dois, e não quatro ou cinco.

Num ano em que condições deste tipo se prolonguem por mais de três dias, veremos uma quantidade enorme de pessoas espantadas com o que sucederá, como se não fosse tão previsível como, na Quarta-feira passada saber que hoje e amanhã os noticiários serão dominados por notícias sobre fogos.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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