Sou periodicamente assaltado por uma enorme saudade do meu colega e grande amigo Armando Sevinate Pinto e de tudo aquilo que ele dizia e escrevia. Pouco tempo depois de ele nos ter deixado, eu fiz um texto sobre os seus artigos no Jornal Público que nunca cheguei a publicar. Mais de dois anos depois, estive a relê-lo e achei que valia a pena publicá-lo por pensar que tudo aquilo que ele neles escreveu, entre Abril de 2014 e Março de 2015, deve voltar a ser lido e meditado, por todos nós que nos preocupamos com o futuro da agricultura nacional.
Ao iniciar esta série de artigos mensais o Armando delineou aquilo que planeava fazer daí para a frente e que, infelizmente, só pôde concretizar durante um ano.
“Escreverei sobre agricultura e as suas ligações naturais à economia, à alimentação e ao ambiente. Partirei de um enquadramento global para, progressivamente, me aproximar de Portugal, dos nossos recursos, dos nossos problemas, das nossas discussões, soluções e comportamentos.”.
Nesse primeiro artigo ficaram logo identificados os temas que se propunha vir a abordar ao longo dos meses seguintes, em que a necessidade de fazer crescer a produção agro-alimentar num contexto cada vez mais reduzido e fragilizado de recursos naturais e de alterações climáticas, era o ponto de partida das suas reflexões aonde a problemática do conhecimento, das mudanças tecnológicas e do consumo de bens alimentares ocupavam um lugar central.
No artigo do mês de Maio, o Armando viu-se na necessidade de clarificar o seu pensamento em relação à integração da agricultura portuguesa na União Europeia, sublinhando a ideia que sempre defendeu que sem a PAC a evolução da agricultura e do mundo rural português teria sido muito mais negativa do que a verificada. Não ignorando os impactos menos favoráveis da PAC sobre as explorações agrícolas e a agro-indústria nacional, terminava este artigo escrevendo “Considerar-se a PAC como a grande responsável por aquilo que se diz ser o “descalabro da agricultura portuguesa”, o que está longe de ser uma realidade, não deixa de ser uma patetice sem nenhum fundamento, dito por ingenuidade, ou por falta de informação, mas que, infelizmente, vemos frequentemente repetido na comunicação social.”
Durante o mês de Junho de 2014, foram publicados dois artigos seus. No primeiro contestava aquilo que intitulou como dois mitos agrícolas, demonstrando que nem somos detentores, como alguém afirmava, de excelentes condições de solos e clima para a prática da agricultura, nem responsáveis pelo seu, muitas vezes proclamado, quase completo “abandono”.
No segundo, escreveu um dos textos mais admiráveis alguma vez publicados sobre os agricultores portugueses que respondendo à pergunta “Será fácil ser agricultor?” de forma profunda e emotiva, termina afirmando “Ser-se agricultor está longe de ser fácil e mais longe ainda da facilidade que os não agricultores julgam associada a esta profissão. Os candidatos a agricultores, aqueles que respondem ao chamamento da sociedade, ou à sua intuição pessoal, devem estar conscientes da dedicação e esforço que lhe vão ser exigidos, mas também da existência da formidável energia positiva associada a uma das mais nobres, livres, úteis, gratificantes e independentes actividades humanas inseridas no processo produtivo e que tem o mérito de ser uma das poucas de que depende inteiramente a sobrevivência da nossa espécie.”.
Nos artigos dos meses de Julho e Agosto, o Armando debruçou-se sobre aquilo que ele, tal como eu, considerava serem os “dois pilares sobres os quais tem que assentar o desenvolvimento da nossa agricultura (…)”, o conhecimento e o investimento produtivo. No de Julho, depois de chamar a atenção para a importância do investimento para uma agricultura como a nossa que, com fracos recursos produtivos, tem que competir em mercados cada vez mais alargados e concorrenciais, tece fortes críticas à forma como inicialmente foi aplicado o PRODER 2007-2013. No de Outubro, em que reconhecendo a importância da ”fileira do conhecimento (investigação, ensino, formação e divulgação) para o extraordinário progresso alcançado pela agricultura europeia e mundial nas últimas décadas”, debruça-se sobre aquilo que ele classifica como uma evolução negativa da investigação e ensino agrário em Portugal, afirmando “Infelizmente, em matéria de conhecimento técnico/científico incorporado em práticas agrícolas, florestais e agro-industriais, temo-nos vindo a afastar de muitos países da União Europeia, onde se procura, activamente, modernizar, inovar e encontrar os caminhos de uma nova agricultura, competitiva e sustentável. Uma agricultura que dê resposta aos grandes desafios, quer os do nosso tempo, quer aqueles que, não estando ainda completamente presentes, já produzem sinais de grande aproximação (como, por exemplo, as alterações climáticas).”.
Em dois artigos, de Agosto e de Novembro do ano de 2014, o Armando debruçou-se sobre o tema central das suas preocupações de sempre: o impacto da PAC sobre a agricultura europeia em geral e a agricultura portuguesa em particular. A leitura que ele fazia sobre as limitações e potencialidades das agriculturas em causa no contexto da crescente liberalização dos mercados agrícolas mundiais, levou-o a concluir que a PAC não podia deixar de se basear em políticas de orientação “protecionista”. Foi por este motivo que ele reagiu negativamente ao início do processo de eliminação das medidas de suporte de preços aquando da reforma da PAC de 1992, reconhecendo, no entanto, que o seu efeito negativo tinha sido minimizado com a introdução das ajudas ligadas à produção. Foi também esta a razão pela qual sempre se opôs quase “ferozmente” ao processo de desligamento das ajudas, iniciado com a reforma da PAC de 2003.
Foi, aliás, neste contexto que as nossas ideias sobre as políticas agrícolas mais divergiram.
Para ele as medidas de política a privilegiar deveriam ser aquelas que assegurassem uma promoção da produção e uma melhoria dos rendimentos agrícolas, enquanto que para mim as políticas a adoptar deveriam ter como objectivos prioritários a promoção da eficiência no uso dos factores de produção e a estabilização dos rendimentos agrícolas. Daí que ele privilegiasse as medidas de suporte de preços e os pagamentos ligados à produção e eu um desligamento deste tipo de pagamentos e a crescente importância das medidas agro-ambientais e das medidas de estabilização de rendimento, de gestão dos riscos de mercado e das redes de segurança.
Nos artigos “Os agricultores e as políticas agrícolas” (30/08/2014) e “Os preços e os subsídios agrícolas” (21/11/2014), o Armando deixa bem expresso os fundamentos das suas convicções que nunca foram muito “abaladas” pelos argumentos com que as procurei contradizer.
Como pude constatar pela leitura de uma carta que ele me mandou entregar uma semana antes de nos ter deixado, estas “divergências” profissionais marcaram-no mais do que eu imaginava. Resta-me a consolação de ele afirmar, nessa carta, que na sua opinião tais divergências terem contribuído para o reforço da amizade e respeito mútuos.
Num artigo publicado em Setembro, o Armando alertava para a importância das estatísticas agrícolas (20/09/2014) no qual começa por afirmar: “Embora gostasse de estar enganado, estou convencido de que há muitos alunos de escolas superiores de agricultura que chegam ao fim dos seus cursos sem nunca terem visto de perto um exemplar das estatísticas agrícolas. No entanto, o Instituo Nacional de Estatística (INE) publica-as com regularidade e, actualmente, com bastante oportunidade. Se tal for o caso, isso só pode ser explicado pelo facto de o mesmo ter acontecido com alguns dos seus professores. Saber de que recursos naturais dispomos, de que forma são utilizados, por quem e por quantos, com que estruturas, o que se produz, com que custos e a que preços, o que consumimos, o que importamos e/ou exportamos e muitas outras informações estatísticas, deveria fazer parte da cultura geral de todos e ser objecto de estudo por parte daqueles que têm mais obrigações de o fazer.”.
No artigo em causa, o exemplo apresentado pelo Armando tinha a ver com os dados do Comércio Externo Agrícola, cujo tratamento exaustivo lhe permitiu obter resultados que ele usava, não só como base de muitos dos trabalhos em que participava, como também para “atirar à cara” dos colegas, comentadores e políticos que opinavam sobre temas agrícolas sem se preocuparem em validar o que diziam ou escreviam.
No artigo de Outubro de 2014, intitulado “As duas agriculturas” o objectivo do Armando foi o de chamar a atenção para a agricultura de sequeiro em Portugal, ao afirmar: “(…) é para mim cada vez mais evidente que este enorme território problemático poderia e deveria ser melhor acompanhado, com mais atenção política, com medidas apropriadas à sua sustentabilidade produtiva. Seria mais do que justificado que assim acontecesse, quer porque o país precisa de produzir mais, quer porque os agricultores, para continuarem a sê-lo, precisam de condições mínimas de viabilidade, quer ainda, porque as regiões rurais, sobretudo as do interior, para sobreviverem, económica, social e ambientalmente, precisam de um tecido produtivo viável e durável. O que ninguém precisa é de soluções passageiras e de alterações permanentes. As soluções existem mas exigem determinação e clarividência para a integração e execução de medidas de efeito múltiplo, que erradiquem as doenças letais que devoram as nossas florestas; que melhorem as nossas pastagens; que enriqueçam e protejam os nossos solos (designadamente contra a erosão); que travem a redução acentuada dos cereais de sequeiro e/ou o nosso efectivo ovino. Tudo isto é possível. Não é preciso inventar nada. Basta ligar vontades, ciência, política e alguns meios materiais. Infelizmente, se nada for feito, o futuro punirá certamente uma grande parte dos agricultores portugueses, mas também a consciência dos que, menos atentos, não se deram conta do que poderia vir a acontecer. E não me venham dizer que não se pode, porque a UE não deixa. Se não se pudesse, já não haveria vinha nas encostas do Reno, na Alemanha, agricultura de montanha na maior parte da Europa ou agricultores na Finlândia.”
Entre Dezembro de 2014 e Janeiro de 2015, o Armando publicou no Jornal Público três artigos.
Um sobre os jovens agricultores e outros dois sobre a floresta nacional em geral e o sobreiro em particular.
No artigo “A instalação de jovens agricultores é vital para o futuro do sector” o Armando deixou-nos um texto notável sobre a importância do rejuvenescimento do tecido empresarial agrícola nacional e, sobretudo, sobre as enormes cautelas que os jovens agricultores deverão ter antes de iniciarem a sua actividade. Para o efeito, faz uma dúzia de recomendações que deveriam, em minha opinião, constituir uma “nota prévia” dos formulários de candidatura de um jovem agricultor, terminando, no entanto, o seu texto com palavras de encorajamento “Dito tudo isto, não se assustem, não se deixem intimidar, aprendam com os vossos erros, sigam os vossos sonhos e intuições, sejam sérios, rigorosos e trabalhadores e o futuro se encarregará de vos compensar com a possibilidade única de viverem com dignidade, através de uma das nobres, úteis e gratificantes profissões: a de agricultor.”.
Nos artigos sobre a floresta intitulados “A nossa floresta agridoce” e “E por que não tentarmos salvar os sobreiros?”, o Armando escreve sobre as potencialidades e limitações da floresta portuguesa em geral e do montado de sobro em particular. Vale a pena, neste contexto, citá-lo longamente a propósito do sobreiro “os povoamentos de sobreiros e os ecossistemas que lhes estão associados, são, sem sombra de dúvida, um dos mais importantes activos naturais que possuímos. Importantes, pela riqueza que geram: somos o maior produtor mundial de cortiça, uma das mais polivalentes matérias-primas naturais conhecidas e exportamos anualmente mais de 800 milhões de euros de produtos transformados com valor acrescentado 100% nacional. Importantes, pelos postos de trabalho directos que a sua conservação e exploração justificam e que ascendem a muitas dezenas de milhares, quer junto à produção, quer em cerca de 600 empresas de transformação. Importantes, porque os povoamentos de sobreiros são os elementos centrais de um dos mais ricos, complexos, estáveis e multifuncionais ecossistemas das regiões mediterrânicas pobres, que constituem uma grande parte do nosso território. Temos mais de 700 mil hectares ocupados com sobreiros, que fixam carbono, protegem e enriquecem os solos, modulam o clima e abrigam e alimentam ricos habitats de flora (140 espécies aromáticas, medicinais e melíferas) e fauna silvestre (a mais rica fauna da Europa, sobretudo de vertebrados de que se conhecem 55 espécies correntes), favorecendo a diversidade biológica. Contudo, se continuarmos como até aqui, abandonando programas de defesa da subericultura, como aconteceu em 2005, e mais inclinados em consagrar recursos à preservação de espécies com interesse relativo face à enorme importância dos sobreiros, o risco é grande de ainda em vida não conseguir assistir ao triunfo da investigação e da técnica sobre as doenças mortais mais importantes que, dia após dia, acentuam o declínio dos montados.”.
Num dos dois últimos artigos que nos deixou, o Armando, com base nos últimos dados do INE, apresenta-nos “A mais recente fotografia da agricultura”, em que ele olha para a evolução recente do sector agrícola nacional de forma optimista mas realista, o que o levou a concluir “(…)que se verifica uma evolução estrutural na agricultura portuguesa, quase sempre no bom sentido. Maiores explorações, mais empresas, menos agricultores mas mais produtivos. Contudo, essa evolução é, não só, excessivamente lenta como muito insuficiente para nos permitir globalmente (em todos os sectores e regiões) enfrentar a concorrência global a que actualmente estamos submetidos.”.
Finalmente, no último artigo publicado no Público, intitulado “Bendita água” (5/03/2015), o seu objectivo era chamar a atenção para a importância estratégica do regadio em geral e do projecto do Alqueva em particular, aproveitando para contestar a posição “anti-regadio” quer dos centros de decisão política dos Países do norte da UE quer dos ambientalistas portugueses, afirmando que “(…)Se conhecessem bem o país já teriam chegado a pelo menos três conclusões: 1. Que nas nossas condições, a agricultura sem água, corresponde a uma aventura de grande risco que nem todos estão em condições de assumir a não ser que detenha grandes propriedades apropriadas ao pastoreio extensivo e com significativa componente florestal; 2. Que, em si mesmo, o regadio não faz mal ao ambiente, bem pelo contrário. O que faz mal são as práticas agrícolas desajustadas às condições naturais, seja em regadio seja em sequeiro 3. Que as zonas de regadio em Portugal apresentam uma incomparável diversidade biológica em comparação com a das zonas de sequeiro, frequentemente semi-áridas.”.
Espero que, como eu próprio, tirem o maior proveito possível da leitura destes textos que tivemos a sorte de nos terem sido deixados pelo Armando Sevinate Pinto, alguém a quem a agricultura e a floresta nacionais tanto devem.